quarta-feira, 4 de abril de 2018

De onde vem o exemplo?

Quando um jovem antropólogo perguntou a um chefe indígena como ele administrava seu povo, sua resposta foi exemplar. Quando – disse ele – o pátio central da aldeia precisa ser limpo, eu pego o meu facão e inicio a tarefa. Pouco a pouco, os outros chegam e logo todos estão fazendo o que deveria ser feito. Esse mesmo chefe ensinou a esse mesmo rapaz uma anti-norma da antipolítica brasileira: um bom chefe não acumula, ele distribui...

O exemplo é o apanágio dos humanos. Esses bichos que não nascem prontos são programados para não ter programa e, por viverem na dúvida, precisam de mandamentos, leis e ideologias quase sempre vindas do céu e dos deuses que variam entre si, dependem de pessoas e, como ensinou Marx, de circunstâncias. O que é amizade aqui, é corrupção por lá; o que é ativismo político acolá, é crime aqui... Por isso, esse “bicho-homem” mata em nome da vida, suplicia em nome de Deus, torna-se criminoso aviltando boas causas.

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No nosso caso, eis a descoberta simultaneamente alarmante e transformadora, os partidos do poder sempre foram donos e “cuidadores” do povo brasileiro. Os eternos “doutores”, tidos com sábios, sabiam o que fazer para levar o Brasil a um nobre futuro. Tanto isso é verdade que hoje conseguimos ter linhagens de boçais que, cruzando entre si, estão suicidando o País, mas sem deixar de fazer – sejam eles de um lado ou do outro – o que sempre tiveram o direito de fazer: roubar a coisa pública em redes de favores.

Eu fico chocado quando ouço pessoas falando do “Brasil” como se elas não fossem também o Brasil e não precisassem de ninguém para fazer o Brasil que desejam. Na nossa alma, somente o “governo” é responsável e capaz de modificar o Brasil. Nesse caso, o exemplo viria dos administradores donos não somente do poder (na fórmula de Faoro), mas desse coisificado Brasil.

Uma visão vertical do sistema, nos leva a olhar quem está por cima (para pedir ou obedecer) ou por baixo (para favorecer ou cuidar), mas uma perspectiva horizontal hoje obrigatória muda tudo. Agora, o exemplo vem, esperamos, dos “supremos”, mas também do bom senso igualitário: de um olhar agudo para os lados. Sem isso, vamos continuar procurando messias e santos e encontrando caudilhos e boçais.

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Cito uma um exemplo clássico:

“Quando Xerxes o grande Rei dos Persas perguntou como aquelas cidades gregas sem rei se levantariam contra ele, Demaratus (rei de Esparta exilado) replicou: Eles têm, sim, um senhor e esse senhor é a lei que eles temem muito mais do que qualquer dos seus súditos. O que esse mestre comanda eles obedecem e esse comando jamais varia – ele jamais retrocede nas guerras em qualquer que sejam as circunstâncias e permanecem em formação para conquistar ou morrer.” (ver On Politics, de Alan Ryan.)

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Estamos muito longe dos gregos e mais ainda dos “índios”, que a boçalidade cultural situa na “idade da pedra”. Como ibéricos, o que vale para uns não vale para os outros. Cada caso é um caso e, embora a lei seja a mesma, o que conta não é o crime, mas quem o praticou. Não é a lei que submete o “paciente”; é – estamos pagando para ver – o “paciente” que a engloba.

A lei, reiterei no domingo de Páscoa com um desalento esperançoso, depende de quem estamos falando.

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No livro de Suzanne Chantal, A Vida Cotidiana em Portugal ao Tempo do Terramoto (1755), Lisboa: Livros do Brasil, 1962, ela fala de uma instituição pouco analisada, mas rotineira lá e aqui: o empenho.

“O chefe da família (e da casa) era, mais ou menos, o responsável (...) pelo casamento das raparigas e pelo emprego dos rapazes. Acresce, assim, que muitas vezes tinha que meter empenhos por seus protegidos, e fazia-o sem escrúpulos nem vergonha. ‘Nomeie, pois, este rapaz oficial num dos seus regimentos – dizia tranquilamente um português ao Conde de Lippe, vindo para reorganizar o exército – ele foi meu companheiro durante vinte e cinco anos e isso merece recompensa.’

