domingo, 15 de abril de 2018

A patologia Lula

Se eu pudesse mostrar uma imagem das punhaladas que levei e tirar a camisa, meu corpo apareceria mais destroçado do que o de Jesus
Lula 





As romarias, os cânticos em seu nome, a louvação às suas palavras, tudo leva a crer que os adoradores de Lula já o colocaram em um pedestal de divindade, no qual nenhuma acusação de crime, nenhuma prova ou evidência pode alcançá-lo. Nem mesmo erros conhecidos, a clamorosa afronta às instituições, o descaso que demonstrou com a Lei e a ordem, a incitação à baderna – sugerindo aos seguidores “queimar pneus”, “fazer passeatas” e “ocupações no campo e na cidade” – serão capazes de denegri-lo. Não para esses fiéis, cegos na veneração. Não importa, não tem valor os desmandos, não maculem a imagem do protetor dos desassistidos – mesmo que ele tenha se locupletado com o dinheiro alheio, justamente daqueles a quem prometia a salvação. É perjúrio dizer isso, pecado capital. Bem-aventurados os que creem porque esses seguirão ao lado do todo-poderoso. O próprio Lula, como diz na pregação que fez de autorreferência, nos momentos derradeiros do martírio rumo ao calabouço, descortinou o caminho da fé: “eu não sou mais um ser humano, sou uma ideia”. Talvez o grau etílico no momento da fala, naquele sábado de paixão petista, tenha contribuído para o delírio. Mas há de se supor que Lula acredita na própria profecia. A ascensão do mundo dos mortais à esfera dos deuses se dá com a sagração de seus apóstolos. Cada um deles, congressistas de carteirinha, tratou logo de pedir à plenária daquela casa de tolerância a inclusão da menção “Lula” em seus respectivos nomes parlamentares. Assim Gleisi “Lula” Hoffmann, Paulo “Lula” Pimenta e quetais, da noite para o dia, devotaram sua existência política ao redentor. Eis a mensagem da fé! Aleluia ao Senhor. Seria cômico, não fosse triste. O Partido dos Trabalhadores agoniza engolfado pelo devaneio. Deixou de lado programas, bandeiras, a própria essência ideológica que dava corpo à agremiação, para virar seita. Tal qual a de reverendos suicidas que conclamam incautos para a reclusão e o fim trágico coletivo em nome de uma crença. A cúria petista, nos dias que se seguiram a prisão de seu líder maior, arrastou uma patológica massa de romeiros para Curitiba, sede da masmorra/recanto de seu mentor, e ali fincou acampamento, revezou hordas de peregrinos nos gritos de saudação “bom dia, Lula”, “boa noite, Lula” e maquinou a ressurreição do demiurgo. Levou governadores partidários para visitas improváveis, articulou comissões no Senado para a averiguação das condições da cadeia, promoveu algazarra e violência a intimidar os locais. Em suma, rezou conforme a cartilha de insanidades do lulopetismo. No enredo do calvário que culminou com a rendição midiática o ingrediente das vaias e fogos a comemorar o feito da Justiça não poderia faltar. Lula aquiesceu na última das quedas de sua paixão, em pleno heliporto da atual morada. Horas antes, do palanque improvisado em um carro de som, como numa missa de corpo presente, exibiu-se à imagem e semelhança de um cadáver político. Dava para notar no tom soturno de suas imprecações, inconformado com o próprio fim, que rogava por uma plateia maior que a avistada ali de cima. Lula almejava a reencarnação em “um pedacinho de célula de cada um de vocês”. Pedia a militância de muitos “lulinhas”, dos “milhões e milhões de Lulas”. Já era o ente falando. Os exegetas bíblicos deveriam rapidamente rever as encíclicas para incluir o nome do novo santo. Lula tem certeza de seu direito divino a figurar nos versículos do livro sagrado. Disse em certa ocasião que “as pessoas deveriam ler mais a bíblia para não usar tanto meu nome em vão” e cravou a memorável lembrança de que “não existe uma viva alma mais honesta do que eu”. A mística do Salvador da Pátria em pessoa deu o tom do desvario de lá para cá. Não há na política brasileira mais espaço para um messias oportunista. De mais a mais, as previsões apocalípticas não se confirmaram. O mundo não acabou com a sua prisão, como ele e a parolagem petista vaticinaram. Lula é agora apenas um número no Cadastro Nacional de Presos (CNP). Detento ficha 700004553820. Até ressuscitar vai uma penosa provação. Aleluia.

Lula atrás das grades

A entrada de Lula, ex-presidente do Brasil, em uma prisão de Curitiba para cumprir uma pena de doze anos de cadeia por corrupção deu origem a grandes protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela e da Nicarágua, o que era previsível. Mas menos do que o fato de muita gente honesta, socialistas, social-democratas e até liberais considerarem que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que se preocupou muito em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, ao que parece, aproximadamente 30 milhões de brasileiros da miséria quando esteve no poder.

