segunda-feira, 7 de maio de 2018

A prisão de Lula e o quixotismo do PT

Faz um mês que o ex-presidente Lula foi recolhido a uma sela, na sede da Polícia Federal, em Curitiba. Trata-se de um trauma histórico que tão cedo não será superado. Argumentos a favor e contra sua prisão foram produzidos às mancheias, com todos os rancores e amores possíveis. O leitor que faça seu julgamento. Aqui, interessa é avaliar os efeitos e as impressões que ficaram, até o momento a respeito do fato. Como se encontra a cena política, após a prisão.

No momento da prisão, houve, é claro, aqueles que acorreram aos fogos de artifício. Mas, com o perdão do trocadilho, soaram, no final das contas, artificiais. Era uma alegria de tolo: no dia seguinte, encontrei um desses espíritos fogueteiros e perguntei a razão de sua euforia, na noite anterior: ''foi porque acabou a corrupção no Brasil, ou apenas porque Lula foi preso?''. Não podendo dizer que a corrupção acabara, restou constrangido ao não admitir que sua questão residia, antes de tudo, na censura que desde sempre fez ao ex-presidente.


Todavia, tampouco houve a reação contrariada das massas, com que os dirigentes do PT contavam. A vida continuou lá fora, o Brasil não parou. As mobilizações prometidas não atingiram a normalidade da sociedade. Afora alguns atos de rebeldia inócua — carimbar notas de real, por exemplo —, o ''exército do Stédile'' se resumiu aos militantes do partido e dos movimentos sociais de sempre. As pessoas comuns, de modo frio e distante, indiferentes até, continuaram no ritmo de suas vidas.

Verdade que as pesquisas mostram que Lula, independente da prisão, é ainda a maior figura política do Brasil; que seu patrimônio eleitoral persiste — embora não se possa afirmar com qual consistência, pois isto apenas o tempo dirá. De algum modo, a resistente opção pelo ex-presidente, e o vazio ao centro, retratam o fracasso da República do Impeachment, a pinguela eticamente comprometida construída por Michel Temer, Aécio Neves e quejandos no MDB, no Centrão e no PSDB.

Aliás, um dos efeitos da prisão de Lula foi a aceleração dos processos judiciais contra o atual presidente e contra os tucanos, que até então caminhava a passos de bicho preguiça. E isto, é claro, é positivo — se o que se quer é, realmente, combater a corrupção no país.

Mas, o fato é que nesse primeiro mês de prisão, o ambiente ao invés de aquecer, arrefeceu. Os gritos de ''Lula livre'', pelo menos até aqui, não tomaram as ruas, embora ecoem em vários cantos do país, entoados pela militância artística e de esquerda. E é possível que, passados os primeiros 30 dias de indignação com a prisão, o que sobrevenha a partir de agora seja a gradual resignação e a percepção de que navegar de olho no horizonte é necessário. O pós-Lula ainda não se deu, mas querendo ou não seus companheiros, se aproxima vertiginosamente.

No que tange à direção do PT, o que se viu o estarrecimento diante de uma situação que deveria desde sempre ser considerada. É ridículo — mas não é inacreditável — que a prisão de Lula a tenha pegado de surpresa. A nomenclaturapartidária ainda não superou a fase das bravatas e da ilusão de que soluções que deseja possam se dar por mágica, ou pelo beneplácito da segunda turma do Supremo Tribunal Federal — o que, de fato, não é impossível.

Lutar pela liberdade de seu líder faz sentido e é legítimo. Antes de tudo, todo indivíduo tem direito a um advogado que o defenda. Mas, como partido, agarrar-se apenas à essa esperança revela o vazio. Nos anos 1980, uma blague dizia que ''deus ajuda as crianças, os bêbados e o PT''. O tempo passou, as crianças envelheceram, a ressaca moral se estabeleceu e esse deus parece ter perdido a paciência com os petistas.

O partido que já teve um estado maior de respeito, realista e pragmático — José Dirceu, Antônio Palocci, Luiz Gushiken, José Genoíno e Luiz Dulci, além de Lula —, se perde hoje na convicção ideológica e no sectarismo típico de movimento estudantil. Lideranças de maior visibilidade política e abrangência social, como Jaques Wagner e Fernando Haddad, são constrangidas pelo tacão burocrático de dirigentes como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias.

