sexta-feira, 20 de abril de 2018

Democracia de verdade

É preciso continuar a acreditar na democracia, mas numa democracia que o seja de verdade. Quando eu digo que a democracia em que vivem as actuais sociedades deste mundo é uma falácia, não é para atacar a democracia, longe disso. É para dizer que isto a que chamamos democracia não o é. E que, quando o for, aperceber-nos-emos da diferença.
Aula de democracia. #quadrinhos #tirinha
Nós não podemos continuar a falar de democracia no plano puramente formal. Isto é, que existam eleições, um parlamento, leis, etc. Pode haver um funcionamento democrático das instituições de um país, mas eu falo de um problema muito mais importante, que é o problema do poder. E o poder, mesmo que seja uma trivialidade dizê-lo, não está nas instituições que elegemos. O poder está noutro lugar
José Saramago

Ganhar ou perder

As pesquisas mostraram que há muitos candidatos à Presidência, mas ainda poucos votos. Conheço quase todos os candidatos pessoalmente, incluído Levy Fidelix, cuja campanha documentei em 2015, assim como outros considerados nanicos na época. Discutir suas qualidade e seus defeitos é um esforço válido, mas não é isso que farei em 2018. O que posso fazer apenas é ajudá-los a ganhar ou perder votos, lembrando grandes temas para a sociedade, nos quais nem sempre eles se fizeram presentes.

Poucos dos mais votados falaram, por exemplo, de duas questões muito discutidas no momento: a prisão em segunda instância e a revisão do foro privilegiado. É compreensível que mantenham uma certa distância. Abraçar esses temas e ampliá-los com uma perspectiva de combate à corrupção não é bem visto entre os políticos. Muitos candidatos são discretos nesse ponto porque não querem perder o apoio dos seus pares, muito menos arriscar-se a um confronto com o Congresso, em caso de vitória.

Como em todas as eleições, assumir uma linha política nem sempre representa apenas mais votos. É sempre um jogo de ganha e perde.

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A própria esquerda será chamada a se definir, mas hoje, por uma questão de coerência, ela associa a prisão após segunda instância à presença de Lula na cadeia. E certamente terá de adotar a posição mais leniente, que prevê prisão após o trânsito em julgado.

É uma posição defensável, em nome da liberdade individual, sobretudo se omitir suas terríveis consequências, como a sobrevivência do sistema de impunidade, que tanto contribuiu para arruinar o País. Seria assim uma posição ultraliberal, defensável apenas num regime burguês, já que os regimes de esquerda não conhecem essa história de trânsito em julgado: muitos deles prendem sem contemplação, até inocentes.

Mas é importante prever um espaço para a esquerda, sobretudo para o candidato indicado por Lula. Mais da metade dos eleitores de Lula votariam nele.

Se existe um problema de ganha e perde votos, hoje, esse problema é o medo nas cidades brasileiras. Bolsonaro adiantou-se alguns meses, propondo armamento, defendendo a tese de que bom policial é o que mata, e mais alguns componentes que o aproximam de uma política de tolerância zero com o crime.

É isso mesmo, ou existe alguma alternativa? Nesse caso, não vale apenas dizer apenas que é preciso haver empregos, educação e tudo mais. É necessário mostrar que existem escolhas mais eficazes, apresentar uma política específica de segurança pública.

O crime organizado é uma realidade nacional. Ele domina as cadeias e todas as redes de tráfico de drogas no País. Numa cidade como o Rio de Janeiro, as milícias, por exemplo, controlam territórios onde moram 2 milhões de pessoas.

Tudo isso é um desafio para os candidatos. Eles têm de mergulhar no tema e dizer alguma coisa – ganhar ou perder votos, isso é do jogo.

Esse perde e ganha se transporta também para a base. Todos prometem crescimento econômico. Mas que tipo de crescimento? Vão entulhar as ruas de carros individuais? Lembrem-se de 2013.

Os candidatos hoje em dia são aconselhados a evitar alguns temas, escolher apenas o que as pesquisas recomendam. Mas quando alguns temas dominam a cena e os candidatos são protagonistas distantes, sempre vai haver pouco voto.

Mesmo sem esquecer que há um segundo turno, o ideal seria que os candidatos já expressassem grandes correntes. No passado, isso era canalizado pelos dois grandes partidos. Mas PT e PSDB vivem cada um o seu inferno com a Lava Jato.