Custava recusar qualquer coisa a um amigo – que, aliás, era quase sempre um pouco compadre ou parente (...), por isso abundavam funcionários inúteis, legiões de criados, os procuradores parasitas que gravitavam, obsequiosos e sem problemas, à volta de todo homem de bem.

A proteção (...) estendia-se aos mais deserdados, mas também aos menos merecedores. Recomendava-se um incapaz e afiançava-se sem hesitações um malandrim. Desde que fosse primo de uma criada ou bastardo de um primo irrequieto. Uma pessoa influente pede a outra em benefício de uma terceira, geralmente indigna ou nula, e obtém para esta um favor imerecido, ou a sua isenção de um antigo merecido. De fato (...) a influência pessoal era usada a torto e a direito. (...) Um pedido tornava-se um teste. Quanto pior fosse o caso, quanto mais o protegido tivesse ofendido a moral ou a lei, quanto mais obstáculos houvesse a vencer, mais o protetor afirmaria o seu poder.(...)” (pág. 141).

Seria daí que viria o exemplo?

Lula livre ou Lula preso, o inferno não chegará ao fim

Uma comédia de vários erros, ao longo dos anos, fez com que o processo, infelizmente, chegasse aqui. Incorretamente, o Supremo Tribunal Federal não julgará uma tese — prisão ou não, após segunda instância — o que facilitaria a aceitação do resultado. O STF julgará um casuísmo e como qualquer casuísmo, os remendos saem muito pior que o soneto.

Mesmo que o ex-presidente Lula seja inocente (ou viesse a ser, não entro no mérito), mesmo que não houvesse na Constituição Federal espaço para prisão já na segunda instância, o que será debatido nesta quarta-feira não será uma questão do direito ou das leis. Por incompetência da política e inabilidade dos juízes, esvaziou-se o conteúdo jurídico da questão. O que será debatido é o caso de Lula.

Assim, ao final do julgamento do pedido de habeas corpus, não haverá resultado bom e, óbvio, veredito que agrade a todos. A parcela dos contrariados e descontentes será tão grande quanto barulhenta, com facções revoltadas, descrentes da Justiça, desconfiados das instituições. De militantes a militares, todos se darão ao direito de discordar. Deus dirá se se darão à tentação de desobedecer.

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Preso, Lula será mártir para seus pares e defensores revoltados, bode expiatório de todos os males do sistema político. Livre, seus desafetos o qualificarão como símbolo de um acinte; exemplo do ''grande acordo nacional para estancar a sangria'', na profecia autorrealizável de Romero Jucá. A azeitona de uma grande e indigesta pizza. Não há resultado bom.

O máximo que poderemos desejar é que venha a ser, pelo menos, justo. Ainda assim, mesmo para isto, no íntimo de cada um, não haverá consenso. Com sorte, a história daqui a muito anos fará seu balanço a partir de perdas e ganhos, efeitos e consequências.

A possibilidade de o Supremo Tribunal Federal sair deste processo sem contestação será muito pequena — para não dizer nula. A chance de sair menor é enorme. O STF está dividido e mais clara ainda a divisão ficará. No mais, perderá a aura da ''suprema'' corte; última palavra. Também aí sucedeu-se uma comédia de erros.

A começar pela condução do processo, pela sua presidente, ministra Cármen Lúcia: centralização, resistência em dialogar; ao mesmo tempo, hesitação e paralisia. Perdeu-se o timing da discussão da tese, enveredou-se para o casuísmo. Com a presidente, a nítida impressão de não saber o que fazer. E o que lhe restou, foram mesmo platitudes sobre calma, prudência e respeito à lei. Tão lacônico quanto patético.

O STF esgotou sua margem de erros e restringiu suas possibilidades de acerto. Nem mesmo o Rei Salomão sobreviveu em seu espírito, pois, neste momento, é bem possível que mães preferissem ver os filhos cortados ao meio do que ceder ao inimigo que se construiu no imaginário político.

Tergiversando, o ministro Gilmar Mendes diz acreditar na pacificação, após o julgamento. A opinião é tão legítima quanto conveniente. Sua excelência se diz preocupado com os destinos do país — e com a porta de alçapão que se abriria para a boiada rumaria ao claustro, na sequência da condenação de Lula. Ok, há quem acredite no boi-da-cara-preta como modo de ninar os filhos. De acordo com seus interesses, cada um constrói a fantasia mais adequada, como essa da ''pacificação'' a partir do Supremo ou a partir da eleição.

