sexta-feira, 16 de março de 2018

A selva que nós mesmos muramos

O Rio de Janeiro foi modelo (ou se arvorou como tal) do que é belo e prazeroso e, assim, tornou-se propagandística “porta de entrada” do País. Agora volta ao cenário pelo que tem de horror ou espanto, que culmina com a intervenção militar tentando secar um caudal de morte e violência.

Desde 1960, quando deixou de ser capital da República, do “modelo” só permaneceu intacto o que veio da natureza – a Baía de Guanabara, o Pão de Açúcar, a vista do Cristo Redentor, o verde do verde. As praias poluídas e a brisa do mar infestada de fuligem refletem a mesma visão que transformou em covil do crime o que poderia ser pequeno e permanente paraíso.

Desídia, desdém e desleixo – ou “malandragem”, como diz o povo – dominam o que o Rio tem de exuberante. Nos tempos de capital da República, o falso esplendor da burocracia (com muito emprego e pouco trabalho) fazia brilhar o que não tinha brilho. Era o anel de vidro que, ao sol, parece diamante.

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Hoje tudo é visível. Até o carnaval e as passistas seminuas (que nos fazem ver o corpo feminino como uma das belezas da Criação, não como pecado), estão sob domínio de “bicheiros” condenados pela Justiça por vínculos com o narcotráfico. E, por extensão, com o que aterroriza e faz do Rio um amontoado sem paz, em que a única lei é não ter quem imponha a lei.

E “a Cidade Maravilhosa, cheia de encantos mil” transmitiu ao País um estilo de vida em que o dia a dia converge na corrupção e no roubo. O vil assassinato vai além do narcotráfico. Adolescentes matam para roubar um carro, telefone celular ou tênis “de marca”.

Não é sequer uma “guerra de classes” de um Robin Hood marxista que assalte ricos em socorro de pobres. Pobres matam também pobres e roubam centavos. O crime tornou-se um dos “monumentos” edificados na cidade, como o Cristo Redentor, os Arcos da Lapa e o Maracanã.

Ou alguém pensa que a extensa corrupção do governador Sérgio Cabral foi obra solitária e exclusiva, inventada por ele e seus asseclas do PMDB e de outros partidos? Ou que violou terreno virgem de castas e honoráveis donzelas?

Já condenado a mais de um século de prisão e, a cada dia, réu em mais processos, esse Cabral atual descobriu uma terra em que o crime se escondia nas frestas. Como o Cabral das caravelas de 1500, ele apenas redescobriu o paraíso que os nativos da terra conheciam sem explorar.

Em terreno fértil, pôs em prática a observação do “em se plantando tudo dá”, de Pero Vaz de Caminha, escrivão da esquadra! E o agricultor-chefe Sérgio Cabral, virou hipermilionário sem enfrentar secas e demais inclemências vividas por quem, de fato, cultiva a terra.

No final de fevereiro (antes ainda da intervenção militar no Rio), aqui, neste espaço, sob o título A cidade murada e a cidade-selva, Fernão Lara Mesquita lucidamente chamou a atenção para o perigoso erro de vigiar “apenas as consequências” e advertiu sobre a expansão da violência: “Não há como deter isso com polícia. Nada – nem o Exército Brasileiro – resistirá ao contato direto com esse grau de infecção”.

E convicto de que “as doenças da política só se curam com os remédios da política”, sugeriu vigiar as causas por meio de um sistema em que o povo remova quem o engane. A advertência é uma convocatória a buscar as causas da violência para extirpá-la pela raiz.

O Rio não é foco infeccioso único do horror, que está também em São Paulo ou onde for. Identificada na construção de Brasília, em fins dos anos 1950, a corrupção esteve presente (mas escondida) na ditadura militar e, logo, incorporou-se ao cotidiano. Na era Lula foi moeda de troca do PT com os mais diferentes partidos. Com a alta sabedoria do seu chefão Paulo Maluf, o PP comandou o assalto à Petrobrás. Quando o “mensalão” parecia o horror máximo, jovens procuradores da República e a própria Polícia Federal descobriram na Operação Lava Jato a ponta do iceberg que fez o majestoso Titanic naufragar.

Agora, o clímax: o presidente Michel Temer é investigado pela Polícia Federal e as malas (com milhõe$) do seu antigo a$$e$$or passam ao anedotário…

Em dia claro, com políticos e grandes empresas dedicadas a a$$altar, o narcotráfico marginal cresceu. No Rio, virou um “Estado” dentro do Estado, com justiça própria que sentencia à tortura e à morte. E transforma em bandidos os recrutados, sob beneplácito da polícia corrompida.