A imagem pode conter: texto
Os que pensam assim estão convencidos, pelo visto, de que ser um bom governante tem a ver somente com realizar políticas sociais avançadas e que isso o exonera de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi preso pelas boas coisas que fez durante seu governo, mas pelas ruins, e entre essas se encontra, por exemplo, a gigantesca corrupção na empresa estatal Petrobras e suas empreiteiras que custou à sofrida população brasileira nada menos do que dez bilhões de reais (desses, 7 bilhões em propinas).

Quem pensa tão bem de Lula, aliás, se esquece do feio papel de leva e traz que ele representou como emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes e ministros para que favorecessem a transnacional com bilionários contratos de obras públicas.

É por essa razão e outros casos que Lula tem não só um, mas sete processos por corrupção em andamento e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari Neto e José Dirceu, seu chefe de Gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, esquemas ilícitos e outras operações criminosas. Entre as últimas acusações que pendem sobre sua cabeça está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em Guarujá.

Os protestos pela prisão de Lula não levam em consideração que, desde que ocorreu a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava asfixiar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários e banqueiros foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e várias dezenas deles o serão em um futuro próximo.

Jamais algo parecido havia ocorrido na história da América Latina: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais que, partindo de São Paulo, se estendeu depois por todo o país, não contra uma empresa, um político, mas contra a desonestidade, a enganação, os roubos, as propinas, toda a enorme corrupção que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a atividade política, em todo o país. Um movimento popular cuja meta não era a revolução socialista e derrubar um governo, mas a regeneração da democracia, que as leis deixassem de ser coisa sem importância e fossem verdadeiramente aplicadas, a todos por igual, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns.

O extraordinário é que esse movimento plural encontrou juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, lhe deram uma via judicial, investigando, denunciando, enviando à prisão diversos executivos, comerciantes, industriais, políticos, autoridades, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é realizável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo se existe a vontade e o apoio popular para isso. Cito sempre Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nesses últimos anos vimos no Brasil como seu exemplo foi seguido por incontáveis juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e na liberdade que quase havia perdido.

Há muitos brasileiros admiráveis; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa e minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de uma ação digna de punição; e atletas e esportistas cujos nomes correram o mundo. Mas, se eu precisasse escolher um deles como modelo exemplar ao restante do planeta, não hesitaria um segundo em eleger Sérgio Moro, esse modesto advogado natural do Paraná que, após se formar em advocacia, entrou na magistratura na oposição em 1996. Como já confessou, o que aconteceu na Itália nos anos noventa, a famosa Operação Mãos Limpas, lhe deu as ideias e o entusiasmo necessário para combater a corrupção em seu país, utilizando instrumentos parecidos aos dos juízes italianos da época, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada em troca da redução da pena e a colaboração da imprensa. Tentaram corrompê-lo, obviamente, e sem dúvida é um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos infelizmente não são uma exceção. Mas lá está, fazendo parte do que vem sendo uma verdadeira, apesar de ninguém ainda a ter nomeado assim, revolução silenciosa: o retorno da legalidade, o império da lei, em uma sociedade que a corrupção generalizada estava desintegrando e impedindo-o de passar de ser o “grande país do futuro” que sempre foi a ser o grande país do presente.

O grande inimigo do progresso latino-americano é a corrupção. Ela faz estragos nos governos de direita e esquerda e um enorme número de latino-americanos chegou a se convencer de que ela é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não há defesa: os terremotos, as tempestades, os raios. Mas a verdade é que a defesa existe e justamente o Brasil está demonstrando que é possível combater a corrupção, se existirem juízes e promotores corajosos e responsáveis e, claro, uma opinião pública e imprensa que os apoiem.

Por isso é bom, para a América Latina, que homens como Marcelo Odebrecht e Lula tenham sido presos após ser processados, recebendo todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a Justiça é igual para todos, os pobres diabos do povo que são a imensa maioria, e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro e seus cargos. E são justamente esses últimos que têm maior obrigação moral de obedecer às leis e mostrar, em sua vida diária, que não é preciso transgredi-las para ocupar as posições de prestígio e poder que obtiveram, que elas são possíveis dentro da legalidade. É a única forma de uma sociedade acreditar nas instituições, repelir o apocalipse e as fantasias utópicas, sustentar a democracia e viver com a sensação de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la cada dia mais.

Para onde, Brasil?

Como diz o coelho branco em Alice no País das Maravilhas: “Ai, ai! Vou chegar atrasado.” No país real, estamos atrasados em relação aos rumos do país. As eleições estão próximas. Normalmente, começam mesmo depois da Copa. Mas, antes, deveria ser iniciada uma temporada de debates não só entre os candidatos.

Num contexto mais favorável, a discussão em torno dos rumos do país deveria ser feita com o máximo de cordialidade possível.

Resultado de imagem para brasil sem rumo

Como se nesse campo pudéssemos adotar a visão de Diderot. Segundo ele, cada um tem a sua verdade, mas não importa quem vença ou ganhe, mas sim que após a discussão reine a paz entre os interlocutores. Traduzindo para a linguagem mineira: um debate onde as ideias briguem, mas as pessoas não.

O episódio da prisão de Lula foi muito dramático. Um amigo lembra que, na mesma semana, foi presa a ex-presidente da Coreia do Sul, Park Geun-hye. Houve manifestações, mas ela não fez discurso, dispensou visitas e falou apenas com os advogados.

