domingo, 22 de abril de 2018

O outubro de nossas preocupações

O script é difícil e o elenco deixa a desejar. Essa a proposição dominante a respeito da eleição presidencial e de seus efeitos na recuperação econômica do País. Dela podemos derivar uma conclusão provisória: em 2019 o quadro pode melhorar um pouco ou piorar muito.

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Sobre o script não precisamos alongar-nos muito. O governo Temer conseguiu evitar o desastre iminente que se delineou durante o segundo mandato de Dilma Rousseff e chegou a aprovar alguns projetos importantes no Congresso Nacional. Mas ao entrarmos no ano eleitoral as coisas tornaram-se mais difíceis, o tsunami da corrupção pôs toda a classe política em xeque e as relações do Executivo com o Legislativo tornaram-se escorregadias, para dizer o mínimo. Não passamos nem a reforma da Previdência, com o que a questão fiscal continuará a pairar sobre o País como uma espada de Dâmocles, premonição de um possível retrocesso.

Mas a variável-chave, como comecei a dizer, é o elenco. Temos aí uma dúzia e meia de candidatos ou quase candidatos, todos por enquanto muito débeis, nenhum que arrebate os corações e as mentes. O aspecto mais curioso – para não dizer patético – é a óptica pela qual os analistas e observadores tentam decifrar esse caleidoscópio. A maioria se contorce para tentar encaixá-los na dicotomia esquerda x direita. Poucos se dão conta de que esse esquema já deu o que tinha para dar. Os augures (adivinhos) da Antiguidade provavelmente chegariam mais perto da realidade, pois se contentavam em examinar o voo de certas aves ou as entranhas de certos animais, e aí diziam qualquer coisa, o que lhes viesse à mente. Os príncipes ficavam contentes e iam ou não à guerra conforme a “previsão” que lhes era passada.

Os termos esquerda e direita, como se recorda, provêm da Revolução Francesa; surgiram como indicativos das posições ocupadas na Assembleia Nacional pelos jacobinos e girondinos. Assumiram, desde então, pelo mundo inteiro, inúmeros significados, adaptando-se aos interesses políticos das forças em confronto em cada país. Tentar entendê-los por meio de uma análise rigorosa de seus conteúdos é perda de tempo, pois eles variam no tempo e de país para país. Funcionam como totens tribais. Esquerda é o totem dos que se arrogam uma maior sensibilidade social, um conhecimento mais preciso dos meios necessários para aliviar o sofrimento dos pobres e o caminho que leva ao paraíso terrestre – a “sociedade sem classes”. Direita são aqueles que, arrogando-se também os dois primeiros pontos, descartam o terceiro como uma fantasia (ou uma falcatrua intelectual) e conferem importância decisiva à estabilidade social, à segurança, à lei e à ordem. Desde o advento das pesquisas de opinião por amostragem, após a 2.ª Guerra Mundial, inúmeros levantamentos foram feitos sobre essa questão. Em dezenas de países, instados a informar o que entendiam pelos termos esquerda e direita, a maioria dos eleitores nem sequer conseguia oferecer definições genéricas como as que enunciei acima. Tanto nos países mais escolarizados do norte da Europa quanto naqueles, como o Brasil, onde a maioria é quase analfabeta, o porcentual que conseguia tal proeza sempre ficou entre 15% e 20%.

Não creio que algum pesquisador sério conteste essa afirmação. Portanto, na eleição de outubro, é fácil adivinhar que pelo menos uma dúzia dos candidatos tratará simplesmente de encontrar um “nicho” discursivo desocupado onde se possam abrigar: à direita, à esquerda, acima ou abaixo, como disse certa vez o prefeito Kassab ao lançar um novo partido, o PSD.

Considerando, pois, a anemia analítica da dicotomia esquerda x direita, haverá a esta altura algo útil que possamos dizer sobre a eleição e seus efeitos econômicos putativos? Creio que sim. Ao menos por ora, penso que o problema não é o perfil – de esquerda, centro ou direita – dos candidatos mais cotados, mas a dinâmica que vai predominar na campanha: polarização entre um “esquerdista” e um “direitista” exaltados ou uma tendência “centrista”, com a maioria do eleitorado convergindo para um ou mais candidatos de perfil moderado.