Violência e vulgaridade são irmãs siamesas. Aqui, de norte a sul, educa-se para a violência através do vulgar. A educação deixou a escola convencional e se aninha na falsa “música” de berros estridentes e letras pornográficas. Ou nos filmes e programas de TV em que a violência e o palavrão se espalham como “virtude”. Com as invencionices mórbidas das “redes sociais” o horror vira modo de vida.

No cume, no topo desse Everest, um novo e perverso comércio travestido de “igrejas” enriquece seus “donos” vendendo “milagres” em nome de Deus. E a transcendência da religiosidade se rebaixa a cobiçado (e caro) objeto de consumo.

O engano e a fraude, ou a violência e a morte, se identificam, assim, com a normalidade. E chegamos ao Rio atual, ocupado militarmente por uma força estranha, mas libertadora, chamada às pressas pela falência total do poder público (e da população) por não reagir à demência dos violentos quando eles eram ainda débeis.

Há protestos por fotografarem os moradores, como se isso ferisse “a intimidade”. Mas em prédios públicos e privados, escritórios ou consultórios, não se fotografam os visitantes e se exigem RG e CPF, sem nenhum protesto?

Na selva que nós mesmos muramos, todos passamos a ser bichos...

O indulto e seus caronas

Tenho enfatizado que não sou jurista; sequer advogado. Não sustento suposto honoris causa agasalhado na soberba e na pretensão de compreender o que desconheço. Não creio que o tema possa ser passatempo para curiosos. Quando me refiro a questões de Justiça, data a máxima vênia, o faço somente na virtual confluência que tenha com a política. A política é o meu tema. Mas, essa união de corpos — Justiça e Política — tem sido, contudo, muito frequente.

A Justiça que tem se transformado em questão política não é para iniciantes. Trata-se de mistura perigosa. Algo como transformar pólvora em utensílio de cozinha. O conflito político é inevitável e quanto produz impasses, deveria ser a Justiça o árbitro das desinteligências. Quando isso se inverte, estamos perdidos.

O primeiro efeito disto é que, assim como ocorre com a moda gastronômica — sem saber fritar um ovo, o sujeito se enxerga Chef de Cuisine — explodem juristas de botequim pelo país afora. Uns a favor de qualquer coisa, e outros exatamente contrários ao que quer que seja. E jactam-se da pretensão de ser o que não são. Já eu admito os limites.

Todavia, o vício torna irresistível mexer com essa pólvora que ferve na panela e causa combustão política. Refiro-me ao quiproquó que se dá em torno do decreto presidencial de Indulto de Natal, suspenso pela Justiça. Necessário entender do que se trata.

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Assuntando o tema, descobre-se que Indultos de Natal, dentro de critérios claros, servem para libertar condenados sem periculosidade, que já cumpriram boa parte da pena e, nas condições penitenciárias do país, é mesmo melhor que sejam libertados, rapidamente.

São de prerrogativa dos presidentes da República. FHC, Lula, Dilma e agora Michel Temer concederam indultos. Embora sejam um instrumento estranho, meio sem pé nem cabeça — o correto seria que legislação ordinária estabelecesse, definitivamente, os parâmetros — que se consolidou na tradição brasileira. Como a Jabuticaba, afirma-se, só existe no Brasil.

Indultos são necessários em virtude de detalhes tão simples quanto chocantes: abarrotado de corpos e almas, o sistema carcerário nacional é o inferno na terra. Abriga muita gente que não deveria estar ali. Casos em que caberiam penas alternativas; e tantos outros esperando respostas de uma Justiça lenta que protela a liberdade de quem já poderia estar em casa, tentando recomeçar a vida, em outros termos.

A política carcerária do Brasil, o tamanho população que abriga, as condições em que a abriga e a efetividade de seus resultados não são apenas um escândalo. São mesmo o desastre humano escondido sob a indiferença. Logo, no Brasil, indultos fazem sentido, sim.

Na forma de jeitinhos e gambiarras, ficam a cada ano por conta da decisão do presidente da República. O problema, portanto, não reside no indulto, nem na prerrogativa presidencial. Como tudo, entre a virtude e o vício estão a contenção ou o excesso com que se manobra as gambiarras.