A Coreia do Sul, com bons índices de crescimento, talvez seja mais tranquila, porque com a prisão de Geun-hye já é o terceiro ex-presidente a ir para a cadeia.

Tive contato com a sabedoria hebraica lendo, para prefaciá-lo, um livro de Nilton Bonder em que ele tenta aplicar esses ensinamentos para se entender os atores políticos.

O ensinamento mais amplo da sabedoria hebraica, preservado segundo os estudiosos em várias Bíblias, é o fato de que não se deve curvar para os ídolos, pois isso nos faz perder o que há de melhor em nossa natureza.

Essa ideia é tão forte que teria até influenciado o marxismo na sua crítica cultural ao capitalismo. Só que a perda de si no outro, nessa visão marxista, não se dá necessariamente diante de ícones religiosos, mas diante do mundo cintiliante das mercadorias, o império dos objetos. Seus conceitos são mais complicados: alienação, reificação.

No momento em que deputados e senadores do PT querem fundir seu nome com o de Lula, pergunto-me se com isso não estão perdendo o melhor de si, que é a possibilidade de debater o mundo real, as dificuldades que o país atravessa.

Todos têm direito de dosar sua energia como quiserem, mas confundir o destino do país com o seu líder abre um abismo com todos nós que precisamos olhar para frente.

Necessariamente, as ideias de esquerda não são melhores. Meu ponto é outro: com todas as correntes dando o que há de melhor para acharmos o caminho, as chances de acerto são maiores.

Existe também um grande campo em que, para além das lutas identitárias, podemos elaborar políticas nacionais urgentes. O de saneamento básico é um deles. A escassez hídrica, outro.

Divergências devem surgir em alguns campos também vitais, como educação e segurança pública.

Ao contrário de um debate sobre uma eleição que se aproxima, as emoções dominam, estamos às voltas com ídolos. Se o processo continua nesse tom ditado pelos extremos o desfecho é perigoso. Pessoas que se perdem costumam ser levadas para o pior dos caminhos.

Compreendo o fascínio do momento. Todas as noites alguém entrando ou saindo da cadeia, imagens do coronel Lima em cadeira de rodas, lá vai o Rodrigo Loures correndo de novo com sua mala, os milhões do Geddel, o locutor de rádio anunciando que Sérgio Cabral também tomou café com pão e manteiga pela manhã.

Mas, como diz o coelho branco: “É tarde, é tarde.”

Dois minutos

As leis são feitas, tanto quanto se saiba, para melhorar a vida das pessoas. Que sentido poderia ter uma lei que piora a existência do cidadão? Nenhum, e por isso mesmo é francamente um espanto a quantidade de leis em vigor neste país que não melhoram coisa nenhuma e, ao mesmo tempo, conseguem piorar tudo. Um dos mais notáveis exemplos práticos dessa espécie de tara, tão presente no sistema legal e jurídico do Brasil, é o apaixonante debate atual sobre a “segunda instância” e o “trânsito em julgado”. Quase ninguém, mesmo gente que foi à escola, conseguiria dizer até outro dia que diabo quer dizer isso; dá para entender as palavras “segunda” e “trânsito”, mas daí pouca gente passa. No entanto, tanto uma como outra coisa são o centro da questão mais decisiva da vida política do Brasil de hoje. Trata-se, muito simplesmente, de saber quantas vezes o sujeito precisa ser condenado na Justiça para pagar pelo crime que cometeu. Duas vezes parece de ótimo tamanho, na cabeça de qualquer pessoa sensata e no entendimento de todos os países livres, civilizados e bem sucedidos do mundo. Se houve um erro na primeira sentença, dada por um juiz só, um segundo julgamento, feito por um conjunto de magistrados, pode corrigir a injustiça; se não corrigir é porque não houve nada de errado. Uma criança de dez anos é capaz de entender isso. Mas as nossas altíssimas autoridades, aí, conseguiram transformar um clássico “não-problema” num tumulto que tem infernizado como poucos a estabilidade política do país ─ e enchido a paciência de muitos, ou quase todos os habitantes do território nacional.

Os artigos, parágrafos, incisos, alíneas e sabe lá Deus quanto entulho legal os doutores, políticos e magnatas deste país invocaram para colocar em discussão se a Terra é redonda ou é plana, mostram bem a extraordinária dificuldade, para os que mandam no Brasil, de aceitar o princípio pelo qual uma lei só fica de pé se fizer nexo ─ e só faz nexo se vem para tornar mais segura, mais cômoda ou mais compreensível a vida do cidadão comum. Não faz o menor nexo sustentar que o bem estar das pessoas melhora, ou que elas ficam mais protegidas, se for proibido colocar um criminoso na cadeia quando ele é condenado duas vezes em seguida; é incompreensível que a punição para um crime só deva acontecer quando o autor perder na “última instância”, que ninguém sabe direito qual é. Eis aí o raio do “trânsito em julgado” ─ o momento em que não há mais o que inventar em matéria de trapaça legal para manter o malfeitor fora do xadrez. É algo tão raro quanto a passagem dos cometas. O deputado Paulo Maluf começou o seu corpo-a-corpo com a Justiça penal em 1970; só foi para a penitenciária 47 anos depois, em dezembro do ano passado, já aos 86 anos de idade. O ex-governador de Minas Gerais, Renato Azeredo, está sendo processado há 11 anos e até agora não viu o lado de dentro de uma cela.
Resultado de imagem para trânsito em julgado  charges