O PT perdeu seu candidato e o PSDB, embora se afaste de Aécio, não conseguiu dar o passo fora do círculo. Geraldo Alckmin sentiu um alívio porque o inquérito sobre as doações da Odebrecht foi para a Justiça Eleitoral. Sua grande vitória: ter-se livrado da Lava Jato.

É um equivoco. Em primeiro lugar, porque fortalece o discurso de que a Justiça persegue uns e protege outros. Em segundo lugar, se é inocente e está tudo bem, nada melhor do que ser investigado pela Lava Jato, que acumula grande capacidade técnica, até para inocentar. Para um candidato à Presidência, fugir da Lava Jato não é bom esporte neste outono.

Numa corrida em que tudo pode acontecer, a sociedade, que já se desapontou com os grandes partidos, precisa de salvaguardas. Um delas é trazê-los para o debate dos temas que lhe interessam de fato. É sempre possível argumentar que os políticos têm uma linguagem escorregadia e, além disso, nunca cumprem exatamente o que prometem.

Mas não se pode pensar em eleições como se fossem as mesmas sempre. Ainda não é o ideal, mas nunca se teve tanta transparência, nunca se esteve tão atento aos caminhos da política.

Dizem que os 11 ministros do STF são tão conhecidos como a seleção nacional de futebol. Não tenho elementos para contestar ou validar. Sei apenas que muita gente se esforça para escalar aquela muralha de palavras difíceis, citações, para se aproximar do que realmente interessa: saber qual o placar do jogo, se há esperanças no combate à corrupção.

Ainda é muito cedo para prever, mas tudo indica que a indignação não é o único elemento. As pessoas sabem mais do que no passado. Sabem porque conheceram o declínio do sistema político-partidário e sabem porque se dotaram de meios técnicos superiores.

Não vai adiantar muito ficar meio escondido no debate, nem se proteger com um exército de robôs multiplicando fake news. Esta é uma eleição singular no Brasil, depois de tudo o que vivemos. A grande personagem é a sociedade que emergiu de todos esses traumas. Sua atuação é imprevisível. Conheceu a fragilidade humana dos seus líderes e, no mínimo, vai buscar os melhores mecanismos de controle.0

Levado a sério, um programa de governo é um deles.

Imagem do Dia

Arroyuelo

STF privilegiou a ética quatro vezes em 14 dias

Os bons costumes começaram a prevalecer no Supremo de forma surpreendente. Nos últimos 14 dias, de cinco decisões da Suprema Corte apenas uma premiou a falta de ética. O tribunal empurrou Lula para a cadeia, manteve Palocci preso, converteu Aécio em réu e negou a Maluf um recurso —embargo infringente— que reabriria o debate sobre sua condenação. A moralidade só não ficou invicta porque a Segunda Turma ressuscitou o ficha-suja Demóstenes Torres, permitindo que ele se recandidate ao Senado.

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É importante registrar cada vitória da ética porque certas decisões e opiniões de magistrados dão ao Supremo a aparência de um órgão muito distante, uma Justiça lá longe. O que é angustiante num país como o Brasil, onde o crime é tão perto. Além do impacto que essas decisões mais recentes tiveram nos casos concretos, elas têm reflexos sobre o esforço anticorrupção.

Com Lula, o Supremo reafirmou a regra da prisão na segunda instância. E reaproximou José Dirceu do xadrez. Com Palocci, avalizou as prisões preventivas da Lava Jato. Com Aécio, feriu a invulnerabilidade do tucanato. Com Maluf, agora um preso domiciliar, o Supremo restringiu a hipótese de recursos aos larápios. Tudo foi obtido aos trancos —em geral pelo magro placar de 6 a 5. Uma evidência de que ainda há no Supremo quem se disponha a ser flexível com o roubo. O grande problema é que o brasileiro prefere não ser roubado.

O que a imprensa transpira

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É impossível percorrer uma qualquer gazeta, seja de que dia for, ou de que mês, ou de que ano, sem aí encontrar, em cada linha, os sinais da perversidade humana mais espantosa, ao mesmo tempo que as presunções mais surpreendentes de probidade, de bondade, de caridade, a as afirmações mais descaradas, relativas ao progresso e à civilização.

Qualquer jornal, da primeira linha à última, não passa de um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, impudicícias, torturas, crimes dos príncipes, crimes das nações, crimes dos particulares, uma embriaguez de atrocidade universal.

E é com este repugnante aperitivo que o homem civilizado acompanha a sua refeição de todas as manhãs. Tudo, neste mundo, transpira o crime: o jornal, a muralha e o rosto do homem.