Para mitigar riscos de discricionariedade, definiu-se que indultos sejam baseados em minutas e recomendações do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Além do Código Penal, é claro. Sem muita distorção, isto é normalmente observado pelos presidentes da República.

Mas, no Natal passado não foi bem assim. Até onde pude compreender, crimes do colarinho branco são excluídos das recomendações do Conselho. O indulto não pode ser para gente perigosa e a corrupção continuada é um perigo. Ademais, para ter o direito, o detento precisa ter cumprido parte da pena. A média da série histórica dos indultos aponta que os benefícios foram normalmente concedidos a quem havia cumprido pelo menos 1/3 das penas que, também pela média histórica, não eram superiores a 8 anos de prisão.

Michel Temer, no entanto, optou por outros critérios: reduziu o cumprimento da pena abaixo da média, estabelecendo um 1/5 (20%) do tempo de condenação, elevando esse período para além dos 8 anos — na verdade, deixando sem limites. Além disso, incluiu o crime de colarinho branco entre os beneficiados, contrariando a visão do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, como também determinações do Código Penal.

Coincidência das coincidências, o indulto de Michel Temer acabava por beneficiar condenados pela Operação Lava Jato, contrariando legislação em vigor. Ora, não está na Constituição que indultos possam se sobrepor às leis. A Constituição define o direito de indultar, mas não que indultos atropelem as leis do país. Toda gafieira tem, afinal, seu estatuto.

O fato é que os crimes de colarinho branco, em especial da Lava Jato, pegariam carona na inegável necessidade de indulto. Invertia-se, assim, os termos do alerta que diz ''por onde passa um boi passa uma boiada''. No indulto de Michel Temer, por onde passaria a boiada carente e merecedora, passariam ilesos uns tantos bois gordos, vistosos e malhados pela opinião pública. Absolutamente, fora da lógica e do princípio do indulto.

Ao que parece, o presidente não teria apenas indultado, teria legislado. Na democracia, não é razoável que sob um único indivíduo recaia tanto poder, mesmo sendo presidente da República eleito ou popular — o que não é ocaso. Faltam pesos e contrapesos? Pois, a novidade é justamente esta: pelo menos neste caso, não faltaram.

A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, questionou o indulto de Michel Temer, levando o caso ao STF. Durante o recesso, a presidente do Supremo, ministra Carmen Lúcia, acolheu o questionamento da PGR, suspendendo o decreto. O caso deveria ser decidido pelo Plenário, mas, não foi pautado. Caiu nas mãos de Luís Roberto Barroso — em outros processos, pedra no sapato de Michel Temer — que resolveu observar a lei, dando também ele razão à PGR.

Com o balanço dos dias, o ministro acabou pressionado por Defensorias Públicas de todo país: a suspensão do indulto tinha efeito deletério. Barrava colarinhos brancos, mas retirava o direito dos presos enquadrados e merecedores. Fez-se um buraco negro jurídico que somente Stephen Hawking pudesse decifrar. O impasse estava criado. Em nome da Justiça e da funcionalidade do sistema, qual a alternativa: libertar bacanas da corrupção, engolindo o free rider, carona?

Barroso desatou as próprias mãos e desfez os nós da questão: acolheu a suspensão apenas em parte. Manteve os bois gordos nas celas, soltou a maioria magra que fizera jus ao indulto. Aliviou o peso sobre o sistema e foi ao encontro da opinião pública. Seus detratores querem, agora, seu impeachment. Também eles pegam carona para ir à desforra de outras rixas. O Brasil não é mesmo para principiantes.

Carlos Melo 

Paisagem brasileira

Laranjeiras, Sergipe - BRASIL
Laranjeiras (SE)

Nossa democracia em xeque

Se pensarmos que estamos há 34 anos do fim da ditadura militar e há 29 anos da primeira eleição direta para a Presidência da República é preocupante observar que a nossa democracia já aparenta cansaço e desmotivação. O exercício da democracia pressupõe participação efetiva, ou seja, cidadãos livres que se engajam no debate público, alinhando-se a este ou aquele partido político, que tentará colocar em prática suas ideias ao alcançar o poder. Para isso, são necessários cidadãos livres, partidos políticos, ideias...


