sábado, 31 de março de 2018

Capitalism reality

O Waterloo da Lava Jato

As ruas têm sido decisivas nas páginas de nossa história recente. Sem elas, não haveria o impeachment de Dilma Rousseff, Eduardo Cunha e Sérgio Cabral não estariam na cadeia, Lula e José Dirceu não teriam sido condenados. E Marcelo Odebrecht e Wesley Batista estariam por aí livres, leves e soltos, operando como sempre.

A Lava Jato só chegou onde chegou porque a ação firme da Polícia Federal, do Ministério Público, e de juízes da primeira e segunda instâncias tiveram o respaldo de manifestações multitudinárias.

A combinação desses dois fatores – ação republicana de algumas instituições permanentes de Estado e pressão da sociedade – emparedou, por um momento, boa parte das elites política e econômica, secularmente acostumadas à impunidade.

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Parecia que, finalmente, marchávamos para um novo Brasil, no qual o capitalismo se desenvolveria pela livre concorrência e a lei seria igual para todos. Valeria para o pobre, mas também para um ex-presidente da República.

A primavera brasileira durou pouco.

Encasteladas no aparato do Estado, as forças patrimonialistas articularam sua contraofensiva. O Congresso Nacional aprovou normas eleitorais que impedem a renovação política e o presidente da República abandonou as necessárias reformas para cuidar de uma agenda de pegada populista.

Já a instância máxima do judiciário passou a se pautar pelo casuísmo. O ápice da blitzkrieg da impunidade foi a última sessão do STF, na qual decidiu não decidir sobre o habeas corpus de Lula, mas decidiu que ele não pode ser preso enquanto a Corte não decidir. Por aí, passará uma boiada e todo o trabalho da Lava Jato poderá ir por água abaixo.

O STF pesou a mão, cometeu um erro de cálculo ao apostar na catatonia da sociedade.

As ruas estão dispostas a mostrar que não estão mortas. Os movimentos cívicos responsáveis pelas jornadas do impeachment agendaram manifestações em todo o país, para a véspera do julgamento do habeas corpus de Lula.

A batalha do dia três de abril é um pouco o dia D da luta contra a impunidade, o Waterloo da Lava Jato. Se as manifestações forem um fiasco, as forças interessadas na manutenção de seus privilégios se sentirão encorajadas a promover novos retrocessos. O passo seguinte pode ser uma “interpretação criativa” da Lei da Ficha Limpa para tornar Lula elegível.

No quatro de abril estará em jogo muito mais do que a punição de Lula pelos crimes que cometeu. Estarão também o futuro da Lava Jato e a esperança dos brasileiros.

Se a caravana da impunidade passar, o desencanto se espraiará pelo país e contaminará as eleições.

Hubert Alquéres

O STF e o tribunal da opinião pública

A situação política atual, após o julgamento em 22 de março no STF, revelou o desdobramento lógico da disposição de mudar a decisão do plenário sobre a prisão após decisão condenatória de segunda instância. Não que o STF estivesse proibido de mudar seu entendimento. Mas supõe-se que o Tribunal Supremo, quando decide uma matéria que terá repercussão geral, seja superiormente prudente para julgar antes se ela está madura para adquirir o poder que por sua aprovação passará a ter.

Imagina-se que, não estando suficientemente madura a matéria no entendimento dos juízes, o tribunal terá a sabedoria de evitar decidir ou, então, limitar-se a aprovar decisões aplicáveis exclusivamente aos casos concretos, diante de circunstâncias muito específicas. Assegura-se com esses cuidados que a inevitável turbação da ordem jurídica se encontra plenamente justificada; que suas consequências são necessárias, terapêuticas, virtuosas e que sua aplicabilidade exige repercussão geral.