A contragosto, dado o raciocínio que venho de expor, tento identificar alguns nomes. O mais fácil é o totem esquerdista, ou seja, o candidato ungido por Lula, admitindo-se que este conseguirá transferir para ele uma grande quantidade de votos. Fala-se em Fernando Haddad, mas aqui surge uma indagação. Haddad não tem perfil incendiário. Nesse cenário, teremos, então, os Stédiles e os Rainhas da vida, que já falam abertamente em “guerra civil”, e talvez o próprio Lula, pressionando um candidato de índole centrista a assumir um papel radical. No polo oposto, com os dados hoje disponíveis, temos Bolsonaro – e outra indagação. Oriundo das Forças Armadas, Bolsonaro presumivelmente atrairá sobretudo eleitores aflitos com a segurança e quiçá adeptos de um modelo econômico nacional-estatizante; mas Paulo Guedes, o economista incumbido de elaborar seu programa de governo, abomina tal modelo.

Dada a manifesta inconsistência dos extremos, é plausível especular que o “centro”, por ora anêmico, venha a se fortalecer. Nesse nicho, o nome óbvio é Geraldo Alckmin, que tem a seu favor uma longa experiência de governo no Estado de São Paulo e um temperamento afável. O problema, além dos modestos índices que ostenta nas pesquisas, é que a recuperação econômica dificilmente atingirá um ritmo suficiente para reverter a sede de sangue que se disseminou em grande parcela da sociedade.

A título de conclusão, devemos, pois, voltar à segunda das duas proposições que enunciei no início. Dependendo da dinâmica eleitoral e do presidente eleito, a situação do País poderá melhorar um pouco, ou piorar muito. Chato é pensar que esse “piorar muito” poderá ser quase uma recaída na era das cavernas.

Dependendo das eleições, a situação do País pode melhorar um pouco ou piorar muito.

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O exército de Pinóquios

“Estão entregando dinheiro na mão de terrorista!”, dizia o vídeo publicado no dia 26 de janeiro pelo site Gospel Prime, um portal de notícias focado no público evangélico com média de quase 2,8 milhões de leitores ao mês. De acordo com a denúncia do site, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o presidente Michel Temer estavam tentando desviar dinheiro de uma obra, por meio de uma Medida Provisória de ocasião, para financiar terroristas palestinos. No Facebook, o líder da bancada evangélica na Câmara dos Deputados, o pastor Takayama (PSC-PR), gravou outro vídeo com um comentário que teve cerca de 4 mil visualizações. “Estão nos comunicando que muito do que é enviado para a Palestina é para patrocinar terrorismo”, disse, grave.


Há uma Medida Provisória que busca liberar, sim, dinheiro para a Palestina. Mas a doação visa reformar quatro das 50 colunas da Basílica da Natividade, igreja construída sobre o ponto considerado local de nascimento de Jesus, que consta como patrimônio histórico mundial na lista da Unesco. Se é apropriado ou não gastar dinheiro público em tal iniciativa, é uma discussão longa. O intrigante era por que o próprio Takayama — que já havia até pedido vista do projeto quando este foi examinado por uma comissão do Congresso — replicava uma notícia errada, falsa e inventada envolvendo dois potenciais candidatos à Presidência em ano eleitoral.

O Ministério das Relações Exteriores publicou uma nota desmentindo a informação, mas o Gospel Prime manteve a postagem no ar. Incluiu o comunicado no pé da página e insistiu no texto original mentiroso, sem errata ou pedido de desculpas. Procurado, Takayama não quis se pronunciar sobre o caso.

A empresa Prime Comunicação Digital, responsável pelo Gospel Prime, tem endereço registrado na pacata Criciúma, em Santa Catarina, cuja população cabe em menos de três estádios do tamanho do Maracanã. Metade do 2o andar do prédio amarelo com pastilhas marrons de dois andares, onde está registrado o CNPJ da firma, pertence à empresa de contabilidade Atual. Subindo as escadas, chega-se a um espaço amplo, mas simples, com móveis e paredes de cores claras. Indagado, o recepcionista informou que a Prime funciona em outro endereço, mas é uma das clientes da empresa. Ele contou que David Gregório, o dono da Prime, trabalha a partir de casa, um apartamento próximo ao estádio Majestoso, casa do time que leva o nome da cidade: “É perto, mas não sou autorizado a te dar o endereço”. Ele anotou um número de telefone em um Post-it e disse que mais informações não poderiam ser passadas sem autorização do patrão.