Não são cidadãos livres aqueles que não possuem as condições mínimas de sobrevivência: moradia e alimentação. Calcula-se que o déficit habitacional no Brasil chegue a mais de 6 milhões de famílias — e a insegurança alimentar atinge cerca de 52 milhões de brasileiros. Também é muito difícil ser um cidadão livre quem não teve acesso à educação formal, chave que abre as portas de um conhecimento mais sofisticado do mundo. Segundo o Instituto Paulo Montenegro, 27% da população brasileira é analfabeta funcional.

Partidos políticos, ou seja, agremiações que possuem um programa, com o qual os eleitores se identificam e que, portanto, os representam ideologicamente, na prática inexistem no Brasil. Segundo recente pesquisa CNI/Ibope, metade dos entrevistados não demonstra simpatia por nenhum partido existente — 19% citaram o PT, 7% o MDB e 6% o PSDB. Para 72% dos entrevistados o voto é dado ao candidato, independentemente da sigla à qual ele esteja filiado.

Ideias ninguém as têm. Os políticos brasileiros defendem interesses, não ideias. Segundo resultado da pesquisa CNI/Ibope, mais importante de tudo é que o candidato de predileção acredite em Deus — fato importante para oito em cada dez eleitores... Nesse sentido, a retórica, sempre vazia, tornou-se uma espécie de roupa que os políticos vestem para se apresentar nos palanques. Dependendo do público, usam um ou outro discurso — que serve, apenas, para iludir as massas.

A falta de partidos fortes, que defendam ideias claras, oferecendo soluções racionais para problemas objetivos, empurra nossa política para o colo de líderes personalistas — como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que, mesmo condenado a 12 anos de prisão por corrupção e lavagem de dinheiro, detém 36% das intenções de voto, segundo pesquisa Datafolha. Ou para o colo de salvadores da pátria, como o deputado fascista Jair Bolsonaro — segundo colocado nas intenções de voto, com 18%.

Não é à toa que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso anda à caça de alguém que possa cumprir o papel de messias tucano, já que ele não acredita que seu candidato, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, consiga decolar nas eleições. Já foram insufladas, sem êxito, as candidaturas do fanfarrão prefeito de São Paulo, João Dória, do apresentador de televisão da Rede Globo Luciano Huck, e mais recentemente do milionário empresário Flávio Rocha...

O grande perigo para a existência da democracia é o ressentimento, a humilhação, a desesperança — sobre esse tripé alicerçaram-se os fascismos de direita e de esquerda que varreram o mundo na primeira metade do século XX. E o cenário de intolerância e incapacidade de diálogo que constatamos hoje na sociedade brasileira é um sério sinal de debilidade do nosso sistema político.

Termino essa coluna com as palavras do grande escritor gaúcho Erico Veríssimo, que em um livro escrito para o público norte-americano, afirmava, há exatos 73 anos atrás:
 “O povo brasileiro (...) observava o jogo de seus políticos. Às vezes, seguia-os em muitas campanhas, enganado por promessas de sérias reformas no mundo político. Não raro, os brasileiros tomavam parte em revoluções, lutando pelos ideais expressos nos discursos de seus líderes. Mas logo se desiludiam outra vez porque esses mesmos políticos idealistas a quem haviam guindado ao poder ao preço de seu suor, sangue e lágrimas provavam ser tão egoístas, gananciosos e imerecedores de confiança quanto os antigos. E assim a indiferença e apatia — esses venenos que invadem o sangue dos brasileiros com tanta facilidade — tendem a ser o estado de ânimo natural de meu povo”.

Exercício de todo dia

Charge O Tempo 16/03/2018
A vida faz-nos sempre a mesma exigência: o exercício quotidiano da coragem e do risco
Miguel Torga

Tem que mudar isso aí, viu?

‘Há momentos em que o universo conspira a nosso favor”, revelava Paulo Coelho em “O alquimista”, e milhões acreditaram. Se é mesmo assim, nos últimos anos o universo tem conspirado cruelmente contra o Brasil.

Que forças malignas, que sinistras quadraturas, engendraram esta nefasta conjunção que uniu os golpistas Michel Temer, Renan, Jucá e seus emedebistas aos golpeados Lula, Dilma e seus petistas, a Aécio e tucanos, aos pepistas de Valdemar Costa Neto e aos petebistas de Roberto Jefferson? Todos juntos para derrubar a decisão do Supremo Tribunal Federal, confirmada em três julgamentos, autorizando a prisão de condenados em segunda instância. Tem que mudar isso aí, viu?