A legenda prefere se prender ao senso comum de esquerda, com suas palavras de ordem. Como projeto de poder, regride ao jardim da infância de sua história, talvez ainda na crença da blague da proteção divina. Há, é evidente, o medo da fragmentação, sem o Lula que aglutine suas várias tendências. Mas, no fundo, a lógica que desenvolve se prende ao vício adquirido no pretenso hegemonismo que praticou ao longo dos anos.

Frequentemente, admite a formação de uma frente de esquerda, mas limita-se o campo aos satélites de sempre e, claro, com o PT na cabeça da chapa. Há um novo dogma: a suposta transferência de votos que Lula fará ao seu ungido será capaz de colocá-lo no segundo turno, quando o apoio virá por gravidade. É uma aposta simplória. Menos que anular os adversários e vencer a eleição, o PT se preocupa em não perder o domínio de seu campo de esquerda. Esta parece ser sua razão de Estado.

A simples hipótese de uma aliança com o PDT de Ciro Gomes é peremptoriamente descartada por sua presidente e pela maioria de sua direção. Não se admite o diálogo e quem o cogita corre o risco de ser classificado como traidor. Aproximações táticas nos estados, como por exemplo apoiar Márcio França, em São Paulo, liquidando o poder dos tucanos em seu terreno, sequer são consideradas. Como um Quixote, o PT prefere lutar contra moinhos de vento, fiando-se no idealismo puro do amor de Dulcinéia.

Carlos Melo 

Gente fora do mapa

Steve McCurry

Escárnio

O TSE confirmou, na última quinta-feira, que os R$ 888,7 milhões do Fundo Partidário poderão ser utilizados na campanha de 2018, somando-se aos R$ 1,7 bilhão do fundo eleitoral, aprovado ano passado pelo Congresso. Mais de R$ 2,5 bilhões de dinheiro público, nomenclatura absurda para impostos, taxas e contribuições involuntárias pagas pelos brasileiros. (Os encargos são tantos que mereceram um verbete próprio na Wikipédia: Lista de Tributos do Brasil)

Talvez porque o número de zeros nos confunda depois de tantos milhares surrupiados pela corrupção, o valor estratosférico não chame tanta atenção. Mas é uma fortuna.

Convertidos em euros, só os R$ 888,7 milhões do fundo anual, ou seja, dinheiro que o Tesouro Nacional gasta todos os anos com os partidos políticos, viram € 230,3 milhões, quase quatro vezes os € 61 milhões de que os franceses dispõem para fim semelhante. Isso na França, conhecida por ser generosíssima em recursos públicos para políticos.


A insanidade brasileira ainda é acrescida por cerca de R$ 500 milhões de renúncia fiscal a título de ressarcimento das emissoras de rádio e TV que transmitem o horário eleitoral obrigatório, gratuito para os candidatos e caro para o país.

Os defensores do financiamento estatal de candidatos e partidos, que criaram os elefantes sem perguntar ao pagador de impostos se ele concordava em alimentá-los, são os mesmos que consomem outros bilhões de que o eleitor nem chega perto.

O orçamento do Congresso Nacional deste ano prevê gastos de R$ 10,5 bilhões – R$ 6,1 bilhões para a Câmara e R$ 4,4 bilhões para o Senado. Em ambas as casas, mais de 80% com gastos de pessoal.

Tudo isso para uma produção legislativa ínfima.

Análise dos dados da InteliGov feita pelo jornalista Guilherme Venaglia, de Veja, aponta que a Câmara só aprovou 2,6% dos projetos apresentados do início da legislatura até hoje. Em números absolutos, a Casa votou apenas 331 das 12.416 propostas de 2015 para cá. O maior legislador continua sendo a Presidência da República, que conseguiu emplacar 90 das 159 medidas provisórias apresentadas (56,6%).

Dinheiro a rodo que o cidadão não vê voltar. A ele é ofertado quase nada: serviços de baixíssima qualidade, descaso, penúria.

Com mais de 14% de sua população vivendo na pobreza extrema, 13 milhões de desempregados, 1,5 milhão de jovens entre 15 e 17 anos fora da escola, sistema de saúde em colapso e violência em ritmo de guerra, o país não poderia se dar ao luxo de jogar tanto dinheiro fora.