O que não é aconselhável, do ponto de vista da prudência e legitimidade dos juízes e da instituição, é substituir o novo entendimento, recém-adotado, por outro que lhe é oposto, dentro de espaço de tempo reduzido. Nessas situações se estimulam cogitações que deveriam ser incogitáveis; questionam-se intenções; trazem-se para o plenário do Supremo suspeitas que não deviam transpor seus umbrais.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Como não imaginar que a decisão de revogação do entendimento vigente há menos de dois anos atenderia ao interesse político do ex-presidente Lula, quando se tratava de um habeas corpus preventivo por ele impetrado após condenação em primeira e segunda instâncias e eram de conhecimento público as declarações dele acusando os membros do tribunal de acovardados? Quando se referiu a uma ministra de maneira totalmente reprovável e desrespeitosa, como se fora uma devedora de quem se cobrava o voto pela indicação, como já o fizera com a referência igualmente reprovável ao ex-ministro Joaquim Barbosa, durante o mensalão?

Fragilizou-se assim a segurança jurídica, bem maior que a sociedade entrega ao Poder Judiciário para tutelar e que a previsibilidade dos comportamentos pretende agregar ao ordenamento jurídico. Como sói acontecer em decisões sob pressão, há erros que, uma vez cometidos, tendem a exigir outros para corrigi-los ou justificá-los, numa sequência entrópica de desfecho autodestrutivo para a instituição e seus titulares.

Para obviar a suspeita de que essa onerosa disposição ganhara corpo foi necessário recorrer a uma longa discussão sobre a preliminar de conhecimento. Quando o relator propôs uma decisão prévia sobre o conhecimento ou não do pedido de habeas corpus, a sessão arrastou-se numa atmosfera de absoluta serenidade, densa erudição e mútuos elogios, marchando ao passo de um bicho-preguiça cansado para um final sem julgamento do mérito.

Em má hora o ministro relator suscitara essa questão, supondo uma deliberação breve, como indicou seu voto sucinto e seu antecipado reconhecimento de que seria voto vencido. O que se seguiu foram longos votos que iam esgotando o tempo útil sem que nem ministros nem a presidente alertassem os colegas para – quando possível – reduzirem suas exposições e declarassem seus votos com economia de tempo. A comprovar que o tempo útil não era uma preocupação dos ministros, o próprio intervalo da sessão arrastou-se muito além do que a presidente anunciara.

Para corrigir, ou ao menos amenizar suspeitas quanto ao tempo dedicado a uma preliminar quase consensual, já mais bastava explicar-se, era agora necessário buscar a ajuda de expedientes administrativos para justificar um provável adiamento da decisão de mérito de um habeas corpus que “passara a perna” em vários outros que já poderiam ser julgados no plenário.

Comunicada a decisão majoritária de conhecimento do pedido e a convocação da próxima sessão para dia 4, o advogado de defesa solicitou um salvo-conduto para o paciente, já que o paciente não era responsável pela postergação por 13 dias do julgamento.

A solicitação foi imediatamente concedida, sem considerar o efeito cascata que tal exigência trará. Os habeas corpus a partir desta decisão ou serão negados de pronto pela autoridade judicial ou concedidos também de imediato, se por qualquer razão aquela exigência de instantaneidade não puder ser atendida. Cuidou-se assim do periculum in mora, mas foi-se leniente com o fumus boni juris.

Toda essa constrangedora trajetória ainda não se tinha esgotado, pois a presidente quis ouvir os ministros sobre a continuidade da sessão. Alguns ministros, sem hesitar, argumentaram que não seria possível, por esgotamento físico, continuar a sessão; outros tinham compromissos assumidos que, objetivamente, se revelaram mais importantes do que decidir a matéria pautada – um deles até tirou do bolso e expôs comprovante de voo que devia fazer, como se a palavra de um ministro do STF precisasse ser corroborada por um documento.

Esse o patético resultado de uma sessão do STF estigmatizada por um erro inicial e pelo séquito dos erros subsequentes. Não se tratou, contudo, de um erro jurídico. Foi um erro de descuido com a regra da prudência, aquela virtude que é chamada por Tomás de Aquino “a mãe de todas as virtudes”.

Foi a ausência da necessária prudência que empurrou o tribunal para a sucessão de erros. O resultado dessa histórica sessão se viu imediatamente nas as inúmeras manifestações de decepção, frustração e revolta que desencadeou na sociedade brasileira. Tais sentimentos abalam a confiança dos cidadãos no órgão supremo do Judiciário e na sua capacidade de garantir a previsibilidade na interpretação do ordenamento jurídico.