A realidade é que nada parece tão simples assim. A corda que Gilmar e outros defensores bissextos da pacificação ajudaram a esticar ao longo dos anos pode se romper com um abrupto solavanco para os dois lados do cabo-de-guerra, que já não conseguem negociar trégua ou armistício que, ironicamente, ambos necessitam.

A disputa pelo poder no Brasil foi longe demais. A polarização eleitoral das últimas décadas gradativamente estabeleceu um vale-tudo. Tudo era permitido: da vitória eleitoral a qualquer custo; das finanças partidárias ao patrimonialismo; do debate emocional à manipulação de informações; da corrupção à mais recentemente violência. O sistema ruiu sem que a sociedade soubesse o que colocar no lugar.

Na era do compartilhamento e das redes, já sem censura ou lideranças, despertou-se o monstro da opinião pública que já não pode ser pacificado. Consolidou-se o divórcio entre política e sociedade; sofrem seus filhos. Em lados opostos, radicalizadas as partes são incapazes de compreender o processo, elaborar os motivos da divergência. Admitir a existência do outro. O inferno sempre será os outros. Lula livre ou Lula preso, não haverá mensagem de esperança e otimismo.

Carlos Melo 

Supremo barroco

Circula nas redes um desabafo bem-humorado de um cidadão anônimo sobre a suprema farsa da sessão do último dia 22, em que o STF decidiu pelo não julgamento do habeas corpus do condenado-mor da corrupção nacional.

Aliás, por apreço ao ato falho, grande parte da pantomima foi encenada em torno do debate sobre o conceito de teratologia, mais para enfeitar o pavão do juridiquês do que para livrar da “decisão monstruosa que contraria a lógica, o bom senso e a moral”, como definem os dicionários.

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Depois de incansáveis circunlóquios, e da paradoxal decisão, o que conseguiram foi um verdadeiro tiro no pé: adiaram a data do julgamento porque uma de suas excelências tinha um compromisso de caráter privado em outra cidade, como se o dever público para com a prestação jurisdicional, pela qual é pago, não fosse prioridade.

Pois sua impostura, confirmada pela maioria, veio bem a calhar, uma vez que milhões de cidadãos de bem deste país, ultrajados por tamanha desfaçatez, tiveram mais tempo de mobilização para as manifestações contra mais esta burla de nossos altos governantes e magistrados!

Hoje, os cidadãos conscientes deste país irão às ruas pressionar para que o Supremo jeitinho acorde e largue de vez esta mentalidade encharcada de ironias, ambiguidades, eufemismos e outras figuras retóricas de seu tortuoso pensar barroquista. Além de condutas plenas de exibicionismo, falta de compromisso para com a razoabilidade, a efetividade e a resolubilidade que se deve exigir da ação pública.

Trata-se de um total escárnio para com a dignidade e o respeito que devem ao cidadão brasileiro pagador de suas privilegiaturas! Pois é farsa alegar o valor corrompido da liberdade de um condenado que violou a liberdade de milhões de cidadãos brasileiros pela destruição de seus empregos.

Será que estes supremos contorcionistas não estão a perceber que as ruas exigem eficiência da Justiça? Que não vão mais admitir as heterodoxas exegeses em que têm se contorcido contra a Operação Lava-Jato?

Com a exceção de quatro ministros que tentaram em vão apelar para a responsabilidade cívica, política e histórica da maioria, o relator, ministro Fachin, a presidente Cármen Lúcia, e os ministros Barroso e Fux, o que vimos é exatamente o descrito no meme que circula nas redes:

“O STF reuniu-se para decidir. Mas decidiu que, antes, precisava decidir se podia decidir. Decidiu que podia. Mas decidiu não decidir, mesmo podendo decidir. Decidiu que vai decidir noutro dia. Mesmo assim decidiu que TRF-4 não pode decidir pela prisão antes dele decidir o que ia decidir e não decidiu!”

Supremo barroquismo! Supremo jeitinho! Suprema vergonha!