Pior: fazê-lo em nome da democracia, desonrando-a ao conferir a esse estelionato legalizado por quem dele se beneficia o nome de Fundo de Financiamento da Democracia. Um escárnio que não poupa partido algum. Todos dele se lambuzam.

Se é difícil quebrar o pote de mel, o eleitor pode, pelo menos, impedir o retorno dos glutões.

Mary Zaidan

Cinismo dos valores

Cada vez mais desesperado. Olho, olho, e só vejo negrura à minha volta. Fé? Evidentemente... Enquanto há vida, há esperança — lá diz o outro. Mas, francamente: fé em quê? Num mundo que almoça valores, janta valores, ceia valores, e os degrada cinicamente, sem qualquer estremecimento da consciência? Peçam-me tudo, menos que tape os olhos. Bem basta quando a terra nos cobrir! — Ah! mas a humanidade acaba por encontrar o seu verdadeiro caminho — dizem-me duas células ingénuas do entendimento. E eu respondo-lhes assim : Não, o homem não tem caminhos ideais e caminhos de ocasião. O homem tem os caminhos que anda.

Ora este senhor, aqui há tempos, passou três séculos a correr atrás dum mito que se resumia em queimar, expulsar e perseguir uns outros homens, cujo pecado era este: saber filosofia, medicina, física, astronomia, religião, comércio — coisas que já nessa época eram dignas e respeitáveis.
Miguel Torga, "Diário (1942)"

Crédulos e oportunistas

A mais recente denúncia da Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, sobre a propina de 40 milhões de dólares paga a Lula e seu entorno, no caso da ampliação da linha de crédito do BNDES para Angola, desmonta narrativas do lulopetismo.

Dessa feita não se pode alegar que se trata dos juízes Sérgio Moro ou Marcelo Bretas, ou do ativismo de algum membro do Ministério Público Federal do Paraná ou de qualquer estado brasileiro.

Impressiona o número de pessoas intelectualizadas, vividas, que se recusam a enxergar a realidade, a corrupção sistêmica engendrada por uma organização criminosa e profissional, como disse, no STF, o decano da Corte, ministro Celso de Mello.

Muitas pessoas, nas hostes lulopetistas, são tomadas por um fanatismo em defesa não de ideias ou ideais, mas na alegada inocência de Lula, transformado em divindade, visceralmente incapaz dos humanos atos do erro e da busca de vantagens indevidas para si e para os seus.


A credulidade é um fenômeno típico do culto à personalidade e do primarismo na política. Já aconteceu com Stalin, Hitler, Mao Tsé-tung e que também ocorre na dinastia hereditária que ainda reina na Coreia do Norte.

Na América Latina, temos em Perón e Chaves os mais lídimos exemplos. Muitos querem elevar Lula a essa categoria, de ícones populistas. O Brasil é mais complexo, nem Getúlio Vargas obteve este status.

Há também outro tipo de gente. São os oportunistas, aqueles que têm interesses contrariados e afetados pela derrocada do lulopetismo.

Falo dos milhares de contratados para cargos de confiança, nos diversos níveis da federação, sem qualificação, apenas para aparelhar a máquina governamental.

Refiro-me a parte expressiva da burocracia sindical que vê minguarem as generosas verbas anteriormente arrecadas pela máquina governamental, postas à disposição, sem qualquer controle.

Tenho de citar as inúmeras entidades com as quais os governos lulopetistas foram, no mínimo, fartamente generosos.

Há, também, gente do mundo da cultura e das artes, frequentadores assíduos de cerimônias palacianas e de listas de apoiamento, pessoas particularmente beneficiadas na repartição de incentivos oriundos de renúncias fiscais.

Os crédulos e oportunistas vivem dias cada vez mais difíceis. Além da denúncia recente da Procuradora Geral da República, há 5 processos em andamento. Não se vislumbra indicativo de que esse seja o número final.

Novas delações premiadas de figurões do lulopetismo e da máquina criminosa trarão à baila, tudo indica, partes volumosas do rombo causado ao país.

Para os crédulos, será mais do mesmo. Parte deles se fechará ainda mais em guetos fanatizados.

Oportunistas, enquanto interessar, manterão suas narrativas sobre a inocência do pai dos despossuídos, mas, ao sentir as novas direções dos ventos, saltarão do naufrágio lulopetista, sem rubor nas faces.