Telefonei para Gregório e disse estar fazendo uma pesquisa acadêmica sobre sites de mídia alternativa. Sem muito perguntar, ele passou a dar detalhes de seu negócio. Confirmou trabalhar de casa e afirmou ter abandonado o emprego como gerente de posto de gasolina há seis anos, quando o site, criado em 2008, começou a render R$ 300 por mês. Hoje, segundo ele, rende de R$ 10 mil a R$ 20 mil por mês, valor que seria dividido entre seus quatro integrantes fixos. Nesses dez anos, Gregório conta ter se formado em publicidade, mas que aprende muito “pela internet mesmo”. Afirma que todo conteúdo publicado no site passa por sua aprovação.

Foi ele quem puxou o assunto sobre a reportagem que acusava o governo brasileiro de destinar recursos para uma obra que já havia sido concluída com o objetivo de financiar terroristas palestinos: “Dois dias depois que a gente publicou o texto dizendo que a obra estava acabada, que tudo já estava pronto, os camaradas trocaram a placa na Palestina”, disse animado. “Eu tenho certeza de que isso foi uma reação ao que publicamos.” A placa mencionada por Gregório e citada na reportagem estava na porta da Basílica da Natividade, mostrando o prazo da primeira fase da reforma, que acabou em dezembro de 2017. Ela foi trocada, obviamente, quando a reforma entrou na fase dois. O curioso é que Gregório menciona a troca da placa pelo telefone, mas essa informação não consta nas publicações de seu site.

Ele defendeu seu trabalho e seu ponto de vista como uma “cosmovisão”: “Tudo que eu publico, se tiver minha cosmovisão, se tiver meu modo de olhar esse mundo, desse fato, pode ser chamado de fake news, porque não está na mídia mainstream”. Emendando uma frase na outra, ele disse que não quer ser o MBL, o movimento de direita conservadora. “Os diários que eles inventam têm realmente uma cara de fake news. Sabemos que algumas coisas que a gente publica também podem causar estranhamento, mas é porque a gente está vendo um ponto que a grande mídia não olha.” Ele contou ainda que o vídeo com o complô terrorista foi feito por Roberto Grobman, um dos quase 80 colunistas que escrevem para o site gratuitamente. “Essas pessoas acham que o Gospel Prime vai ser a vitrine do pensamento delas.” A equipe fixa, segundo Gregório, é formada por ele e mais três pessoas, das quais somente duas são formadas em jornalismo. Nenhum teve experiência prévia com a profissão.

Perguntei se parlamentares já ofereceram dinheiro para que reportagens a seu favor fossem publicadas. Ele fez uma longa pausa e retomou: “Olha, sempre tem, mas não é interessante para nós”. Finalizou a conversa sem dar mais detalhes e afirmou que “tenta” não se envolver financeiramente com políticos.

Não é bem assim. Seis notas fiscais emitidas pelos gabinetes dos deputados Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) e Geovania de Sá (PSDB-SC), ambos da bancada evangélica, mostram que os parlamentares usaram dinheiro da cota parlamentar para pagar por textos publicados no Gospel Prime entre 2015 e 2016. Cada um custou R$ 250. Os conteúdos eram elogiosos ou visavam repercutir falas polêmicas dos congressistas. “Sóstenes Cavalcante é o deputado mais atuante do RJ” foi publicada em julho de 2015. “Bolsa Família não deveria tornar beneficiários dependentes, diz Geovania de Sá” é de abril de 2016.

Segundo Gregório, o faturamento do Gospel Prime vem de plataformas de propagandas on-line: “Ganhamos com publicidade do Google. A gente tem uma empresa que gerencia a publicidade, também vendemos publicidade direta, mas é pouco. É mais a publicidade que o próprio Google faz a negociação”. De fato, há anúncios dispostos no site por meio da plataforma de publicidade da gigante de tecnologia.