Dia 4 de abril o STF vai se pronunciar. Suas decisões terão força de lei. Resta saber como se comportará o sujeito oculto da oração, o novo personagem que Montesquieu não previu: a opinião pública.

Mais um rei nu

Vamos pensar um pouco, com calma, para ver se dá para entender melhor o que está acontecendo na frente de todo mundo.

O ex-presidente Lula foi condenado a pouco mais de doze anos de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro — crimes mais graves do que fazer um apontamento de jogo do bicho, por exemplo, e que por isso têm de ser punidos com pena de prisão fechada, segundo o que está escrito na lei.

Lula foi condenado a nove anos e meio, num primeiro julgamento, pelo juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, em 12 de julho do ano passado — após quase dez meses de depoimentos, perícias, exame de provas e contraprovas, exigências sucessivas dos advogados e mais todos os etcs. de uma ação penal iniciada contra ele em setembro de 2016.

Foi uma sentença de 218 páginas, fundamentada em cerca de 1 000 itens, na qual foram ouvidas 99 testemunhas, das quais 73 apresentadas pela defesa.

Até aqui, tudo dentro da lei e das garantias devidas ao réu, certo?

Certo.

Lula apelou da sentença, então, para o estágio superior seguinte, o TRF4, de Porto Alegre.

Ali foi julga­do em 24 de janeiro deste ano por três desembargadores, condenado de novo, por 3 a 0, e sua pena foi aumentada para doze anos no xadrez.

Recorreu em seguida para o degrau acima, o STJ de Brasília, onde sua reclamação foi julgada por cinco ministros; perdeu outra vez, agora por 5 a 0.

Voltou, enfim, ao mesmo TRF4 que já tinha lhe socado doze anos no lombo, e perdeu mais uma — foram outros 3 a 0.

Resumo da peça: o ex-­presidente está se defendendo desde setembro de 2016 e não teve, até agora, um único voto a seu favor.

Foi zero, zero e zero, mais a sentença inicial de Moro.

O que seria preciso, ainda, para chegar à conclusão de que Lula é um criminoso condenado pela Justiça e teria de ir para a cadeia?

Mais nada.

Mais nada para a cabeça de uma pessoa normal.


Eis aí por que a situação que se vive no momento é perfeitamente incompreensível, mesmo pensando com toda a calma.

É um jogo que está pelo menos em 9 a 0, já passou dos acréscimos e só não acaba porque Lula não quer que acabe.

O Supremo Tribunal Federal e os políticos, em peso, ficam agachados diante do homem, tratando de servi-lo — ou com medo de suas ameaças.

Qual é o problema dessa gente?

O direito de defesa para o réu foi assegurado plenamente desde o primeiro minuto do processo; pouquíssimos brasileiros, salvo amigos seus como um desses Odebrecht ou Joesley, que têm bilhões para gastar com advogados, jatinhos, peritos, computadores, pesquisas, caravanas de “apoio” e por aí afora, conseguiriam ter uma defesa tão completa e tão cara quanto a que Lula teve até agora.

Dizer que é preciso respeitar a “presunção de inocência” até “prova em contrário”, como repetem seus despachantes no STF, é simplesmente uma piada — ou, mais exatamente, uma tentativa alucinada de fazer você de palhaço.

É óbvio que todo acusado é inocente até prova em contrário — mas só até prova em contrário. Uma vez feita a prova, o réu deixa de ser inocente; passa a ser culpado.

Na Justiça de qualquer país civilizado, a sentença, a certa altura, é a prova.

Afinal, alguma autoridade, a uma hora qualquer, tem de dizer se as provas apresentadas até então valem ou não valem; do contrário, nenhum processo acabaria nunca, em lugar nenhum do planeta.

No caso de Lula, a prova foi feita quando o que se chama “segunda instância”, ou o TRF4, de Porto Alegre, decidiu que a sua condenação estava fundamentada por fatos. Fim de jogo. Ele ainda pode continuar apelando, mas teria de fazer isso na prisão.