Vamos falar sério dois minutos: alguém é capaz de achar que os direitos civis do cidadão brasileiro estão sendo protegidos por um negócio desses? Quem ganha com isso a não ser criminosos tamanho GGGG-plus, que têm poder e dinheiro para pagar sua defesa durante anos a fio, e os escritórios de advocacia que sonham com processos que lhes rendem honorários pelo resto da vida? Não há absolutamente nenhum interesse coletivo beneficiado por esse tipo de entendimento da lei. O que acontece é justamente o contrário: o veto à prisão “na segunda instância” é uma ameaça ao brasileiro que cumpre a lei. Não é um “direito”, como dizem advogados e demais sábios da ciência jurídica ─ o direito, respeitado em todas as democracias, à “presunção de inocência”. Inocência como, se o indivíduo já foi condenado duas vezes? Teve todo o direito de se defender, sobretudo se conta com milhões. O acusador teve de apresentar provas, e o juiz teve de considerar que as provas eram baseadas em fatos. O que há na vida real, isso sim, é uma violação do direito que as pessoas têm de contar com punição para os criminosos que as agrediram ─ por exemplo, roubando o dinheiro que pagam em impostos, ou o patrimônio que possuem legalmente nas empresas estatais.

Os “garantistas”, que defendem em latim essas aberrações, garantem apenas a impunidade. Utilizam dúvidas que existem na Constituição e que podem ser mal interpretadas ─ só foram colocadas ali, aliás, com o exato propósito de serem mal interpretadas. Constroem, esses heróis da liberdade, um monumento às leis que foram escritas para fazer mal ao Brasil e aos brasileiros.

Paisagem brasileira

Cidade de Rio Branco - Acre - Turismo e Cultura no Brasil
Rio Branco (AC)

O triste fim de Luiz Inácio

A trajetória do PT, que o levou dos sindicatos à Presidência da República no espaço de três décadas, foi marcada por forte discurso moralista. Foi o partido que mais denunciou instituições, partidos e políticos em toda a história republicana brasileira – e o que mais CPIs reivindicou. “Quanto mais CPIs, melhor”, dizia Lula.

Uma remota suspeita, ou mesmo uma suspeita fabricada, já o fazia mobilizar Ministério Público, imprensa e sociedade civil para caçar “as ratazanas da política”. A retórica era implacável, impiedosa.

O partido professava, com fúria inaudita, o denuncismo como método de ação política. Era preciso “passar o Brasil a limpo” – e só o PT, trincheira da moralidade, poderia fazê-lo.



Nenhum texto alternativo automático disponível.

Lula, como um Torquemada de macacão, condensava essa luta pelo saneamento da vida pública brasileira. Em nome dessa causa e da justiça social (outro clichê repetido à exaustão), recusou-se, na transição do regime militar para o civil, a votar em Tancredo Neves e a assinar a Constituição de 1988.

O clero católico da Teologia da Libertação o secundava, com ardor místico; artistas, intelectuais, acadêmicos faziam-lhe coro.

Dentro disso, o partido pediu o impeachment de todos os presidentes da República a partir da redemocratização. Obteve o de Collor, mas se recusou a integrar a frente que se formou em torno de seu sucessor, Itamar Franco. O partido não se misturava.

Nem mesmo aliados potenciais, como Leonel Brizola, cabiam no seu figurino. Atribuía-lhe, e ao getulismo, visão superada do trabalhismo; abjurava o sindicalismo pelego, dependente do Estado.

Brizola via com desconfiança esse puritanismo exacerbado, chamando o PT de “a UDN de tamancos”. A UDN, como se sabe, foi o partido cujo denuncismo levou Vargas ao suicídio.

Mas a estratégia funcionava: o partido crescia, formava bancadas numerosas e aguerridas, elegia prefeitos, governadores e, enfim, num belo dia, em 2002, elegeu Lula presidente da República.

É quando, então, tudo muda – e muda rápido. O partido alia-se aos setores que combatia: políticos oligarcas e fisiológicos do PMDB, PP e PTB (entre outros ainda piores). E se transmuta em tudo o que condenava. Perde aos poucos o apoio de intelectuais respeitáveis, desencantados com o choque de realidade.

E fica, ao final, com o que tinha (e tem) de pior. Em sua única experiência parlamentar, como deputado-constituinte, Lula identificou “mais de 300 picaretas” no Congresso. Em 13 anos e meio de poder, aliou-se a eles. E devastou estatais, fundos de pensão, bancos públicos; corrompeu e corrompeu-se; tornou-se presa do moralismo que semeou – e que deixou muitas vítimas pelo caminho.

Lula na cadeia, precedido pelo impeachment de Dilma, postulado nas ruas por multidões, é o ocaso de um projeto de poder, que se proclamou redentor e revelou-se um conto do vigário.