Ele se refere à corrida do ouro digital chamada clickbait (em português, “caça-clique”). Redes como Google e Facebook monitoram os interesses de seus usuários a partir do que cada um curte, compartilha, segue ou busca. Usando os dados disponíveis nas redes, nos computadores e nos smartphones, as plataformas conseguem filtrar os internautas por grupos de interesse. Quanto mais afunilados os filtros — por exemplo, selecionar apenas pessoas que pesquisaram ou curtiram um clube de futebol específico —, maior a garantia de efetividade do investimento em publicidade. Além desse filtro, essas empresas também fazem a ponte entre os anunciantes e os donos de sites onde esse tipo de publicidade será exposta. O pagamento é feito por clique no hiperlink, daí vem o nome caça-clique. Seguindo essa lógica, sites de fake news se inscrevem em plataformas de venda de anúncios e, em busca do maior número de cliques possível, fazem manchetes e textos sensacionalistas de forma a atrair o leitor desavisado.

Ter páginas nas redes sociais é importante para fidelizar a audiência. Uma vez criado o perfil na rede, esses sites se conectam a pessoas reais populares, que compartilham seu discurso levando o link a novos leitores, dessa vez com uma chancela dada pela figura pública reconhecida. Exatamente como, no caso do Gospel Prime, o deputado Takayama fez em seu vídeo.

A criação de redes entre sites e perfis divulgadores de fake news dá ao internauta a falsa impressão de que o assunto está sendo repercutido, quando, na verdade, muitas vezes é o mesmo autor ou o mesmo e pequeno grupo de autores trocando a bola entre si. Isso, aliado à estratégia de publicar um vasto material verídico com uma informação errada misturada no meio, traz uma falsa sensação de credibilidade, que leva a pessoa a confiar — e clicar — mais naquele site. O Gospel Prime, por exemplo, não publica única e exclusivamente informações falsas, mas, de vez em quando, solta pérolas como a dos terroristas palestinos ou a de um cientista que colocou em xeque a Teoria da Evolução (que, na realidade, acabou demitido).
Helena Borges

O ativismo político do STF

O Supremo Tribunal Federal tornou-se fator de instabilidade político-institucional. Deveria ser o contrário, caso cumprisse o papel que lhe cabe, de guardião da Constituição e da lei. Mas não cumpre: tem sido, sobretudo, uma Corte política e legislativa.

As questões que lhe são encaminhadas podem ter seu desfecho antevisto dependendo do perfil político do ministro ou da turma que as examinará. Se, por exemplo, tratar-se de habeas corpus a um político e couber à segunda turma, integrada por Toffoli, Lewandowski e Gilmar Mendes, é improvável que seja rejeitado.


Se couber à primeira turma, é quase certo que ocorrerá o contrário. Cada ministro é, bem mais que um juiz, um militante.

Mas não é só isso. Ignora-se, por exemplo, o prazo de validade de uma jurisprudência, que, em tese, deve orientar o público e viger com força de lei. Não pode, pois, mudar ao sabor dos ventos.

Mas é o que tem ocorrido. Agora mesmo, por exemplo, anuncia-se que o ministro Marco Aurélio voltará a colocar em exame a prisão em segundo grau, recém-definida quando da rejeição ao habeas corpus do ex-presidente Lula.

Será a terceira vez em um ano e meio – e a segunda em menos de um mês. As ações declaratórias de constitucionalidade (ADC) anteriores, do Partido Ecológico Nacional (PEN) e da OAB, tiveram da parte de ambos requerida sua retirada de pauta.

Não as queriam vinculadas à causa de Lula, já que encaminhadas em outro contexto. Mas eis que o PCdoB ingressou com outra e idêntica ADC, que manteve o tema em pauta.

Em circunstâncias normais (algo há muito ausente do país), a Corte nem deveria recebê-la. O ex-ministro Carlos Ayres Brito costuma dizer que o STF é uma porta que só se abre por dentro. Isto é, nem tudo o que lhe encaminham deve ser recebido.

Se não há cabimento, rejeita-se liminarmente. É o caso dessa ADC, tendo em vista a recentíssima definição do tema. A própria ministra Rosa Weber, contrária à prisão em segundo grau, resignou-se a aceitá-la tendo em vista a vontade soberana do colegiado.

Mesmo não tendo mudado sua convicção, a ministra argumenta – e com razão – que uma jurisprudência não se muda de uma hora para outra, ainda que a composição da Corte mude.

A isso se chama segurança jurídica, outro produto em falta no país. E isso decorre em parte do ativismo político da Justiça. Os ministros Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, embora arqui-inimigos, estão de acordo num ponto: a Corte é política mesmo e deve exercer essa prerrogativa. A lei, nesses termos, é secundária.