É assim nos Estados Unidos, na Europa, no Japão: uma vez condenado em segunda instância, o sujeito vai para a cadeia. Faz todo o sentido.

No Brasil, menos de 1% de todas as sentenças confirmadas em segunda instância é modificado, depois, em algum tribunal superior.

Esse tumulto em torno de Lula só existe porque a suprema corte de Justiça do Brasil decidiu governar o país como uma junta de ditadura; manobra para ele ser declarado, na prática, impune por qualquer crime passado, presente ou futuro.

Querem fazer em favor de Lula o mesmo que o regime militar fez em favor do delegado Sérgio Fleury, do Dops de São Paulo, em 1973: condenado como torturador, ganhou o direito de apelar em liberdade pela “Lei Fleury”.

Os donos do STF conseguem, a cada dia, ficar mais parecidos com a “corte suprema” da Venezuela, que torna legal tudo o que os gângsteres do governo mandam que seja legalizado. São, em seu conjunto, mais um rei nu neste país.

Gente fora do mapa

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Relações de patronagem-clientelismo no Brasil

Em 1966, Eric Wolf publicou um estudo sobre parentesco, amizade e relações patrono-cliente nas sociedades complexas. Ele inspira análises, em várias vertentes, sobre a organização sociopolítica deste país, porque está enraizada aqui uma postura de misturar o público com o privado e o pessoal com o profissional, comprometendo, severamente, a economia, a cidadania e as aspirações de cada brasileiro. Ficam expostas também as sórdidas entranhas do tecido social, com os ardis para a dominação permanente de algumas autoridades sobre multidões, mantendo privilégios que são transferidos para seus filhos ou fiéis seguidores.

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Esse grupo assume o controle do Estado a partir de enriquecimento ou por aproximação de veneráveis lideranças que lhe cedem espaço quando não têm herdeiros à altura, cobrando os mesmos princípios ideológicos e as mesmas táticas de dominação para controlar familiares, empregados e eleitores. Mostram sua crueldade ao submeter o parente pobre, o vizinho simplório e o barnabé, desestimulando cada um para empenhar-se nos estudos e no trabalho, ao oferecer vantagens na administração pública, desde que usem os cargos em benefício de seu protetor e partido. Daí, a necessidade de que haja milhares de vagas por recrutamento amplo, desmerecendo os servidores concursados, que não terão chance de ascensão funcional se mantiverem independência em relação aos políticos controladores da repartição. Promove-se, assim, acomodação generalizada dos jovens para lutar por postos de trabalho pelos próprios méritos, porque contam com seus pais para assediar lideranças regionais, que manipulam o preenchimento dos cargos, sem considerar, necessariamente, o perfil profissional dos candidatos à função. Aliás, preferem os curingas ou figuras sem muita firmeza em suas habilidades, porque são mais facilmente controlados.

Muitos brasileiros tornam-se, daí, peças no xadrez do loteamento das inúmeras vagas da máquina pública para atender, futuramente, as determinações de seus patronos. Cria-se, então, uma via de mão dupla: o favorecido precisa cumprir ordens de quem lhe concedeu o emprego, enquanto os donos do poder impõem suas condições, mesmo quando são ilegais, cobrando-lhes lealdade eterna.

Não há interesse em mudar essa estrutura, que viceja em todas as organizações deste país, desde os ministérios até os cargos auxiliares em presídios e escolas públicas. As corporações privadas não ficam imunes a esses conchavos, pois o processo de preenchimento de vagas está imbricado na rede de relações sociais de chefias intermediárias.

A lamentável sessão do Supremo Tribunal Federal do dia 22 mostrou isso muito bem, porque todos os ministros foram nomeados pela Presidência da República, poucos tiveram experiência na magistratura, gozam de estabilidade funcional até a aposentadoria sem passar por escrutínio popular, agem como autoridades individualizadas e não prestam contas à sociedade, instância maior do Estado democrático.