Jorge Maranhão

Gente fora do mapa

Quebrar o ovo da serpente

Nesta terceira semana após a morte de Marielle Franco e Anderson Pedro Gomes, nada foi feito de prático para esclarecer o crime nem parece que haja alguém realmente empenhado em explicar o que houve, identificar os responsáveis e puni-los na forma da lei. Com todos os cuidados para não ser confundido com os oportunistas que não disfarçam seu evidente interesse em tirar proveito da tragédia, da dor e do sangue derramado para sórdidos efeitos políticos. A esquerda achou a mártir de que precisava para narrar a saga do desespero, da miséria e da insegurança de seus militantes. A direita limita-se a desmoralizar a vítima, dando-lhe características satânicas com a mesma desfaçatez e idêntica imaginação para pintar e bordar seus preconceitos e soluções mágicas para velhos dramas rotineiros da violência que assola o País, na cidade e no campo, e da insegurança que a todos devia assustar, mas para alguns serve de válvula de escape.

Episódio bastante diferente teve igual repercussão: os furos de bala na lataria do ônibus que transportava convidados e encarregados da cobertura para a imprensa da caravana do pretenso pré-candidato à Presidência da República Lula da Silva. O tempo passa e, assim como a violenta e inepta polícia fluminense, a autoridade responsável pelo combate ao crime no Paraná não dispõe de um mísero fato para justificar seja qual for das versões díspares a mais provável. A esquerda não tem dúvida de que os insignes comandantes do Partido dos Trabalhadores (PT) e representantes da multifacetada e despreparada ala socialista foram alvo de um atentado político malsucedido. Não lhe faltam razões para espalhar essa notícia sem base em fatos: a direita é suficientemente estúpida para dar ao condenado em fuga da cadeia pretexto para se vitimizar. E seu discurso armamentista justifica a hipótese plausível, mas longe de ser comprovada. Essa ala elitista e “golpista”, de seu lado, já tem uma teoria para chamar de sua: “Ora, foram os próprios comunas que atiraram contra o ônibus” – que, aliás, não transportava ninguém relevante na hierarquia dos partidos em disputa eleitoral pelo lado gauche. O discurso de vitimização dos militantes da caravana dá também uma forte tonalidade provável a essa teoria, que, da mesma forma que a dos oponentes, não pode ser descartada.

Fake news de um lado ou de outro, contudo, incrementam a violência de parte a parte e a impunidade generalizada é reforçada pela cegueira ideológica e pela falta de compromisso com a verdade e com o Estado de Direito, que ambos os lados desprezam. Pois, afinal, ambos querem mesmo é impor seus métodos e ideias sobre os outros, que são amigos ocultos no combate à democracia, ao império da lei, que é deixada de lado, e no apanágio do convívio pacífico, que é simplesmente queimado na fogueira dos autos de fé desses extremos sem juízo nem caráter.

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Marielle Franco era mulher, negra, militante de um partido de esquerda, homossexual e voz minoritária, mas ativa, contra a intervenção militar na segurança do Estado do Rio e altiva e corajosa contra a letalidade de uma polícia em que cabem muito bem os dois papéis: o de carrasco e o de vítima. O ovo da serpente é também um enigma impossível, pelo menos nas atuais circunstâncias, de decifrar: policiais morrem mais porque matam mais ou acontece exatamente o inverso? A resposta a essa terrível questão passa pelo debate inócuo sobre a inocência ou o oportunismo dos mártires dessa intifada de inimigos inconciliáveis, que deveriam ser adversários civilizados. E deixa de lado o único jeito de estancar o sangue derramado pelas balas perdidas, das quais só se conhece o alvo, nunca a mira.

Neste instante, nada trará de volta a vida da vereadora e do motorista, da mesma forma que ninguém, de um lado ou de outro, depois das balas disparadas contra o ônibus da caravana de Lula, recorrerá à razão, à cabeça fria e à prudência para erguer a voz contra o ódio à diferença. Não interessa a esta altura nem a lógica que acusa nem a mão que atira a pedra ou o ovo. A razão começa na capacidade de investigar e descobrir antes de concluir e apontar o dedo na direção do nariz do outro.

A intervenção militar, dita federal, na Segurança do Rio começou errada e não tem como produzir acertos, pelo menos enquanto não abandonar as raízes podres plantadas no pântano de suas primícias. Marielle tinha razão de ser contra. O governo que a engendrou estava interessado em pirotecnia e marquetagem política, definida na expressão calhorda do porta-voz do presidente, adequadamente chamado de Mouco: “capitalização política”. Tanto tempo depois do “golpe de mestre”, a violência recrudesce e não há lenitivo para os disparos em sequência e os urros dos atingidos, inocentes ou suspeitos. Em dezembro, quando o prazo se esgotar, com os governos federal e estadual nos estertores de uma agonia que só o povo sofre, a intervenção ainda será popular pelo que representa de óbvia esperança. Mas também ineficaz, enquanto não responder aos desafios fáticos com a realidade nua e crua, e não tontas teorias apressadas.