Não compreendo que uma mão pura possa tocar num jornal sem uma convulsão de asco.

Charles Baudelaire, "Diário Íntimo"

A locomotiva e o trilho

A autodenominada “esquerda” continuou amarrada a ideias superadas pela realidade e ficou defensora de interesses arraigados em setores privilegiados, tanto de capitalistas quanto de trabalhadores. As surpreendentes transformações na realidade construíram um mundo diferente daquele que servia de base às formulações da esquerda tradicional. A globalização desestruturou a lógica do nacionalismo; a automatização e a inteligência artificial retiraram o protagonismo revolucionário da classe de trabalhadores; o esgotamento de recursos naturais eliminou a utopia do consumismo para todos.

A crise consequente, de entendimentos e de propostas, deixou de ser apenas do capitalismo e passou a ser da civilização industrial por inteiro. Essa nova realidade exige uma nova percepção e postura no papel do Estado na economia. Ao perder a sintonia com o avanço das ideias e compromissos com as reformas necessárias, a esquerda ficou reacionária.

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A partir de agora, os que defendem o progresso social e econômico deverão entender que ao Estado cabe definir e construir o trilho para o futuro, mas a locomotiva deve estar nas mãos da sociedade: seus trabalhadores, empresários, organizações sociais. Ao Estado cabe estabelecer regras e fazer investimentos que permitam a estabilidade política e jurídica; a construção de um sistema educacional que ofereça o máximo aproveitamento de todos os cérebros da população e garanta a mesma chance para cada indivíduo desenvolver seu talento pessoal e, com isso, construir uma sociedade eficiente, rica e justa, com a renda bem distribuída.

Além disso, administrar serviços públicos e de assistência social com qualidade e eficiência; garantir o respeito ao equilíbrio, tanto ecológico quanto monetário, para dar sustentabilidade ao progresso e ao bem-estar social; adotar firme compromisso com as regras necessárias para que a economia funcione eficientemente, de maneira a gerar os recursos necessários à construção de uma sociedade justa; entender que a justiça social não pode ser construída sobre uma economia ineficiente. A esquerda precisa compreender que eficiência no uso dos recursos não é um conceito burguês, mas uma condição necessária ao progresso.

A sociedade brasileira tem hoje a percepção de que os partidos que se dizem de esquerda não cumpriram o compromisso moral de governar com ética; mas ainda não percebeu a corrupção deles nas ideias, ao abandonarem o compromisso com a verdade e com a formulação de propósitos justos e viáveis para o futuro. A autodenominada “esquerda” continua com a visão nostálgica de quando a dinâmica econômica e o bem-estar social decorriam da intervenção governamental. Com isso, perde sintonia com o espírito do tempo: não defende a ética na política, não luta pelas reformas necessárias, deixa de ser vetor do progresso, fica de direita.

Daqui para a frente, o Estado faz o trilho da história, e a sociedade move a locomotiva por onde o povo e a nação vão ao futuro desejado.

Paisagem brasileira

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Liberdade de imprensa sob tiroteio

Está curso em Portugal uma polémica sobre a transmissão, pela televisão, de excertos de interrogatórios de denunciados na Operação Marques,que envolve 28 arguidos, 19 pessoas e nove empresas, entre elas o ex-primeiro ministro José Sócrates. Embora ainda se discuta o tema no Brasil, este tipo divulgação não constitui novidade para os brasileiros. Já assistimos, algumas vezes, o Juiz Sérgio Moro interrogando prisioneiros da Lava Jato , delatores e testemunhas. Mas em Portugal, sem permissão do Judiciário e dos denunciados,configura-se o crime de desobediência, ainda que o inquérito não esteja sob segredo de Justiça, caso deste mediático processo.

A restrição não colabora para o fortalecimento da democracia e tem servido, muitas vezes, para proteger criminosos. É o que pensa também boa parte da imprensa portuguesa .Jornais e revistas desafiam a proibição e divulgam o que julgam importante a opinião pública conhecer. Esta semana, o canal da televisão SIC Notícias iniciou uma série de reportagens sobre a Operação Marquês, apresentando documentos, gravações telefónicas, vídeos e outros indícios de prova, além de cenas dos interrogatórios de Sócrates, do ex-Presidente do Banco Espírito Santo,Ricardo Salgado e dos ex-gestores Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, da Portugal Telecom, aqueles das trapaças com a Vivo e a Oi.