O bem que faz duvidar

6776.3Impedir a disseminação do conhecimento é um instrumento de controle do poder, porque o conhecimento é saber ler, interpretar, verificar na pessoa e não confiar no que você diz. Conhecimento faz você duvidar. Especialmente do poder. De todo o poder
Dario Fo

Grito de gavião

Pontual, meu vizinho gavião anuncia: são sete da manhã, acordem, é feriado de sol em Guaratuba. Não me aborreço com ele, pelo contrário, o gavião me reanima. Tem a voz que os cristais teriam, caso gritassem na hora dos brindes. Levanto, ponho a água no fogo e vou tomar uma ducha. No banho, ouço os primeiros carros de som do dia, o prédio cercado por candidatos. Vão e voltam da praia à pracinha, como fantasmas num labirinto eleitoral, gemebundos. É a época dos pleitos, paciência, temos duas opções: caminhar por um mundo assombrado por paspalhos, ou não caminhar, entregando a eles o petróleo de nossas ruas.

Nunca foi tão importante estar bem informado.
Dare to think different, to dream big !!!!
Contrariado, caminho. A cidade ainda está na cama, mas, a cada esquina, já me atropela a estridência de um automóvel. Chego à praia com uma dúzia de melodias na cabeça, instruções de voto em ritmo de baile. Tento, em vão, resgatar a nota única do gavião, tão limpa e eficaz, e até decido visitar as corujas-buraqueiras, vai que me saúdam com a pureza de um pio?

Só encontro uma delas, muda, em seu poleiro na restinga. Ao redor da ave, dez garrafas vazias. Duas de vodca, sete de cerveja, um litro de energético. Uma fogueira recém-apagada, baganas com batom. E um tubo enrolado, espremidíssimo, de lubrificante íntimo. A coruja me encara como se sorrisse, entre a dó e o carinho, já acostumada ao amor bagunceiro dos humanos. Fantasio que queira me dizer algo, comentar que até amando fazemos arruaça, mas um carro de som surge e a afugenta. Lá vai ela, buraco abaixo, rumo à sabedoria.

Ando da Praia Central à Praia do Cristo. No trajeto, vejo o caminhão que traz cocos aos quiosques da orla. Ele ronca alto, chia, estaciona e morre por alguns minutos. Da carroceria, uma moça atira cocos a um colega no asfalto. O cara enche dois engradados e os arrasta até os quiosques. É um serviço tão silencioso e bonito que até sento para assisti-los.

A moça dos cocos está linda, produzida para um show. Usa minissaia azul, blusa de alça com estampa de onça, sandálias de gladiadora, as tiras de couro escalando suas pernas fortes. O cabelo preto, preso com perfeição, valoriza os brincos de penas verdes. A maquiagem é noturna, mas e daí? O movimento de seu corpo, ao erguer-se e abaixar-se para apanhar e lançar os cocos, lembra uma coreografia atlética, a dança de uma diva sobre o trio elétrico. Uma bailarina que prescinde de música, público e aplauso.

Na Praia do Cristo, uma surpresa: o mar avança, estentóreo, contra a cidade. Parte do chão está afundando, melhor evitá-la. Cuidadoso, me aproximo da borda do calçadão golpeado pelas ondas. Dois de nossos humildes coqueiros, que mal dão cocos, e onde jamais vi amarrarem rede alguma, já foram derrubados pelas águas. E agora estão ali, talvez como nós, só à espera da vazante, preparando-se para uma viagem imprevisível.

Outro carro de som aparece, mas não decifro o que diz sua música. Dela, só me chega a marcação primitiva do bumbo. O resto dos instrumentos, o nome e o número do candidato, seus feitos e desejos, tudo isso o mar, bravo, abafa. E é tão bom ouvir aquele tambor de ressonâncias tribais à beira esfarelada deste balneário. Até me devolve alguma esperança. Amanhã, o gavião gritará de novo.

Lição de Uganda

Dia desses, lendo um jornal lá de Uganda, deparei-me com uma frase absolutamente surpreendente e instigante: "a educação está causando pobreza e desemprego". Seu autor, por paradoxal que possa parecer, integra o mundo acadêmico: o Professor Jacques Zeelen, da Universidade de Gulu.