O PT criminalizou a política – e agora, empenhado em transfigurar Lula em preso político, quer politizar o crime. Mas não há como transformar propina e roubo em ideologia. E é disso que trata sua condenação e os demais seis processos prestes a ter sentença.

Lula está agora ao lado de antigos parceiros – Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Geddel Vieira Lima, Palocci, Maluf, Odebrecht, Leo Pinheiro – e à espera de outros, como Aécio Neves, Gleisi Hoffmann, Lindberg e Zé Dirceu (e, quem sabe, em breve, Dilma e Temer).

Pelo avesso, o partido de fato melhorou a taxa de moralidade da vida pública. Ao elevar a níveis inéditos e estratosféricos a velha prática da corrupção, agiu como um purgativo, a provocar no país uma diarreia cívica, que hoje abrange todo o espectro partidário. Não deixa de ter o seu mérito, que a História há de reconhecer.

Ruy Fabiano

Mãos sempre cheias

A ilustração de Emma Hanquist You've really taken my heart on a trip. Can I have it back now?
Emma Hanquist

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Populismos e democracia bloqueada

Nos anos 70 do século passado Enrico Berlinguer, talvez o último grande dirigente do comunismo histórico, extraía para seu país, a conturbada Itália, uma lição advinda da tragédia de Salvador Allende na então distante América Latina. Impossível traçar, dizia Berlinguer, uma estratégia de superação das contradições mais agudas de uma sociedade – qualquer que fosse ela, mas especialmente as sociedades mais desenvolvidas – se a nação estivesse partida, digladiando-se ferozmente em metades inconciliáveis. Não bastaria à esquerda ter 50% mais um dos votos do eleitorado para levar adiante suas propostas: o apoio teria de ser mais amplo, as motivações, mais argumentadas e, particularmente, nenhuma dúvida poderia pairar sobre a obediência estrita das principais forças mudancistas às exigências da democracia política.

Não importa que a História se tenha mostrado bem mais imprevisível do que um político sofisticado como Berlinguer podia admitir com sua generosa estratégia de compromisso entre todos os democratas, muito além dos muros da cidadela da própria esquerda. O dado essencial a ser aqui considerado é que a partir de então, se dúvida havia, nenhuma esquerda podia mais pôr em questão o fato de que, para se credenciar a um papel dirigente, de nada lhe valeria colocar-se fora da dialética democrática em seu sentido mais estrito – a validação dos resultados eleitorais, a legitimação conferida aos adversários, a admissão da alternância no poder. Estratégias ou palavras de ordem inutilmente divisivas seriam pagas com o fracasso dos reformistas ou, pior ainda, com a perda da noção de um terreno comum a todos os cidadãos e definidor dos patamares mínimos de convivência.

O PCI de Berlinguer, a propósito, pisava em campo minado, que não podia ser transposto segundo a perspectiva da época. O sistema estava bloqueado nos termos da guerra fria. Havia o que se convencionou chamar de “sistema de poder” em torno dos democratas-cristãos e tal sistema se reproduziria aparentemente de modo indefinido, produzindo, entre outras coisas, o que os comunistas italianos não hesitavam em chamar de autêntica “questão moral” – e seus críticos viam como moralismo sem alcance estratégico. A ocupação do Estado pelos mesmos partidos, ainda que longe da patologia dos partidos-Estado do Leste Europeu, era causa de degradação dos costumes políticos e administrativos. E não podia prenunciar boa coisa. O bloqueio seria rompido menos pela política partidária do que pela irrupção clamorosa de uma operação judicial inédita até então, a qual, surpreendentemente, reverberaria no Brasil de nossos dias.

Resultado de imagem para populismo petista charge

A ideia de que nos anos dourados do petismo se estava a gerar algo como um extraordinariamente resistente “sistema de poder” é uma boa pista a explorar. Episódios como o mensalão e o petrolão, entre outros, pareceram obedecer a uma lógica de ocupação numa escala desconhecida em nosso sistema político-partidário, que, diga-se de passagem, nunca se notabilizara pela transparência nos custos de campanha e no financiamento de suas atividades em geral. Havia aqui, como os autos indicam, “tenebrosas transações” entre empresas públicas, dirigentes partidários e grandes companhias privadas, capazes de gerar recursos para campanhas eleitorais com custos fora de qualquer controle – e os inevitáveis desvios colaterais para bolsos privados.

O sistema, assim, passou a funcionar simultaneamente sem transparência, limite ou controle da parte dos cidadãos. Alguém poderá argumentar, e terá razão, que se trata de práticas herdadas do passado, em geral tacitamente admitidas, e que o maior partido oposicionista, entrincheirado em dois dos principais Estados da Federação, teria sido responsável por criar e manter azeitados mecanismos de poder. No entanto, sem negar essa pesada responsabilidade, pode-se retrucar que o esquema petista exacerbou as irregularidades em termos tanto quantitativos quanto qualitativos. Não estávamos aqui diante de empreendimentos locais ou regionais, mas de um fenômeno que, pela primeira vez, chegava a ultrapassar as fronteiras do País.