Não sem percalços e ziguezagues, avanços e recuos, o Brasil avança para se tornar de fato uma república democrática e contemporânea, a despeito e mesmo contra toda sorte de lulopetistas que se agarram à roda da história para puxá-la para trás, sem sucesso.

Paisagem brasileira

Miséria explorada

Desabamento de prédio explicita exploração da miséria. O desabamento do edifício em São Paulo ocupado por uma dissidência do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) explicitou o descaso das autoridades públicas que, além de não terem programas habitacionais para combater a tragédia da falta de moradia, não fiscalizam os pardieiros invadidos por uma centena de movimentos ditos sociais, mas que, em sua maioria, se transformaram em milícias urbanas, arrancando dinheiro de quem não tem nem para viver.

Por outro lado, o principal movimento, o MTST, que ganhou notoriedade pelo protagonismo de Guilherme Boulos no cenário político nacional, não atua para coibir essas verdadeiras quadrilhas que se aproveitam dos que o candidato à presidência do PSOL alega representar e proteger.


O máximo que Boulos conseguiu fazer foi uma declaração de solidariedade, e garantir, estranhamente, que nunca havia ouvido falar nesse movimento que extorquia dinheiro dos sem teto que ele pretende liderar. E ainda deu-se ao luxo de criticar "os que querem se aproveitar de uma tragédia para fazer política".

Se não sabe da existência desse e de outros movimentos semelhantes, no mínimo é um relapso, pois deveria ter informações sobre os que atuam no seu terreno, desmoralizando uma campanha que se anuncia como séria e defensora dos direitos humanos dos que não têm casa para morar.

Boulos e seus assessores tinham, na verdade, obrigação de denunciar esse tipo de gente que se aproveita da miséria alheia. Poderiam aproveitar o acesso que têm às autoridades para propor uma campanha conjunta de moralização desses cortiços, ocupados muitas vezes por quadrilhas de bandidos que encontraram neles um novo filão para ganhar dinheiro ilegalmente, da mesma maneira que vendem drogas dentro das ocupações e facilitam instalações clandestinas, os chamados gatos, que acabam provocando tragédias como a do edifício Wilton Paes de Almeida.

Esses grupos, que no limite são ligados a facções criminosas, assemelham-se às milícias que atuam nas comunidades pobres e favelas do Rio, e precisam ser combatidos. A união de milicianos com traficantes, que a polícia paulista está investigando e a intervenção no Rio está combatendo arduamente, é uma ameaça a toda a sociedade.

Guilherme Boulos teria credibilidade para cobrar da prefeitura atitudes mais eficazes para transformar esses prédios invadidos em moradia barata, com direito à fiscalização dos poderes públicos. A prefeitura de São Paulo, em versões recentes ou mais remotas, desde 1997, quando ocorreu a primeira invasão do MTST em um prédio público de São Paulo, têm responsabilidade maior ainda, pois não podem governar apenas para uma parte da população, esquecendo os que são explorados e permanecem vivendo como animais.

Se Guilherme Boulos não se dedicasse tanto à política partidária, e tivesse uma visão mais ampla do que seja uma verdadeira ação política, não permaneceria em Curitiba prestando homenagem a Lula, esperando receber migalhas do espólio do lulismo. E usando os miseráveis que o seguem com fins partidários, colocando-os à disposição da luta política do ex-presidente.

O presidente Michel Temer, já escrevi aqui, não deveria ter ido aos escombros, por ser uma clara ação política indevida, num ambiente hostil. Mas Boulos tinha obrigação de lá estar presente, e de denunciar a extorsão que estava em curso, distorcendo o sentido da ação social que ele alegadamente lidera.

Dizer que nunca ouviu falar desse movimento, e de diversos outros espalhados pelo país, não é suficiente para expiar sua irresponsabilidade. Afinal, um verdadeiro líder tem obrigação de denunciar os que se aproveitam de situações miseráveis para explorar o próximo. Ou basta denunciar as autoridades burguesas e os capitalistas desalmados para justificar sua atuação política?