Barroso, inclusive, acusou Gilmar de “não ter uma ideia, uma causa”. Ora, a “causa” de uma Corte judicial, sobretudo a Suprema, é a Constituição – e nada mais. Mas o STF legislou reiteradas vezes em questões eleitorais, comportamentais e tem em pauta temas que não lhe cabem como Poder: entre outros, legalização das drogas e do aborto, prerrogativas do Poder Legislativo.

O argumento é de que tais temas, pela controvérsia que provocam na sociedade, são evitados pelo Congresso. Mas o papel do Congresso é exatamente este: auscultar a sociedade e só viabilizar aquilo que nela encontre aceitação. O do Judiciário é se ater àquilo que virou lei. Se alguém lá, como Barroso e Gilmar Mendes, achar a lei ruim, que busque um mandato parlamentar para mudá-la.

Ruy Fabiano

É bife ou não é?

O Impossible Burger, primeiro produto do gênero a ser vendido em grande escala numa grande rede de fast food americana, a White Castle que começou a oferece-los nas suas 140 lojas de Nova York, New Jersey e Chicago esta semana, não contém carne mas tem o gosto, cheira e sangra como a coisa verdadeira.

Qual é o ingrediente secreto?

Neurociência.

Nada a ver com os hamburgueres vegetarianos que andam por aí ha tempos. Essa mistura de trigo, óleo de coco, batata e um composto vegetal que contém muito ferro nunca chegaria ao que chegou não fosse o intrincado processo de alta tecnologia que permitiu à Impossible Burguer “enganar o cérebro humano”, por assim dizer, para fazer tudo nessa massa “soar” como carne para cada um dos nossos sentidos (veja como no video).

Mas essa ainda não é a grande revolução.

O que vai mudar o mundo mais uma vez – e com todas as alegrias e tristezas que mudanças desse calibre trazem – são as carnes cultivadas em bioreatores a partir de células-tronco de fibras musculares e de gordura mergulhadas em caldos de nutrientes. Os hambúrgueres que “crescem” assim já existem. O gosto ainda é um problema porque não é fácil reproduzir tudo que um organismo vivo consome e processa para produzir as carnes que conhecemos, mas Sillicon Valley jura que acabará chegando lá (startupsisraelenses e européias também disputam a ponta nessa corrida).

Em 2013 desenvolver 1 quilo dessa carne custava 2,5 milhões de dólares. Desde então esse custo caiu 99% mas ainda é muito mais alto que o da carne animal. O gargalo é um ingrediente essencial: o soro fetal bovino extraído dos fetos ainda dentro das vacas prenhes. É isso que desencadeia a reprodução out ou in vitro das células. Controlar a mistura certa de carne e gordura ao longo desse processo também não é simples, mas a “carne limpa” definitivamente vem aí e é pra já.

2020 é o ano de consenso para ela ultrapassar a faixa da viabilidade comercial. Será também o ano que marcará o início do fim final da cultura boiadeira/cauboy, com todos os dramas implicados, e o início da devolução de vastas porções de terra roubadas à natureza para a criação de gado e do grande tsunami econômico que tudo isso vai provocar.

Então, para além da alegria de vermos os 2ésleys quebrarem a cara e a lavanderia gigante do PT minguar, teremos de amargar a culpa por termos destruído florestas que tecnologia nenhuma será capaz de replicar que vieram da eternidade até aqui incólumes, às vésperas disso se confirmar como um desperdício ainda mais insano e sem sentido do que já parece hoje.

Fernão Lara Mesquita, matéria condensada da Quartz

Paisagem brasileira

Ipê, Luiz Pinto

Não tem nem mas, nem meio mas

Porém, no entanto, todavia, contudo, não obstante. Horas que as letrinhas adversativas chegam apenas para mascarar. Essa mania nacional de pensar claudicante e de pouca firmeza em opiniões pode nos levar a um buraco muito mais fundo do que aquele em que já estamos. Eu não sou isso, aquilo, mas… não cabe nesse momento. Ou é ou não é. Ao menos assumam. Respeitem nossa inteligência. Nada de votos envergonhados

Já começou a temporada do “Eu não sou…, mas” – e lá vem defesa do indefensável. Tenho reparado que essa praga volta com força máxima e logo agora que tanto precisamos de opiniões e atitudes certeiras, decididas. É igual a usar excessivos gerúndios, que estou convencida que é um vício que “pegou” porque é apenas uma forma, um jeitinho, de ir levando, ir fazendo, ir ganhando tempo, de não fazer é nada, como combina com o caráter nacional. Acabemos com isso, enquanto é tempo. Não é hora para covardes vindos de nenhumas das várias pontas da questão Brasil.