Este último ponto merece atenção. Recursos financeiros e estratégias políticas se misturaram de modo explosivo por toda a América Latina, num tempo em que se passou a afirmar a hipótese problemática – para ser cauteloso – de certo “socialismo do século 21”. Bem pesadas as coisas, tratava-se menos de socialismo que de um ataque populista de esquerda à democracia representativa, de conteúdo diverso, mas formalmente não muito diferente dos ataques populistas de direita que assolam a Europa e a América do Norte e, infelizmente, também já não nos poupam.

Longe da melhor tradição comunista, evocada na figura de Berlinguer, o recurso expressivo típico desses populismos, na variedade de suas manifestações, é a retórica e a prática divisiva e confrontacional. Pretenderam cancelar o passado e refundar as nações, mas os resultados, uma vez no poder, foram medíocres ou catastróficos, como no caso venezuelano – veia aberta no continente. A técnica de construção de blocos de poder supostamente inamovíveis, exportada para os parceiros latino-americanos do petismo, tornou-se, contra a intenção de seus promotores, um verdadeiro teste de solidez das instituições democráticas, desafiadas a enfrentar subornos, escândalos e até crises de impeachment numa dezena de países.

Uma esquerda forte e plural é condição necessária, ainda que não suficiente, para a efetivação de uma agenda social digna do nome, bem como de um regime de liberdades que garanta essa agenda e seja por ela nutrido. Uma coisa nunca vai sem a outra: não há progresso social sem voto e democracia “formal”. Entre nós e esse caminho virtuoso ainda se interpõem os populismos de esquerda e de direita, que deveriam ser, mas não são, fato marginal ou lembrança do passado.

Imagem do Dia

“Venice at Dusk by Neil Cherry
Neil Cherry

Se não bastasse

Se não bastasse o prejuízo de ordem econômica que empobreceu o país nos últimos anos, e se ainda não bastasse o desvio de centenas de bilhões de reais pelo ralo da corrupção – apenas em parte recuperado –, o Brasil sofre agora, mais do que nunca, as perdas incalculáveis de credibilidade pelo mundo afora.

Entre se instalar num Brasil caótico e “sem leis”, até os próprios brasileiros mais desejosos de evolução são atirados para fora do país. Alguns à procura de atividades profissionais, outros pela insegurança e pelo surgimento de um crime cada vez mais organizado e oceânico. Não enxergam aqui e agora o clima, o ambiente, a sintonia daquilo que almejam.

Resultado de imagem para brazil cartoon corruption
“Brasil” ficou desacreditado, sinônimo de mau funcionamento, de fraudes estrepitosas, de desmandos, de incapacidade de escolher seus representantes políticos, de burocracia inconciliável com a razão, mais ainda do legislar e julgar incorretamente, de gastar pessimamente o que se arrecada, de dispensar os maiores privilégios, por meio dos cofres públicos, para quem já tem rendas acima da média mundial.

Em comum os Três Poderes constitucionais esgarçaram seus conceitos, sua respeitabilidade, atribuindo-se privilégios que depauperam a base social e se fazem causas do sofrimento, da marginalização, da violência.

Os ideais de fraternidade e justiça não são parte preponderante da disputa pelo poder entre facções partidárias. Quem ganha se dedica a destruir obtusamente os governos eleitos, e as demonstrações dadas nos últimos 20 anos mostram que a tosca lógica é agir pelo “quanto pior, melhor”.

Um país em guerra permanente não vai para a frente.

Qualquer naco de poder, mesmo o mais recôndito, é tomado pelo desejo de enriquecimento, não pela melhoria de vida da população ou por uma pátria mais justa e digna. A paisagem é o mar de lama.

Tomam-se como redentores figuras cujos valores não são exatamente a ética, a moderação, a austeridade, o conhecimento, a experiência, as realizações. Faltam redentores, e facilmente se impõem ao eleitor vendedores de ilusões.

A medida aterradora dos desajustes está nas filas de atendimento de saúde pública, na baixa qualidade de ensino, no alastrar-se de habitações de ínfima qualidade, no uso de drogas, no surgimento de um crime organizado que está condicionando e restringindo a vida das pessoas. Embora não fique claro à população, a causa da desgraça se liga à baixa qualidade das elites, à corrupção dos mensalões, à Justiça confusa, aos privilégios que sangram os cofres. Ao corporativismo que enxerga abusos apenas nos ciscos dos outros.

O que esperar de diferente da falência? Sem ética na administração pública que se materializa nos mensalões, petrolões, no nepotismo, na distribuição de supersalários que nem existem nos delírios dos oligofrênicos.

Extinguiu-se por carência moral a autocrítica, outrora moderadora dos abusos corporativistas, a autorregulamentação serviu para ampliar privilégios sem limites. E, quando explode a divergência, as diatribes mostram desentendimentos de sujos contra mal-lavados. Um erro tenta justificar outros, e os dois lados permanecem explorando quem trabalha e produz de verdade.

Não há injustiça que possa durar por muito tempo, nem exploração que ultrapasse os limites do patrimônio comum. Bem por isso caminhamos para um momento em que as contas terão que ser ajustadas. Uma época em que a verdade deverá salvar a pátria.

Que chegue sem demora.