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As reportagens são o assunto do momento no país, incendiando discussões nos bares,cafés,restaurantes e sobretudo entre famosos causídicos e personalidades da vida nacional. A Procuradora-geral da República,Joana Marques Vidal, menos assertiva que Raquel Dodge, disse ter ficado “ desagradada” com o fato. O Ministério Público vai abrir inquérito para a apurar o caso. Os advogados, a OAB local , a Associação Sindical dos Advogados Portugueses e aliados dos denunciados bradam aos quatro ventos contra os jornalistas. É a liberdade de imprensa sob tiroteio.

Se há segredo de justiça, deve ser protegido, mas apenas em determinadas circunstâncias, quando prejudica a investigação ou há risco de exposição pública e de questões privadas do investigado ou réu. Não é o caso dos lava-jatos portugueses. Tradicionalmente, o segredo de justiça tem servido não só para proteger a investigação, como os arquivamentos e as prescrições .Mas é difícil ser contra a ideia de que o acesso a fatos políticos, económicos e sociais relevantes, ainda que sob investigação criminal, colabora para o fortalecimento da cidadania.

A liberdade de informação se baseia em conceitos relativos aos direitos dos cidadãos, que são informar, se informar e ser informado. Não constitui abuso , no exercício da liberdade de imprensa , noticiar atos Executivo, Legislativo ou Judiciário. A imprensa pode e tem o dever de divulgar todas as informações sobre a atuação criminosa desses poderes ,que precisam ser acompanhadas e compreendidas pela opinião pública para que possa apoiar as investigações e a punição dos seus crimes. Faz parte da demoraria.

Foi importante para os portugueses assistirem aos interrogatórios. Socrátes,que já amargou cerca de 10 meses na cadeia e responde em liberdade a um pacote de processos, foi o mais agressivo. Em vários momentos perdeu as estribeiras e se exaltou , gesticulando histericamente enquanto atirava papéis sobre a mesa. Gritou e destratou o procurador que o interrogava, Rosário Teixeira, a quem acusou de estar mentindo. Se fosse com Sérgio Moro, teria levado um cala-boca daqueles e sido enquadrado, mas Rosário tentou contra-argumentar com Sócrates e ficou mal na fotografia.

Como é público e notório,Sócrates é amigo do peito do ex-presidente Lula, que em 2013 autografou seu livro “ A Confiança no Mundo-Sobre a Tortura em Democracia-“,cujo lançamento no Museu da Electricidade (leia-se EDP)foi prestigiado pela elite da sociedade local, entre conhecidos políticos, advogados e banqueiros.Hoje,a maioria torce-lhe a cara. Em seguida, foram homenageados com banquete oferecido pela Odebretch no Palácio Nacional da Ajuda, dos mais emblemáticos do Patrimônio Nacional.

Melhor sorte não teve o “ Dono disso Tudo”,como era conhecido o Presidente do Banco Espírito Santo,Ricardo Salgado, acusado de vários crimes, entre corrupção ,lavagem de dinheiro e outros delitos comuns no mundo das finanças. Com a falência do seu banco, levou milhares de depositantes à miséria, mas sua passagem pelo xadrez foi rápida, sendo transferido para prisão domiciliar na sua linda mansão no Estoril, onde vive a maioria dos milionários de Lisboa. Quem sabe,talvez seus defensores sejam mais influentes.

Seu interrogatório também foi transmitido pela SIC,mas ele não perdeu a pose. Destronado do seu império financeiro, deve ter algum muito bem guardado para pagar os melhores advogados do país, como de resto a maioria dos denunciados pela Lava Jato no Brasil e em Portugal.Como será que o dinheiro chega aos seus advogados?Fazem-lhe companhia no processo e no roteiro televisivo da SIC, Zeinal Bava, eleito o melhor gestor do ano na Europa, e Henrique Granadeiro,ex-presidentes da Portugal Telecom, aqueles das trapaças da Vivo e da OI.

Em comum, todos cantaram a mesma ladainha, igualzinha a dos acusados pela Lava Jato no Brasil.Com o ar angelical de meninos de coro da igreja, juraram inocência. Nunca cometeram crime algum, as acusações são infundadas, não há provas, são vítimas de perseguições, da inveja de inimigos,não sabiam de nada,não conhecem fulano nem sicrano e vão provar inocência. Além do destempero de Sócrates, chamou a atenção os risos e tentativas de ironia dos ex-gestores da Portugal Telecom. Quem não está habituado ao discurso de acusados, pode até ter se impressionado com a performance dos dois.