Direto ao ponto, para ser mais clara. Um candidato à eleição presidencial vem se fazendo apenas (até porque não tem outras qualidades) em cima de polêmicas absurdas, despreparo, atraso, manipulação de informações e do desespero de brasileiros em várias áreas, em especial a violência. Ele não é novo, não é exótico; é apenas uma besta. Estou falando, claro, de Jair Bolsonaro, que, pior ainda, tem filhotinhos bolsonarinhos. Pronto, já deixo claro aqui o que eu acho desse nome: traz as trevas, não tem a menor condição, é mais uma palhaçada que se criou nesse ambiente doente e árido em que vivemos. Eu acho isso. Respeito, embora não há argumentos que possam justificá-lo, quem admite de forma desenvolta que ficará com ele.

Mas já irrita profundamente, e as tenho encontrado com alguma insistência, especialmente nas redes sociais, pessoas que escancaram um “Eu não sou Bolsonaro, mas…” seguido de uma série de argumentos favoráveis a essa angustiante opção. Esse tipo de sentimento gerou Malufs, Cabrais entre outros insolentes que acabaram no poder. E acabaram com o país e com o nosso crédito na política.
Do outro lado: “eu não sou petista, mas…” tem impressionado muito, porque precisa ter capacidade, ou um bom pagamento de soldos, para vir a público defender, não só o Lula, mas toda a corja que se formou dentro do partido que era a esperança, e virou um verdadeiro e escancarado lixo, para dizer o mínimo. Gosta dele, Lula, quer vê-lo fora da cadeia? Ok. Bárbaro. Hashtag para você também. Mas por favor, pare aí. Não venha com lamúrias, ousar dizer que não houve julgamento, sendo que passou por todas as camadas, esferas e estratosferas. Fora que esse processo que corre mais lépido é apenas um entre outros muito mais cabeludos. Muito mais.

Entendo e admito que no meio de mais de uma dezena de opções absolutamente atemorizantes se definindo como candidatos, nossa cabeça esteja mais para biruta de aeroporto. Mas há de haver detalhes inegociáveis. O respeito aos direitos individuais, à liberdade de expressão, aos mecanismos democráticos de controle, ao Estado Laico.

Dentro disso tudo, repito, não tem nem mas, nem meio mas…Não pode ter.
Não sou racista, mas… Respeito as mulheres, mas… Não tenho nada contra gays, mas… É muito covarde e gera atos tão covardes quanto. Não acredito em bruxas, mas…

Podemos usar o tal mas em outras formas, nas quais denota defeito. Por exemplo: Lula é um líder, mas deixou rastros e provas de ter se beneficiado pessoalmente; Bolsonaro surgiu, mas sua incapacidade intelectual e gênio o tornam inábil e perigoso. Eles, entre outros nomes que se apresentam nas esferas estaduais e federais, são a personificação do mas, em sua terceira opção, a da dificuldade, porque são a própria negação, o embaraço, o obstáculo, o inconveniente, a objeção. Mas é adversidade, e não aguentamos mais tantas delas.

Apelo: “mas” enquanto conjunção sempre ligará duas orações. Aproveito: que assim seja, Deus nos livre deles! – mas se eles insistirem será preciso combatê-los. Com firmeza.

Crime com CPF e identidade

Não é que o crime não compensa. A questão é que, quando ele compensa, muda de nome. Passa a se chamar Paulo Maluf. No momento, uma legião de malufes se esforça para derrubar no Supremo a jurisprudência que permite a prisão de condenados na segunda instância

Prerrogativas seletivas

Leonardo Boff, ao apelar para que lhe fosse permitido visitar o ex-presidente Lula, declarou: “Eu que sou velho amigo de Lula vim em uma missão espiritual. Como uma lei divina pode ser negada por uma juíza terrena?”. Modesto o ex-frade, não é? Sua missão espiritual seria uma lei divina?