Os pontos-chave
1 O desabamento em SP explicitou o descaso das autoridades públicas com a escassez de moradia

2 Guilherme Boulos tinha obrigação de combater quem se aproveita da miséria alheia

3 Movimentos ditos sociais se transformaram em milícias urbanas que exploram miseráveis
Merval Pereira

No Brasil, 160.000 trabalham em condições análogas às de escravidão

Quando os livros escolares informam que a escravidão foi abolida no Brasil em 13 de maio de 1888, há exatos 130 anos, fica faltando dizer que se encerrou a escravidão negra — e que, ainda hoje, a escravidão persiste, só que agora é multiétnica. Estima-se que atualmente 160.000 brasileiros trabalhem e vivam no país em condições semelhantes às de escravidão — ou seja, estão submetidos a trabalho forçado, servidão por meio de dívidas, jornadas exaustivas e circunstâncias degradantes (em relação a moradia e alimentação, por exemplo).

José Francisco de Souza, piauiense, 46 anos, morador de Barras (PI), autor da denúncia que levou à fiscalização da Fazenda Brasil Verde (PA), em 2000. Na plantação, com febre, pediu tratamento. Minutos depois, ele e um colega, que estava com dor de dente, foram levados a pontapés até a casa-sede. Apanharam mais e receberam ameaças de morte, caso se recusassem a trabalhar. A dupla conseguiu fugir. Souza, mesmo com um defeito na perna direita, e o amigo caminharam por três dias, até Marabá, onde fizeram a denúncia contra a fazenda. (Jonne Roriz/VEJA)
Comparada aos milhões de africanos trazidos para o país para trabalhar como escravos, a cifra atual poderia indicar alguma melhora, mas abrigar 160.000 pessoas escravizadas é um escândalo humano de proporções épicas. Em 1995, o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso reconheceu oficialmente a continuidade daquele crime inclassificável — e criou uma comissão destinada a fiscalizar o trabalho escravo. O pior é que, em vez de melhorar, a situação está ficando mais grave.

Reportagem de VEJA mostra casos de pessoas que foram escravizadas — em pleno século XXI. Enredadas em dívidas impagáveis, manipuladas pelos patrões e submetidas a situações deploráveis no trabalho, elas chegaram a beber a mesma água que os porcos e algumas sofreram a humilhação máxima de ser espancadas, para não falar de constantes ameaças de morte.
Leia

Colômbia preparada

Ninguém jamais me explicou porque os colombianos falam o melhor espanhol de toda a América Latina. Não me refiro à elite culta, mas aos homens e mulheres comuns que se expressam com uma notável precisão e eloquência, além da riqueza de vocabulário. É verdade que a Colômbia teve gramáticos e linguistas excepcionais desde o século 19 e, certamente, conhecer a língua e saber usá-la deve ter sido, há muito tempo, o foco dos seus programas escolares.

Outro fato notável e surpreendente desse país é que, apesar de ter sofrido por mais de 50 anos com guerrilhas sanguinárias, ligadas ao narcotráfico, algo que em qualquer outra nação latino-americana teria provocado um golpe de Estado e uma ditadura militar, a Colômbia continuou uma democracia, com liberdade de imprensa, eleições livres e juízes mais ou menos independentes.

Quando o presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) iniciaram negociações de paz, o mundo inteiro comemorou o fato e mais ainda quando, depois de uma longa discussão, ambas as partes chegaram a um acordo que parecia por um fim à guerra interminável.

Por isso, o mundo inteiro (eu também) teve uma enorme surpresa quando, no referendo que deveria consolidar o acordo, os eleitores colombianos o rechaçaram, respaldando aqueles, como o ex-presidente Álvaro Uribe, que se opuseram a ele achando que o governo havia feito concessões excessivas à guerrilha, sobretudo no que diz respeito aos crimes, sequestros e torturas de suas vítimas, praticados pelos guerrilheiros.

Acabo de passar alguns dias na Colômbia, onde serão realizadas eleições no dia 27, e os acordos de paz têm sido o ponto nevrálgico dos debates. Fiquei impressionado com a virulência dos ataques ao presidente Santos pelos oponentes dos acordos firmados, que o acusam de ter feito concessões exageradas a uma guerrilha desalmada, sustentada pelo narcotráfico e que deixou dispersas pelo país dezenas de milhares de famílias de vítimas.

E as críticas parecem contar com o respaldo de um grande segmento da opinião pública. Um exemplo pode dar uma ideia do volume de tais críticas: Humberto de la Calle, que foi o chefe da delegação negociadora do governo e agora é candidato pelo Partido Liberal, tem uma porcentagem ridícula nas pesquisas de intenção de voto, oscilando entre 3% e 4%.