Jogo perigoso

A posição de enfrentamento que o PT adotou em relação ao Ministério Público, à Justiça e aos meios de comunicação desde o escândalo do mensalão, com maior radicalização a partir do início do processo de impeachment da presidente cassada Dilma Rousseff, tem sido danosa para tudo e para todos. Por um lado, prejudica o próprio PT, haja vista a surra que o partido levou na eleição municipal de 2016. Por outro, faz surgir, como reação a esse clima de beligerância, algo impensado até pouco tempo, como o apoio à volta dos militares ao poder ou o crescimento de uma candidatura que se propõe a ser a antítese de Lula, esta representada pelo deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ).

Resultado de imagem para lula preso em curitiba charge

Pior de tudo é que a polarização que se vê nas ruas tem atingido, de forma indireta, as instituições garantidoras do Estado Democrático de Direito, com divisão clara e ataques pessoais, como os verificados no dia a dia do Supremo Tribunal Federal (STF), além de esgarçar o tecido social. A polarização, ao contrário do que se diz por aí, não surgiu somente por causa das disputas eleitorais entre PT e PSDB. Ela surgiu principalmente depois dos discursos carregados de ódio do “nós contra eles”, em que o “nós” era vendido como aqueles que, no petismo, defendiam os pobres e oprimidos, e o “eles” os contrários à luta pela igualdade social.
A posição de enfrentamento constante, apregoada pelo próprio Lula, quando ameaçou chamar o “exército do Stédile”, ao se referir ao MST, movimento que orbita em torno do PT, ou quando disse que não cumpriria a decisão judicial se essa fosse por sua prisão, e o foi, pode até dar uma sensação de onipotência em determinado momento. Como no dia em que, num comício dentro do Palácio do Planalto, Vagner Freitas, da CUT, prometeu pegar em armas para defender o mandato de Dilma Rousseff. Ou na noite de quinta para ontem, quando a sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo foi tomada por militantes que para lá se dirigiram em solidariedade a Lula, levando o ex-ministro Gilberto Carvalho a dizer que a multidão impediria a prisão do ex-presidente.

Mas todo mundo sabe que o tempo passa e os planos de desobediência precisam ser desfeitos, mesmo que José Rainha, desaparecido como anda, ameace com uma guerra civil.

É tudo marketing político, uma tentativa de transformar Lula em vítima. Acontece que, se para o militante petista tais atitudes o animam a se manter acordado, com a bandeira lá no alto e com a sensação de que é um revolucionário, para o cidadão comum não há esse efeito. Se houvesse, Lula já estaria com mais de 50% da preferência dos eleitores. E o militante, que levanta a bandeira imaginando-se parte da revolução, já a estaria fazendo para proteger seu líder.

A consequência imediata de todo esse espetáculo pode ter efeito contrário ao que o PT espera obter. A tropa de choque do partido tanto aprontou durante o processo de impeachment que hoje dois de seus líderes, os senadores Gleisi Hoffmann (PR) e Lindbergh Farias (RJ), sabem que enfrentam sérias dificuldades para se reeleger. Em compensação, enquanto houver um resto de possibilidade de Lula disputar a Presidência da República, a candidatura de Bolsonaro mais se consolidará.

O PT não pode se esquecer de que em seus 38 anos de vida foi um instrumento fundamental para a consolidação democrática. No momento em que ameaça não cumprir o que determina uma instituição que é um dos pilares da democracia, como o Judiciário, não a está defendendo. Está ajudando um setor que é claramente contrário a ela a propagar suas ideias numa sociedade que não aguenta mais a corrupção, a violência e a ausência do Estado.

João Domingos

Gente fora do mapa

Shavkat Hoshimov 

O engodo do 'dream team' de Meirelles

Henrique Meirelles deixou o Ministério da Fazenda convencido de que será o candidato do MDB à Presidência da República. Acredita que tem argumentos de sobra para convencer os eleitores de que é a melhor pessoa para conduzir o país a partir de 2019. Não há dúvidas de que, enquanto chefiou a equipe econômica, ele obteve conquistas importantes. Mas também falhou — e muito —, sobretudo em relação ao ajuste das contas públicas. Meirelles, ao contrário do que prega, não conseguiu reverter o rombo fiscal. No máximo, reduziu o ritmo de piora das contas públicas.

Meirelles, que chegou à Fazenda incensado por estar cercado por um time dos sonhos, o “dream team”, entregou o cargo de ministro com rombo previsto de R$ 159 bilhões em 2018. A promessa era de que, já em 2021, as contas públicas estariam no azul. Agora, seu sucessor, Eduardo Guardia, avisa que, na melhor das hipóteses, os deficits vão perdurar até 2022. Serão pelo menos nove anos de buraco nas finanças federais.

Resultado de imagem para meirelles e a economia charge

O prometido ajuste fiscal virou miragem, promessa não cumprida. Se realmente for candidato à sucessão de Michel Temer, Meirelles terá muito o que explicar.