Disse ele, explicando sua ideia: "há um desencontro entre o sistema educacional e o mercado de trabalho", do qual resulta uma geração preparada para empregos que não existem, e despreparada para os que existem. Secundou-o o Professor John Asibo, Diretor do Conselho Nacional de Educação Superior: "você não precisa estudar em uma universidade para ser uma pessoa de sucesso".

Decidi saber mais sobre o assunto. Li, em um jornal do Vietnam, que "o número de graduados desempregados já é de 20% da força de trabalho". Em Cingapura, somente seis a cada dez graduados conseguem emprego após seis meses de formados. Na Rússia, 30% dos graduados não conseguem uma ocupação definida. No Reino Unido, 50% dos formandos não conseguem trabalho compatível com os cursos que fizeram. Na Índia, 75% dos que cursaram engenharia estão desempregados. França: "14% dos sem-abrigo frequentaram curso superior". Malaysia: "40.000 graduados desempregados".

E a famosa Coreia do Sul, cujo sistema educacional é tão elogiado? Com a palavra seu próprio governo: "um a cada três desempregados são graduados". Na China, "quase 50% dos formandos no desemprego".

Concluí, assim, o acerto da parte inicial da frase do professor de Uganda: temos preparado nossos jovens para empregos que não existem. Sim, mas e os empregos que existem?

Comecemos pela Alemanha, que "sofre com falta de trabalhadores qualificados" - um déficit estimado em 3 milhões de braços para 2030. Na Argentina, "as empresas não conseguem os técnicos que necessitam". Na Polônia, seis a cada dez empresas tem dificuldades em contratar funcionários. Em Israel, empresas "buscam inutilmente por trabalhadores qualificados". Em El Salvador, "os jovens não estudam o que deles o mundo necessita". Encerro estas linhas com o título de uma matéria publicada em um jornal argentino: "Desajuste entre educação e trabalho: a cada 100 advogados correspondem 31 engenheiros".

Não sei a quantas anda a situação no Brasil. Será que temos estado atentos à lição que vem de Uganda?

Pedro Valls Feu Rosa

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Dartmouth (Inglaterra)

Por que os primeiros cristão não gostavam da imagem de Jesus crucificado

A imagem de Jesus crucificado só começou a ser venerada séculos depois da morte dele, e foi o Concílio de Niceia, no ano 325, que autorizou oficialmente a imagem do crucifixo tal como o usamos hoje. Os seguidores dos primeiros séculos do cristianismo se envergonhavam de uma imagem que lhes recordava a morte atroz que os romanos infligiam aos grandes criminosos.

Desde que Paulo de Tarso declarou que “se Cristo não ressuscitou [...]é vã a nossa fé” (I Coríntios, 15), interessava aos cristãos o Jesus ressuscitado, não o sacrificado em uma madeira, como um assassino qualquer. Daí que nos primeiros séculos do cristianismo não existissem pinturas nem esculturas de Jesus crucificado, só um Cristo glorioso.

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A Igreja do poder nunca se incomodou com o Jesus morto. Temeu mais ao Jesus vivo e encarnado

Nas catacumbas romanas, tanto nas de Santa Priscila como nas de São Calixto, onde se escondiam os cristãos para fugir da perseguição romana, não existem pinturas de Jesus na cruz. O líder dos cristãos aparece ou na imagem do Bom Pastor, ou celebrando a Última Ceia com os apóstolos, ou ainda criança nos braços da sua mãe. Nunca morto.

Lembro que no Instituto Bíblico de Roma nosso professor de idioma ugarítico, o jesuíta Follet, explicava-nos essa ausência da imagem de Jesus crucificado entre os primeiros cristãos: “Se o seu pai tivesse sido condenado à cadeira elétrica ou à guilhotina, certamente, por mais inocente que tivesse sido, vocês não levariam no pescoço uma efígie desses instrumentos de morte”, nos dizia ele. E acrescentava: “Ninguém conserva fotos dos seus familiares ou amigos quando mortos, e sim vivos e felizes”. Isso é o que ocorria com os cristãos: preferiam recordar Jesus em vida ou glorificado depois da sua morte.