Neste fim de semana, O Globo publicou testemunhos oculares da execução de Marielle e Anderson que a polícia não ouviu porque dispensou, seja na cena do crime, seja, depois, na delegacia. Tudo o que a autoridade trouxe a lume foi a tentativa de usar o fato para bater caixa. O ministro da Segurança Pública cometeu o desatino de sair disparando por aí futricas desconexas que ouvia nos corredores de quartéis e delegacias desprovidas de inteligência de verdade, mas cheias de comadres fofoqueiras – o carro localizado em Minas, a fábula de mil e uma noites da munição da Polícia Federal (PF) usada na chacina de Osasco, no massacre de São Gonçalo e em agências de correios da Paraíba, etc.

Os generais Braga e Richard já perderam muito tempo ensinando repórteres a entrevistar e distribuindo comunicados sem fatos a narrar. Poderiam agora partir de um pressuposto básico: ou recorrem à PF, à Agência Brasileira de Informação (Abin), ao FBI ou ao Serviço Secreto de Sua Majestade para descobrir quem matou Marielle e Anderson, ou terminarão incluídos no rol dos Judas a serem malhados no Sábado de Aleluia que vem. Nada há de seguro para servir de ponto de partida para uma certeza qualquer, mas a inépcia das polícias do Rio resulta da incompetência reconhecida por anos de fiasco na guerra contra o crime ou da desconfiança de que os verdadeiros autores da execução jamais apontarão para o próprio peito. Nesse sentido, aliás, a autoridade perdeu muito terreno: afinal, os assassinos da juíza Patrícia Acioli, que ousou desafiar a banda (será mesmo só uma banda?) podre das forças de repressão do Estado do Rio, foram apontados e punidos. Pelo andar da carruagem (e que carruagem lenta, seu Jungmann!), isso não acontecerá agora. Como também a polícia paranaense não tem competência nem vontade para dar à opinião pública neutra nessa guerra ideológica de completos idiotas uma satisfação lógica sobre os furos na fuselagem do ônibus dos jornalistas e convidados de Lula, em Francisco Beltrão. Sei que não é simples. Mas a questão é que ou dá ou desce, ou vai ou racha. Não há panos quentes que não queimem nem água fria que não afogue nesse cruzamento de torpedos de investigação cegos e trôpegos.

É ingenuidade demais imaginar que é possível calar os torpedos verbais do condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro ou os ovos e pedradas de seus inimigos figadais. Ou pedir que a esquerda desarme o altar de Marielle para ajudar a descobrir os que encurtaram sua vida promissora de líder política de uma comunidade sem voz. Mas urge exigir dos militares que entraram na fria da intervenção por falta de coragem e dos policiais federais que só querem protagonizar a guerra popular contra a corrupção que façam um esforço sério, competente e de verdade para identificar, prender e processar os verdadeiros donos dos revólveres que dispararam contra o Agile no Estácio, o berço do samba, ou o ônibus que cruzava a terra fértil do Paraná, que teve em José Richa, pai do governador Beto, um político capaz e responsável, que ajudou a construir a democracia com ousadia e sem tremer de medo do arbítrio armado e truculento. A democracia hoje precisa mais dessas investigações do que da propaganda boboca da Justiça Eleitoral de uma eleição da qual não é capaz sequer de acompanhar a contabilidade ilícita.

José Nêumanne

Sol na sala

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Como toda manhã

o homem lê o jornal
sentado no sofá

Como toda manhã
o cão espera
ao lado do sofá

O mundo de sempre está
no jornal esta manhã –
os mesmos fatos
as mesmas disputas
entre as mesmas facções rivais
os mesmos estupros e assassinatos
hediondos todos
alguns mais

O cachorro sabe que logo
o homem fechará o jornal
e como toda manhã
irá providenciar sua ração

É sempre assim mas hoje não –
o tempo corre e o cão
começa a se tornar impaciente
ameaça gemer
mas o homem não se move

O jornal continua aberto em suas mãos
desliza agora um pouco para o colo
e é como se o homem
lendo uma notícia boa afinal
tivesse se concedido
dormir um pouco
reconciliar-se com o mundo
como se já não houvesse
estupros assassinatos
peste fome
suplícios danação
jovens vozes caladas por balas
porque ousaram
colocar a esperança
entre as palavras
de sua canção