Por outro lado, Iván Duque, candidato do Centro Democrático, partido de Uribe, que tem como vice-presidente Marta Lucía Ramírez, de origem conservadora, lidera as pesquisas com 10 pontos porcentuais à frente do seu adversário mais próximo, o esquerdista Gustavo Petro, ex-prefeito de Bogotá.

Creio que, com o tempo, a história reconhecerá o mérito de Juan Manuel Santos e uma maioria de colombianos terminará aceitando que foi oportuno e corajoso iniciar aquelas negociações para pôr um fim a uma guerra que vinha arruinando o país e obstruindo seu progresso, um anacronismo em uma época como a nossa em que pelo menos uma coisa ficou clara: não é com tiros, assassinatos, sequestros e tráfico de drogas que se acaba com a pobreza, as desigualdades e as injustiças em uma sociedade.

Não há um único exemplo provando o contrário, mas muitos que comprovam o oposto: se as Farc tivessem triunfado, teriam feito da Colômbia uma segunda Cuba ou uma segunda Venezuela, ou seja, uma ditadura brutal e paupérrima.

Com todas as deficiências nesses acordos apontadas por uma maioria de colombianos, eles serviram para deixar uma coisa bem evidente: apesar do que a propaganda revolucionária e extremista fez acreditar, as Farc, longe de representar o “povo”, são uma organização subalterna e temida e ao mesmo tempo desprezada. 


Colômbia e o restante da América Latina sofrem do mesmo modo com a tragédia que vive a terra de Bolívar
A população colombiana em sua imensa maioria as repudia e, em vez de aplaudir sua incorporação à vida política do país, vê isso com ódio e temor. Por isso, o candidato presidencial da antiga guerrilha, Rodrigo Londoño (Timochenko), teve de renunciar a sua candidatura e os únicos parlamentares das Farc no novo Congresso serão aqueles a quem os acordos de paz asseguram um assento, apesar de os votos dos eleitores os terem rechaçado.

Os acordos de paz não teriam sido possíveis sem os duros golpes que o governo de Álvaro Uribe desferiu contra a guerrilha, um governo do qual Juan Manuel Santos foi um enérgico ministro da Defesa. “Faltou muito pouco para acabar com as Farc”, disse-me um amigo. Não sei se é certo, mas é verdade que, sem aqueles sérios reveses sofridos pela guerrilha, causados pelo governo anterior, que devolveram a confiança e recuperaram as estradas e boa parte do território ocupado pelos guerrilheiros, eles jamais teriam concordado em negociar.

O que deve ocorrer agora? Se as pesquisas forem mais ou menos exatas, Iván Duque deve vencer a eleição confortavelmente – talvez no primeiro turno. Apesar da sua juventude, é um homem capaz e, além da sua formação econômica e experiência financeira em organizações internacionais, é uma pessoa culta, que não se envergonha de ler poesia e romances. E tem como vice uma mulher que conheço e não hesito em afirmar que é admirável: Marta Lucía Ramírez.

O risco do populismo e do extremismo de Gustavo Petro parece descartado. Duque e Ramírez não propõem invalidar os acordos de paz, mas aperfeiçoá-los. Não será fácil a tarefa do futuro governante desse país com uma índole democrática tão sólida. Há um milhão de venezuelanos que, fugindo da fome, do desemprego e da repressão que transformaram seu país em um inferno, fugiram para a Colômbia, que os acolheu generosamente.

Mas, entre esses exilados, Maduro, seguindo o exemplo de Fidel Castro quando da famosa emigração em massa de cubanos que partiram do Porto de Mariel, aproveitou para esvaziar suas prisões de criminosos e foragidos e os animou a fugir para o país vizinho. Dessa maneira, deixa espaço para encher as celas de opositores democratas que se multiplicam a cada dia, enquanto a Venezuela desmorona na miséria e no caos, e castiga um país vizinho que abriu os braços às vítimas da sua demagogia e desvarios.

Não só a Venezuela necessita se desvencilhar o quanto antes de Maduro e a camarilha que o acompanha em seus desmandos, mas também a Colômbia e o restante da América Latina que sofrem do mesmo modo com a tragédia que vive a terra de Bolívar.