Curiosamente, foi um imperador romano, o pagão Constantino, o Grande, quem introduziu a representação da cruz, mas sem o corpo de Jesus. Foi quando se converteu ao cristianismo, depois de ter tido um sonho, antes da batalha contra Magêncio, em que viu uma cruz e ouviu uma voz que dizia: “Com este signo vencerá”. O Império Romano começava a se debilitar, e o imperador percebeu a força da seita dos cristãos que se deixavam matar em vez de adorar seus deuses pagãos. Constantino quis conquistar aquela gente, e o cristianismo passou de açoitado a ser religião oficial. O imperador ganhou a batalha, e sacralizou-se o sinal da cruz, que foi aceito como símbolo cristão pelo Concílio de Niceia no ano 325.

Mesmo assim, trava-se apenas da cruz nua, sem o corpo de Cristo. Os primeiros crucifixos com o Jesus agonizante ou morto aparecem só no século V, e com muitas polêmicas. Os cristãos continuavam preferindo a imagem de Jesus vivo ou ressuscitado. Apenas na Idade Média, mais de mil anos depois da morte de Jesus, apareceram as primeiras representações dos crucifixos com o corpo dele mostrando os sinais de dor, sangrando pelas mãos, os pés e nas laterais.

A única pintura do crucifixo que aparece já no século I, considerada como a “primeira blasfêmia cristã”, é um grafite numa parede de gesso em Roma, ridicularizando os cristãos e Jesus. O crucificado aparece com a cabeça de um asno e a seguinte inscrição: “Alexamenos, adorando o seu deus”. Era uma zombaria com os primeiros cristãos, cujo deus os romanos haviam matado como um criminoso comum.

Isso significava, ensinavam-nos no Instituto Bíblico, que, sob a influência da conversão de Constantino, a Igreja começou também a se hierarquizar e a se revestir com os símbolos do poder mundano. Na verdade, se fez política e até mesmo drama com a crucificação para fomentar-se a teologia da cruz e do pecado, em detrimento da teologia da ressurreição e da esperança.

Para a Teologia da Libertação, por exemplo, a crucificação é o símbolo de todos os torturados e assassinados injustamente na história da humanidade, e a ressurreição é a grande esperança de todos os excluídos. Essa teologia, tão enraizada na América Latina, tentou ser uma volta ao cristianismo primitivo, no qual se destacava a imagem do Bom Pastor em vez da do crucificado. Entretanto, a Igreja, que até o papa Francisco ainda se revestia com os símbolos do poder dos imperadores romanos, preferiu inculcar a teologia do medo do inferno.

A Igreja do poder nunca se incomodou com o Jesus morto. Temeu mais ao Jesus vivo e encarnado, solidário com essa parte da humanidade que, como nos tempos do profeta crucificado, sempre acaba abandonada à própria sorte.

Está um Brasil muito esquisito, não está?

Muita violência, muito ódio, muitas news, fakes ou reais, desrespeito nas ruas, desrespeito na Internet, o Brasil dividido em dois, raiva de um lado e do outro, tudo muito confuso e muito assustador.

As ameaças sofridas pelo ministro Edson Fachin são de estarrecer. Não creio que algum dia se saberá quem as proferiu, mas tenho fé que a PF o protegerá e à sua família, para o bem dos Fachin e para o nosso Bem.
Angel Boligan - El Universal, Mexico City, www.caglecartoons.com - El asesor / COLOR - Spanish - justicia, pinocho, corrupción, mentira, fraude, ciega,
Li que muitos dos ministros do STF criticaram a revelação das ameaças feitas pelo ministro Fachin ao jornalista Roberto D’Ávila. Que isso os expôs muito. Ora, pílulas, o segredo só é a alma do negócio na propaganda. Na vida real, o segredo só alimenta a bandidagem.

Infelizmente, tivemos muitas notícias terríveis além dessa. O Rio alimenta muito da nossa tristeza, com a intervenção que parece estar mais no papel que na realidade. Tiroteios nas favelas passaram a ser arroz de festa. Quantas mortes, quantas vítimas do hediondo tráfico, quantas crianças sem futuro…

Os Três Poderes estão um contra o outro. Isso, procuro vasculhar minha memória, não me lembro de ter ocorrido antes. A impressão que o cidadão tem é que eles não pertencem ao mesmo país. É o Executivo de um país contra o Legislativo de outro e contra o Judiciário de ainda outro. Quando não é o caso: são os nossos Poderes que estão se digladiando. O que sobrará do Governo Federal? Ninguém sabe.