Como se o mundo
fosse só um homem
cochilando no sofá
observado pela fome
agora aflita do cão.
Raul Drewnick

Lembrem das lições de Nuremberg, segundo Kubrick

O memorável duelo entre os juízes Dan Haywood e Ernst Jannings ainda continua imperdível. Estes tempos de justiça nebulosa nos céus brasileiros fazem-nos lembrar o filme "Julgamento em Nurembertr" (1961). O diretor Stanley Kramer retrata o famoso julgamento internacional das altas autoridades nazistas. Os personagens Haywood (Spencer Tracy) e Jannings (Burt Lancaster), entre o elenco estelar, representam o debate entre a democracia ideal americana e o autoritarismo nazista infiltrado inclusive na Justiça de um país respeitado por sua filosofia do Direito.

No banco dos réus, está a nata da magistratura alemã do Terceiro Reich, que forjou julgamentos e manipulou decisões favoráveis dentro da doutrina do Partido Nacional Socialista. O símbolo da Justiça alemã, Jannings, era um intocável que se escudava na imagem de eminência do Direito, a ponto de afrontar o tribunal internacional por não reconhecer sua legitimidade para julgar a nata da Justiça alemã.

Janninsg, na vida real Franz Schlegelberger, com extensa obra lida e respeitada fora da Alemanha antes de 1933, sentenciava dentro da falta de ética e moral nazistas. Se considerava acima de tudo e todos por vestir uma toga.

Para o juiz alemão, se existesse a letra da lei o espírito da lei seria o próprio Schlegelberger. Um posicionamento condenável ontem, hoje e sempre pelo autoritarismo desses ditadores rastaqueras que infestam instituições e viraram praga sob a capa de defenderem um Estado de Direito. Alardeiam em falas emboladas o direito próprio de administrar a justiça a bel-prazer para gozo de uma classe.

São os mais nocivos seres de qualquer Estado que se queira um dia se orgulhar da sociedade que criou. Constroem com suas interpretações estrambóticas o autoritarismo mais criminoso: a Justiça privilegiada. Olímpicos seres, regiamente pagos pelo dinheiro público, ditam como mantra a justiça que acham justa para os contribuintes. Querem a História escrita por suas penas numa governança de arbítrio.
Luiz Gadelha
 

Gilmar Mendes escancara o que antes era oculto

A cortina ainda não abriu para o segundo ato do julgamento no Supremo do habeas corpus de Lula. Faltam menos de 24 horas para o início do espetáculo. A plateia ouvia o ruído abafado das arrumações nos bastidores quando, de repente, Gilmar Mendes atravessou o ensaio para oferecer pistas de como estarão as coisas no palco na hora que abrirem o pano. A suprema voz soou em Lisboa, onde tudo começou.

“Ter um ex-presidente da República, um 'asset' [ativo] como o Lula, condenado, é muito negativo para o Brasil”, disse Gilmar em entrevista. Um pedaço do público talvez avalie que mais negativo é ter um ex-presidente que, embora condenado, ainda não foi preso porque o Supremo lhe concedeu um inédito salvo-conduto preventivo. E o mais provável é que o preventivo se torne rapidamente definitivo.

Noutro ponto da conversa, Gilmar declarou: ''Se alguém torce para prisão de A, precisa lembrar que depois vêm B e C''. No Brasil, as coisas são mesmo simples, mais simples do que muitos pensam. Simples como o ABC.

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A, existe Lula, líder máximo do PT, já condenado em segunda instância a 12 anos e 1 mês de cadeia. B, existe Michel Temer, um presidente do PMDB com duas denúncias criminais prontas para sair do freezer quando ele descer a rampa do Planalto. C, existe Aécio Neves, um grão-duque do PSDB que aguarda na fila. Tudo muito simples.

Embora o Supremo tenha decidido em 2016 que condenados em segunda instância podem ser presos, Gilmar, que votou a favor, considera essencial rediscutir a matéria. O julgamento desta quarta trata espeficamente de Lula. Mas por que não abrir o leque?

“Qualquer que seja o resultado, pela execução de prisão em segundo grau, ou pela não execução, haverá uma acomodação pacífica em relação ao tema”, declarou Gilmar. O ministro reconhece que pode haver uma ou outra incompreensão. Mas acha que tudo acaba se ajeitando.