Lula desrespeitou as leis terrenas, as leis de seu país. Desrespeitou também as leis de Deus. Deve mesmo precisar receber consolo espiritual, o mesmo que todos precisamos ao passar por sofrimentos de qualquer natureza. Estou segura que se ele disser ao guarda de sua cela que precisa se confessar, a Polícia Federal de Curitiba providenciará um padre para lhe ouvir. Um padre que reze missas na Catedral de Curitiba poderia ouvi-lo e lhe dar a comunhão, caso Lula pedisse após se confessar.


Boff, assim como senadores e deputados, acha que essa é uma prerrogativa dele, que não precisa passar pela Justiça, que é a guardiã de Lula. Quantas vezes Boff usou dessa prerrogativa para visitar e consolar presos em nossas prisões? Quantas vezes comissões de senadores e deputados fizeram inspeção nas prisões em seus estados? E quais foram as conclusões a que chegaram? E quais foram as medidas que tomaram para melhorar a situação dos encarcerados?

De repente, muitas pessoas acharam ser fundamental uma visita ao Lula. Por quê? Certeza não tenho, mas parece que estão usando o ex-presidente para se promover. O senador que falou em nome de seus pares ao encerrar a visita declarou que a cela estava em boas condições, que Lula estava bem, apenas solitário. Queriam que o juiz o enviasse para uma cela coletiva? Será que o Lula ia ficar mais sossegado, mais feliz, se dividisse uma cela com seus ex-companheiros de governo? Se for esse o caso, sugiro que ele aguarde uns dias, logo, logo José Dirceu irá para Curitiba e aí os dois vão poder trocar umas ideias. Quer dizer, se prevalecer a tese de que o Lula não quer ficar solitário.

Outra coisa, essa ainda mais curiosa: com que intuito Adolfo Perez Esquivel tentou visitar o Lula? O jornalista Ricardo Kotscho, em seu site Balaio de Gatos, criticou a decisão de não ser permitido ao Nobel argentino visitar Lula. Kotscho, jornalista sério que se expressa num português excelente, acha que esse gesto autoritário foi um vexame internacional e cobra do Itamaraty alguma providência. Fiquei decepcionada… Será que Kotscho não reconhece que existe ao menos uma possibilidade de estar enganado? Que Lula errou? Que jogou fora a oportunidade de fazer Bem ao Brasil?

Querem porque querem convencer o mundo que Lula é um preso político. Francamente! Preso político condenado por tribunais com sessões transmitidas ao vivo? Preso político com processo correndo na Suprema Corte de seu país? Preso político com imprensa livre?

Sabem de uma coisa? Quem quiser que conte outra…
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Gente fora do mapa

London was blitzed heavily in the war, and the resulting damage was catastrophic for its social and economic climate. But for children that weren't evacuated, many bore the brunt of war's wrath.

Aceitação da fraude

Uma das lições mais tristes da história é a seguinte: Se formos enganados durante muito tempo, temos tendência a rejeitar qualquer prova de fraude. Deixamos de estar interessados em descobrir a verdade. A fraude apanhou-nos.
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É demasiado doloroso reconhecer, nem que seja para nós mesmos , que fomos levados à certa. Uma vez que damos a um charlatão poder sobre nós mesmos, quase nunca o recuperamos. Por conseguinte, as velhas fraudes têm tendência a persistir, ao mesmo tempo que surgem outras novas
Carl Sagan

O poder de dividir

De tudo o que aconteceu em abril do ano passado durante a palestra do deputado Jair Bolsonaro no clube Hebraica do Rio de Janeiro, o mais estarrecedor não foi nem o que ele disse e que levou a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a pedir há pouco ao STF sua condenação a três anos de prisão e multa de R$ 400 mil pelos crimes de racismo contra quilombolas, indígenas, refugiados, mulheres e gays. Afinal, não havia nada de novo no que foi dito, era apenas uma parte da conhecida folha corrida de Bolsonaro, da qual constam homofobia, xenofobia, misoginia. Além disso, ele já era réu em duas ações que tramitam no Supremo — uma por apologia ao crime de injúria e outra por incitação ao estupro, ambas relacionadas ao episódio em que ofendeu a deputada Maria do Rosário, dizendo que ela não merecia ser estuprada porque era feia.