Não é só para salvar Lula, porque se o salvar abrirá espaço para livrar Eduardo Cunha, Cabral e os atuais e futuros condenados do MDB, PT, PTB, PP, PR e PSDB. #QuadrilhasUnidasJamaisSerãoVencidas!


De que valerá o trabalho dos procuradores, juízes federais e desembargadores dos TRFs? Tempo perdido.

Cármen Lúcia resistiu bravamente, aguentou a pressão e não se apequenou. Mas até quando? Em seis meses termina sua presidência, que vai ser assumida por Dias Tofolli, que pode colocar em pauta o processo que quiser. E aí, como na canção de Chico Buarque, larari lariri...

A instituição de mais uma instância, no STJ, proposta por Dias Tofolli e apoiada por Gilmar Mendes, terá maioria no plenário e será uma vitória da impunidade dos ricos e poderosos.

Bons e caros advogados continuarão arrastando recursos anos a fio, aliados à lentidão da Justiça de instâncias superiores, muitas vezes até a prescrição dos crimes, como sempre foi.

Tem que manter isso aí, viu? Gritam em coro Temer, Lula, Aécio, Renan, Valdemar e Jefferson.

O que há de pior no país, políticos, empresários, funcionários e juízes criminosos que saquearam o Estado, estará livre para afrontar a lei e desmoralizar a Justiça.

Como na “Crônica de uma morte anunciada”, de García Márquez, já se sabe o desfecho desde o início, mas a narrativa é tão emocionante que torcemos e alimentamos esperanças infundadas até o final inexorável.

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Dunhuang, deserto na China 

...Nada morre para sempre!

Nada morre para sempre! Alguma coisa sempre fica. De onde outra nasce. Porque a vida quer viver. Como um profeta a fazer premonições, Fernando Pessoa, na voz do seu heterônimo Álvaro de Campos, clama: - Não! Só quero a liberdade! Amor, glória, dinheiro são prisões! Em síntese: o poeta não quer outra vida a não ser viver.

O tempo é um eterno desafio do viver. O passado nem sempre é passado. Insisto e repito William Faulkner: - O passado nunca morre. Sequer é passado. Em A cor púrpura, um personagem, sentindo a opressão das circunstâncias, traduz a sua inquietação: - Quanto mais as coisas mudam, mais parecem iguais. E o futuro? O que é o futuro? Uma grave e duvidosa interrogação. Nada mais. Sabe-se lá se o futuro se faz presente. Há aqueles que vivem para futuro. Adoram o futuro. Amam para o futuro. Odeiam para o futuro. Poupam para o futuro. Preparam-se para viver o futuro. Casam para o futuro. Ou mesmo não casam. Têm filhos para o futuro. Constroem riquezas para o futuro. E morrem antes do futuro. Uma pena!

Ou somos esquecidos, ou somos criticados de forma ácida ou irônica. Nem o Bom Samaritano escapou dessa. Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, de péssima lembrança para o trabalhador da Inglaterra, no tempo da imposição dos insanos postulados neoliberais, para justificar o poder do capitalismo, declarou, com a ironia britânica, que "ninguém se lembraria do Bom Samaritano, se ele tivesse apenas boas intenções. Ele tinha dinheiro também". Cristo não teve a intenção, ao criar a parábola do Bom Samaritano, em demonstrar as suas virtudes capitalistas, de pagar a conta, mas ressaltar o servir, no sentido de pôr-se ao atendimento das carências do próximo. De todos, quem é o próximo? Eis a grande e necessária indagação, cujas respostas não decorrem de meras manifestações festivas de um fazer de páginas de jornais, revistas ou de marketing televisivo.

Não sou tão velho assim, mas sou da época em que fazer caridade não carecia de tanta publicidade televisiva. Tudo era mais simples. Os óbolos eram dados, sem a necessidade de ter-se um lugarzinho no céu, ao lado do nosso Pai, o Todo Poderoso. Sou duma época em que os milagres não eram tão vulgares. As graças divinas eram recebidas com um simples e sincero pedido. Era o batei à porta e ela se abrirá. Peça e o Senhor, na sua infinita bondade, o atenderá. E o agraciado não estava facilmente salvo. Ainda tinha que lutar pra burro para conseguir escapar do inferno, embora Sartre tenha dito que o inferno são outros. Coisa de filósofo existencialista. Não sei o que mudou. O tempo às vezes passa muito rápido. Os negócios com as coisas do céu estão mais lucrativos. Mais lucrativos do que na época das espúrias indulgências. Margaret Thatcher, acima referida, com a sua acuidade capitalista, viu no Bom Samaritano não como o exemplo do próximo. Ah!, se ele não tivesse dinheiro, afirma a Dama do capitalismo, ninguém dele se lembraria apenas pelas suas boas intenções, até porque, diz o brocardo popular, de boas intenções o inferno está cheio.