“Um lado dirá bem feito, tomou-se a decisão correta. Outro lado dirá que não foi bem feito e fará críticas. Mas depois haverá um sentimento de acomodação e será respeitada a decisão do tribunal”, disse Gilmar, sem perceber que o vaivém já corroeu a respeitabilidade do Supremo.

Gilmar lamentou que “o processo público talvez tenha se tornado exageradamente público no Brasil.” Utilizou uma analogia futebolística: “Assim como falávamos que tínhamos 100 milhões, 200 milhões de técnicos de futebol, agora temos 200 milhões de juízes. Todos entendem de habeas corpus…”

O ministro acrescentou: “Isso não é mais conversa de jornalista, é de jornaleiro. São questões postas e temos que conviver com isto. O importante é que entendam do que se trata para depois emitir opinião e nem sempre isso acontece. Temos que melhorar a relação da informacão do público e daqueles que comentam.”

Houve um tempo em que os crimes do poder no Brasil acabavam sempre em impunidade. Nada acima de um certo nível de poder e renda era tão grave que justificasse o desconforto de uma punição. Nessa época, o Judiciário exibia uma transparência de vidro fumê.

De escândalo em escândalo, o país desaguou na Lava Jato. E o brasileiro levou a mão à carteira. Afinal, se o Supremo não toma conhecimento do incêndio no circo, o contribuinte vai tomando consciência de que é o responsável pelo dinheiro que mantém a lona em pé.

Ao receber seu contracheque, seria ótimo se Gilmar pudesse devolver a parte do salário que é financiada pelo pedaço da plateia ignorante em matéria jurídica. Até lá, é melhor render homenagens ao patrão, pois sem a bilheteria não haveria o circo.

Escaldado, o brasileiro vai se tornando especialista em enxergar o lado bom das coisas, mesmo que seja necessário procurar um pouco. No caso da entrevista de Gilmar, o bom é que ela escancara o que antes era oculto. Não resolve o problema. Mas ajuda a explicar por que o Brasil é o mais antigo país do futuro do mundo.

Imagem do Dia

Königssee é um lago a sudeste da Baviera , cercado de montanhas .
Lago de  Schönau am Königssee.(Alemanha)

O risco de comer capim

Charge do dia 04/04/2018
No resumo da ópera bufa, o ativismo judicial de uma Corte ideologizada é coisa para deixar o País cair de quatro e não se levantar nunca mais
Ipojuca Pontes

O homem certo

Hoje, numa época em que se misturam todos os discursos, em que profetas e charlatães usam as mesmas fórmulas com mínimas diferenças, cujo percurso nenhum homem ocupado tem tempo de seguir, num tempo em que as redações dos jornais são constantemente incomodadas por gente que acha que é um gênio, é muito difícil ajuizar do valor de um homem ou de uma ideia. Temos de nos deixar guiar pelo ouvido para podermos perceber se os rumores, os sussurros e o raspar de pés diante da porta da redação são suficientemente fortes para poderem ser admitidos como voz da polis. A partir desse momento, porém, o gênio passa a outra condição. Deixa de ser matéria fútil da crítica literária ou teatral, cujas contradições os leitores que qualquer jornal deseja ter levam tão pouco a sério como a tagarelice de uma criança, para aceder ao estatuto de factos concretos, com todas as consequências que isso tem. 

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Certos fanáticos insensatos ignoram a necessidade desesperada de idealismo que se esconde por detrás de tal situação. O mundo dos que escrevem porque têm de escrever está cheio de grandes palavras e conceitos que perderam a substância. Os atributos dos grandes homens e das grandes causas sobrevivem ao que quer que seja que lhes deu origem, e é por isso que sobram sempre muitos atributos. Foram criados um dia por algum homem importante para outro homem importante, mas esses homens há muito que morreram, e os conceitos que lhes sobreviveram têm de ser utilizados. Por isso andamos sempre à procura do homem certo para um determinado adjectivo. A «portentosa plenitude» de Shakespeare, a «universalidade» de Goethe, a «profundidade psicológica» de Dostoievski e muitas outras imagens que uma longa tradição literária deixou atrás de si andam às centenas nas cabeças dos que escrevem, e essa sobrelotação de reservas leva-os a dizer hoje que um estratagema do tênis é "insondável" ou um poeta em moda "grandioso". É compreensível que se sintam gratos quando conseguem aplicar sem desperdício a sua reserva de palavras. Mas terá sempre de se tratar de um homem cuja importância já é um facto aceite, de maneira a que se compreenda como as palavras se ajustam bem a ele, ainda que não se diga exatamente a que qualidades.
Robert Musil, "O Homem sem Qualidades"

Além do Brasil, ex-chefes de Estado de 11 países enfrentam investigações e processos

A Operação Lava Jato, que condenou Luiz Inácio Lula da Silva a 12 anos e um mês de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, também já transformou outros ex-presidentes brasileiros e o atual presidente Michel Temer em alvos da investigação.