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O que na verdade mais chocou na Hebraica foi a reação da plateia. Estavam ali umas 300 pessoas que, certamente, sabiam pela História ou por relato de algum parente, amigo ou conhecido o que foi o Holocausto, o maior genocídio do século XX, quando seis milhões de judeus foram conduzidos às câmeras de gás como animais levados ao matadouro — apenas por serem judeus.

Pois aquelas pessoas deram boas risadas quando ouviram o palestrante contar sua visita a um quilombo. “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas”, ele disse, provocando inacreditáveis gargalhadas. “Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador servem mais”. Outras tantas risadas. Depois, gritos de “mito, mito”. Ouça a gravação na internet e veja se descobre o motivo de alguém achar graça em tamanho desprezo pelo gênero humano — apenas por serem negros.

Houve protestos contra a presença na Hebraica de quem “tem ideias como as que causaram o Holocausto”. Do lado de fora, um grupo que não pôde entrar (era só para convidados) gritou palavras de ordem e exibiu cartazes como “sionista não apoia fascista”.

Mas, por outro lado, houve também um abaixo-assinado da Associação Sionista Brasil-Israel, com mais de sete mil signatários, em defesa de quem, segundo o documento, “tem se mostrado o maior amigo do Estado de Israel”.

Só que esse manifesto foi considerado “apócrifo” pela Fierj. Em nota, ela reafirma sua condição de “única entidade” que representa os judeus no Rio. “A Fierj ratifica o desconhecimento da existência da autointitulada Associação Sionista Brasil-Israel e repudia qualquer manifestação em nome de seus representados em relação ao tema ali tratado”.

No STF ainda não há previsão para o julgamento da denúncia na Primeira Turma. Mas qualquer que seja o resultado, Bolsonaro conseguiu um nada invejável feito: dividir a comunidade judaica.

O mundo livre

Dia desses fiquei a lembrar do mundo que vi quando criança. Havia a "Cortina de Ferro", ou o "Império do Mal", no qual a repressão do Estado era impiedosa. Em contraste, o "lado de cá" era o "Mundo Livre". Palavras como "privacidade", "direitos humanos" e outras de idêntico valor, sagradas para o "lado de cá", não existiam nos dicionários do "lado de lá".

Recordo-me dos filmes daquela época. As cenas "do lado de lá" eram sempre cinzentas, pálidas, quase sem cor, mostradas sob trilhas sonoras capazes de deprimir o mais renitente dos otimistas. Já as do "lado de cá" destacavam-se pelo colorido intenso, compondo, com músicas sempre alegres, uma mensagem de amor pela liberdade.

Minha infância, assim como o "lado de lá" e o "lado de cá", acabou. Trombeteia-se, sobre os escombros do Muro de Berlim, a vitória do "Mundo Livre".

Enquanto todas estas coisas maravilhosas vão acontecendo, um jornalista da BBC, retornando para seu hotel de madrugada, teve a infeliz ideia de atravessar, fora da faixa, uma rua deserta da cidade de Adelaide, na Austrália - acabou submetido por nada menos que quatro zelosos policiais. Descobri que, naquele país, quem perturba um casamento pode acabar condenado a dois anos de prisão.


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Nos EUA, é proibido alimentar mendigos - quem o fizer passará uma temporada em alguma cela. Na França, em Calais, terá igual destino quem doar comida para imigrantes famintos - que sequer de banheiros dispõem, já que a polícia ameaçou carregar voluntários que instalavam alguns.

Na Europa, descobriram que as salas utilizadas pelas delegações da União Européia em Bruxelas estavam "grampeadas". No Reino Unido, denunciou-se que 25% das informações recolhidas pelo governo sobre a população violam direitos constitucionais básicos. Nos EUA, descobriram que uma só agência governamental armazenou nada menos que 151 milhões de registros telefônicos em 2016.

Não nos esqueçamos, finalmente, daquela "cultura de segurança" que empurra-se pela goela abaixo da população, no mais das vezes para mascarar os pecados dos Estados. Foi assim que aquelas "sinistras barreiras policiais" do "lado de lá" se transformaram em "blitz" do "lado de cá" - cujos alvos, tanto "lá" como "cá", são quase sempre pacatos cidadãos.

Que estranho! Será que, ao final das contas, o "Mundo Livre" perdeu?

Pedro Valls Feu Rosa