Acompanhar as notícias dói muito, em nossos dias. Mas é dor da qual não podemos fugir. Precisamos estar muito bem informados porque neste ano vamos ter eleições e não me parece que o Brasil terá outra chance de permanecer democrático se falhar na escolha nas próximas eleições. Agora, ou vai ou racha…

É vital que nos manifestemos. Isso não pode continuar assim.

Mas não adianta ter a ilusão de que vai ser fácil. Não vai.

Tenho amigos que ainda estão na ilusão de que a Instrução e a Educação são as armas que faltam para tirar o Brasil do sufoco. Quem não acompanha os comentários nas Redes Sociais pode até cultivar essa ilusão. Eu a perdi há meses. Vejo pessoas cultas e bem informadas usando um palavreado estúpido, grosseiro. Não sabem argumentar. Só sabem agredir e xingar.

Não estou exagerando. Querem um exemplo? O ministro Gilmar Mendes ao ser perguntado por um repórter da Folha de São Paulo se o STF pagou a passagem para sua atual vilegiatura em Lisboa, respondeu: “Devolva essa pergunta a seu editor, manda ele enfiar isso na bunda. Isso é molecagem, esse tipo de pergunta é desrespeito, é desrespeito”.

Pois é. De um ministro do Supremo não se pode dizer que a ele faltam Instrução ou Educação. Talvez falte equilíbrio…

Boa Páscoa, amigos. Para todos nós, para o Brasil.

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

O que é verdade? Depende

Hoje, a realidade, os fatos, os acontecimentos, são só pretextos para dar mais veracidade à sua própria narrativa pessoal

Quando perguntou o que era a verdade, Pôncio Pilatos nunca imaginou que em 2018 a verdade seria o que você quisesse que fosse.

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A realidade, os fatos, os acontecimentos são só pretextos para dar mais veracidade à sua própria narrativa pessoal e ficcional.

Estudos sobre atividade cerebral da Universidade de Amsterdam mostraram que, “quando você rouba ou mente em seu próprio benefício, você se sente mal. Mas quando você continua mentindo, esse sentimento desaparece, então você está mais disposto a mentir novamente.”

Não era um estudo sobre políticos brasileiros, mas os explica, sem os justificar. Minto, logo, existo é a máxima nacional. É a mais completa tradução de Donald Trump. Desafia a velha crença psicanalítica de que mentir, todo mundo mente, mas quando você começa a mentir para si mesmo, não há psicanálise que resolva.

Estamos às vésperas de nos tornarmos o único país do mundo em que réus condenados em duas instâncias só cumprem pena depois de um terceiro julgamento e infinitos recursos. Nem as maiores cleptocracias africanas aceitam isso. A esperança é o próximo Congresso restaurar a norma do STF ainda vigente, que em breve vai ser revogada pelo STFdoB.

Não só corruptos, mas estupradores, pedófilos, ladrões de carro e traficantes, que podem pagar a advogados, comemoram a boa nova, que restaura a impunidade — apesar de tudo que aconteceu no país. Ganharemos mais um título, de campeões mundiais da sem-vergonhice, ao som do clássico dos Titãs “Bichos escrotos”.

Verdade ou mentira? Depende de que lado você leia. O que envergonha alguns, envaidece outros. Há o voto que apequena e o que engrandece.

Pode-se dizer com certeza que qualquer notícia vinda de um partido político é fake news. Ao confundir propaganda com jornalismo, como se fossem uma coisa só, sua credibilidade como fonte de informação é zero. Estão pregando para convertidos, mas é preciso manter elevado o moral das tropas…

Mas acreditar em quem?

Mais atual do que nunca, outro clássico dos Titãs, “Polícia”, encontra eco em 2018: “Verdade para quem precisa/ Verdade para quem precisa de verdade”.