Lula, contudo, é o primeiro ex-presidente do Brasil ser condenado por corrupção pela Justiça - Fernando Collor, apesar de ter sofrido impeachment em 1992, foi absolvido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2014. E, a depender da decisão do STF que julga nesta quarta-feira o pedido do petista de não ser preso até que se esgotem todos os recursos judiciais a que tem direito, Lula pode também entrar para a história como primeiro ex-chefe de Estado do Brasil a ir para trás das grades por corrupção.

Mas a lista de líderes e ex-líderes mundiais investigados, processados e até condenados por suspeita de corrupção não se limita ao Brasil. Pelo menos outros 11 países contabilizam políticos que, nos últimos anos, perderam o cargo, foram convocados a prestar depoimento, estão se defendendo em cortes criminais ou estão até mesmo presos por acusações de terem se aproveitado do cargo público para benefício pessoal.

São políticos da Europa, América Latina, África e Ásia que passaram a ser alvos de mecanismos de controle e de instituições anticorrupção em seus respectivos países.

Ter um ex-presidente da República, um 'asset' como Lula, agora condenado é, sem dúvida, muito negativo para o Brasil
Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal
O professor da Academia Internacional Anticorrupção na Áustria e da Colgate University nos EUA Michael Johnston observa, contudo, que os mecanismos de controle de diferentes países têm sido mais eficientes em revelar esquemas envolvendo "peixes grandes" do que exatamente em conter a corrupção. Assim como o Brasil, países como Peru, Guatemala e Coreia do Sul, por exemplo, têm mais de um ex-mandatário enfrentando denúncias e processos.

Questionados se casos como, por exemplo, o de Lula, do francês Nicolas Sarcozy, do peruano Pedro Pablo Kuczynski, do sul-africano Jacob Zuma ou da sul-coreana Park Geun-hye têm algo em comum, Johnston prefere a cautela e evita comparações.

"Tem muita coisa acontecendo em diferentes níveis", observa. Ele diz que, apesar de haver uma maior percepção e monitoramento, em especial por meio das redes sociais e de iniciativas como Wikileaks, em relação à conduta individual de alguns líderes, isso não necessariamente tem levado a esforços mais robustos para conter a corrupção considerada sistêmica.

O especialista alerta que corrupção, pela dificuldade de ser mensurada, é uma questão de percepção e, muitas vezes, se transforma em um problema que engloba ou que é veículo para outras insatisfações crescentes como desigualdades, estagnação ou deterioração econômica.

"Por isso, é difícil dizer o quanto as pessoas, grupos de oposição, etc. estão reagindo à corrupção em si, o quanto reflete outras questões passageiras sobre as quais as pessoas têm sentimentos intensos e quanto reflete tensões e divisões mais profundas na sociedade. No caso do Brasil, estou tentado a dizer que são 'todas as opções acima'", avalia Johnston.
'Fritar um peixe grande'

Para o professor, mandar para a cadeia ex-chefes de Estado não resolve o problema da corrupção. "Eu não acho que 'fritar um peixe grande' seja o tipo de abordagem anticorrupção promissora que alguns dizem ser. Eu diria que é importante que o peixe grande claramente envolvido na corrupção seja punido, e não seja permitido que se perpetue a impunidade, mas os efeitos disso (dessa punição) para conter funcionários de nível inferior e seus clientes são realmente limitados", observa.

Para ele, uma fórmula eficiente de se enfrentar o problema vai além de investigar e punir o corrupto. "É importante olhar para outros fatores também, como a opinião pública, a força da sociedade civil, a qualidade do jornalismo, a qualidade da competição (política e empresarial) e qualidade dos líderes. Tudo isso contribui para a efetividade ou para a falta de 'accountability' (responsabilidade)", diz Johnston.