Em outros tempos, os rombos fiscais se tornariam motivo de alarde entre os economistas. O discurso seria o de que o país estaria à beira do colapso. Agora, por conveniência, pois querem eleger um candidato alinhado com o pensamento de mercado, fazem vista grossa. No máximo, deixam escapar uma ou outra ressalva. O argumento é de que Guardia e companhia são confiáveis. Mas é muito fácil levar na conversa e jogar a bomba no colo dos outros. No caso, do próximo presidente. Caberá a ele fazer o que Meirelles, Guardia, Dyogo Oliveira, ex-ministro do Planejamento, e companhia não fizeram.

Do ponto de vista fiscal — o rombo estimado para 2020 saltou de R$ 65 bilhões para R$ 110 bilhões —, o “dream team” é um fiasco. Como também tem sido em relação à retomada do crescimento. No ano passado, houve integrantes da equipe econômica falando em crescimento de 3%. O resultado final foi de 1%.

Neste momento, o governo insiste que o avanço do Produto Interno Bruto (PIB) em 2018 será de 3%, mas ninguém acredita que isso possa acontecer. A fragilidade da atividade é visível. Nos dois primeiros meses do ano, indústria, varejo e serviços tiveram desempenhos aquém do previsto.

Para a equipe econômica, é muito conveniente projetar crescimento maior do que o real. Isso permite inflar as receitas. Assim, fica mais fácil acomodar os gastos, que não param de crescer.

Na verdade, o governo não fez nenhum esforço efetivo para conter as despesas. Somente com pessoal, a fatura aumentará R$ 20 bilhões em 2019, para R$ 322 bilhões. O Planejamento quis adiar o reajuste da elite do funcionalismo de 2018 para 2019, mas foi impedido por liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF). Em vez de recorrer, se acovardou.

O governo também fez corpo mole em relação ao pacote de 12 medidas que Meirelles anunciou com toda a pompa depois de o projeto de reforma da Previdência Social ser enterrado. Nenhuma delas andou. O que era para ser um ajuste virou desajuste fiscal. Tornou-se cômodo para a equipe econômica empurrar o rombo das contas públicas com a barriga. Ela se fia na complacência do mercado e torce para quem for eleito fazer o dever de casa. Guardia, inclusive, já absorveu o discurso. Diz que, se as reformas não forem feitas nos próximos anos, a taxa de crescimento do país vai minguar. É o blá-blá-blá de sempre.
O engodo do dream team só não é maior devido à queda da inflação, que foi empurrada ladeira abaixo pelos preços dos alimentos. Os juros também desabaram, mas os mesmos bancos que inflam o ego da equipe econômica não barateiam o crédito, inibindo um importante propulsor da produção e do consumo.

Enfim, a equipe econômica vai continuar deitada na fama, alardeando seus sucessos, mas deixando uma bomba fiscal para o futuro governo. Elaborado pelo time dos sonhos, o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2019 encaminhado ao Congresso é uma obra de ficção. Nada mais que isso.

Cadê os pobres?

Dia desses ouvi, mais uma vez, certa frase muito pronunciada aqui no Brasil: "o problema da criminalidade é um fruto da pobreza". Eis como, de forma absolutamente singela, nossa sociedade rotineiramente resume um desafio tão complexo.
Diante desta afirmação, trombeteada de forma absolutamente grave por um idoso interlocutor, fiquei a meditar sobre as fortunas desviadas dos cofres públicos, no mais das vezes impunemente, por já ricos senhores. Eis aí um dos mais graves problemas da humanidade!

Há também aqueles abastados empresários cujas fortunas, abrigadas em paraísos fiscais, passando ao largo do recolhimento de tributos, algo inevitável apenas para os menos favorecidos, sangram a humanidade - por vezes literalmente, em função das crises que causam.

Por falar em empresas, não nos esqueçamos daquelas poderosas corporações envolvidas em crimes que vão desde o uso de mão-de-obra escrava até o saquear puro e simples de riquezas minerais de outros povos, por vezes através de conflitos os mais devastadores.

Fiquei a meditar sobre os poderosos dirigentes de grandes corporações que, buscando aumentar seus já milionários salários, reduzem custos ao preço de impor aos consumidores - crianças incluídas - produtos sabidamente nocivos à saúde.

O que dizer dos ricos e poderosos detentores de diversos meios de comunicação utilizados para dominar por vezes países inteiros, em obediência a interesses os mais escusos, vitimando milhões de seres humanos inocentes?

Igualmente dignas de menção são as tantas autoridades que, malgrado providas de todas as garantias legais, e desfrutando de razoáveis padrões de vida, comportam-se como leões diante de carneiros e carneiros diante de leões, proporcionando aos ricos e poderosos uma impunidade abjeta.

Pensemos, finalmente, nos competentes e ricos profissionais, das mais diversas áreas, cujas vidas são dedicadas a servir de suporte a cúmplices, digo, a igualmente abonados senhores que se nutrem no mesmo coxo imundo do mal.

Eis aí, e peço desculpas se esqueci de algo, a relação da pior, mais violenta e danosa criminalidade que flagela a humanidade. Pois é: e cadê os pobres? A estes só resta, pelas mãos do Estado, representar 99,99% de nossa população carcerária - seja no Brasil, seja pelo planeta afora. Quanta injustiça, meu Deus!

Pedro Valls Feu Rosa