Há uma teoria indicando que de tanto repetir a mesma mentira o ser humano acaba acreditando nela. Estudo recente desenvolvido pela University College de Londres, publicado na revista Nature Neurosciente,descobriu que mentir em benefício próprio diminui a reacção do cérebro à desonestidades. E, dessa forma, mente-se cada vez mais. Os pesquisadores apresentaram fortes argumentos para uma percepção que muitas pessoas já terão sobre a mentira. Elas se habituam a mentir, começam com as pequenas e resvalam facilmente para mentiras cada vez maiores.

Os investigadores perceberam que quando o participante da experiência podia extrair algum proveito da situação, ele não só era desonesto como mentia cada vez mais. Enquanto a desonestidade aumentava, a reacção no cérebro caia, o que foi constatado por ressonâncias magnéticas ,procurando-se a resposta da região das amígdalas (associada às emoções) ao comportamento demonstrado. Quem sabe se possa adoptar o método nos interrogatórios. Mas só funcionará, é claro, para quem ainda possui amígdalas.

Estado brasileiro se tornou um espelho obscuro da sociedade

Viciado que sou na leitura de jornais (quatro por dia, só um pouco menos que as xícaras de expresso), não posso dizer que tenha sido surpreendido pela notícia publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo acerca do fato de os magistrados do Rio Grande do Norte terem se concedido licença-prêmio retroativa desde 1996, prebenda que poderia resultar em pagamentos de até R$ 300 mil para os beneficiários da generosidade dos desembargadores para com seus semelhantes, se não tivessem recuado depois da divulgação.

Como aprendi com Pedro Fernando Nery, a tal licença foi criada em 1952 para beneficiar servidores que não faltavam ao trabalho (o que em si já é revelador da mentalidade nacional: premiar um comportamento que deveria ser padrão) com folga de 90 dias a cada cinco anos, ou seu uso em dobro para a contagem de tempo até a aposentadoria.

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A lei 9.527/97, porém, acabou com o privilégio, mantendo apenas uma possibilidade: em caso de morte do servidor que não o houvesse usufruído, seus dependentes poderiam receber um complemento na pensão por morte. Independentemente da lei, contudo, órgãos com autonomia financeira continuaram a pagar para quem se aposentasse sem usar a licença-prêmio.

A Procuradoria-Geral da República, contudo, decidiu que nem sequer seria necessário esperar a aposentadoria, interpretação que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte tentou emplacar.

Obviamente não falta quem defenda a legalidade do pagamento, que, diga-se, por ser considerado indenização, não entra na base de cálculo do Imposto de Renda, ou contribuição previdenciária, nem para fins de determinação do teto de vencimentos.

Nem esse evento, nem o pedido da ex-ministra Luislinda Valois para somar a seu salário também o valor que recebia como aposentada (superando em muito o teto constitucional), nem várias outras instâncias de órgãos da administração pública acumulando vantagens são casos isolados. Ao contrário, revelam que há muito o setor público foi capturado por interesses privados, tema que explorei em coluna publicada no fim do ano passado.

De acordo com estimativas do Tesouro Nacional, os três níveis de governo do Brasil desembolsaram em 2015 R$ 2,5 trilhões (37,5% do PIB) referentes às suas despesas primárias. Naquele ano, pouco mais de metade delas (R$ 1,3 trilhão, ou 19% do PIB) foi destinada à remuneração de empregados e ao pagamento de pensões e aposentadorias do setor público, segmento que insere, com sobra, na parcela mais rica da população.

Não temos ainda os dados detalhados no que se refere às pensões e às aposentadorias para 2017, mas noto que no ano passado a parcela referente à remuneração do funcionalismo aumentou, sugerindo situação ainda mais grave nos dois últimos anos.

Na verdade, para o período para o qual dispomos de dados, o que se observa é um aumento persistente dessas despesas relativamente ao produto, enquanto o investimento governamental perde fôlego, assim como os gastos associados mais diretamente à prestação de serviços públicos.

O Estado brasileiro se tornou um espelho obscuro da sociedade, instrumento para grupos privilegiados se apropriarem de parcelas crescentes da renda. Apesar disso, ou cegos, ou anestesiados, nada fazemos para alterar o processo que, a se manter o status quo, em poucos anos se tornará insustentável.

Alexandre Schwartsman