Mas repito: embora não tão velho assim, sou do tempo em que ralhar era chamar a atenção, dar bronca. De uma época em que as mulheres gozavam de grandes privilégios, e infelizmente não eram tão iguais aos homens. Estes sempre tiveram a mania de ser mais iguais, no dizer Orwell. As mulheres tinham tantos privilégios que, em qualquer transporte coletivo, ao subir esse ente bíblico, nascido da costela de Adão, o homem, obsequioso, levantava para dar-lhe a primazia do lugar. Parece-me que hoje a mulher é quem presta essa homenagem ao homem, que, de sexo forte, está cada vez ficando mais fragilizado nesse embate com o sexo oposto, que nem mais é sexo, é gênero.

Sou do tempo da cristaleira, do petisqueiro e da penteadeira. Ainda do tempo em que se mandava roupa para a tinturaria. Sou da época do luto, em que se prestavam sentimentos de homenagem aos familiares que sucumbiam sem a possibilidade de viver o futuro. Sou de um tempo em que se almoçava e jantava, e a dieta era um bom prato de arroz e um apetitoso e fumegante cozido, condimentado de mandioca. Sou de um tempo em que os bons ternos eram feitos por um bom alfaiate, e os sapatos pelos sapateiros, que ainda os eternizavam com as meias-solas. Vocês, nessa alusão passadista, me perguntariam: nesse tempo, tudo era bom? Não. Não é bem assim. O alfaiate nem sempre fazia uma boa roupa; nem o sapateiro fazia sempre um bom sapato. Não havia a bendita televisão, não havia a internet; também não havia celular, o telefone era o fixo, sentava-se à porta, havia vizinhos, mas havia muita fofoca. Hoje cada é um por si e, dependendo do dízimo, Deus por quem paga. Continua-se a fazer filhos com as mesmas práticas e métodos, desde a distante época que o homem é homem e a mulher é mulher, com algumas variações in vitro, é verdade, não prazerosa. Mas são os novos tempos. Nada morre para sempre! A vida começa todos os dias, nunca deixando de ser inovação e repetição.

Bandidos colocam sangue no chope que comemoraria o 1° mês de intervenção

Estava tudo programado. Michel Temer voaria para o Rio de Janeiro para celebrar no domingo o aniversário de um mês da intervenção federal, completado nesta sexta-feira (16). Ao assassinar a vereadora Marielle Franco (PSOL) e seu motorista Anderson Gomes, a bandidagem derramou sangue no chope do governo. O presidente já não sabe se viajará ao Rio. Se viajar, substituirá a pompa de um balanço festivo por uma reunião de trabalho circunspecta, seguida de apresentação dos “resultados” e da reafirmação do compromisso de elucidar o duplo assassinato, punindo os responsáveis

A euforia do governo com a intervenção foi abatida a tiros. Morreu junto com a vereadora que, na véspera do seu fuzilamento, indagara no Twitter: “Quantos ainda vão ter que morrer?” Muitos morreram, mesmo depois que o general-interventor Braga Netto passou a governar a insegurança fluminense no lugar de Luiz Fernando Pezão. Mas todo o staff da gestão Temer está convencido de que o cadáver de Marielle desceu à crônica da intervenção como um desses símbolos que fazem a opinião pública despertar do sonambulismo.




Um dos operadores políticos de Temer definiu a mudança de cenário assim: “Iniciamos a semana programando o aniversário da intervenção. E chegamos ao dia da festa tendo que nos livrar do ‘Efeito Amarildo’.” Referia-se ao pedreiro Amarildo de Souza, um pai de seis filhos que, no dia 14 de julho de 2013, foi levado para a Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha e desapareceu. Deu origem a um coro em forma de interrogação que compôs a trilha sonora da ruína do governo de Sérgio Cabral: “Cadê o Amarildo?”

O receio do governo é o de que Temer passe a ser perseguido por uma pergunta análoga: “Cadê os assassinos de Marielle?” No Planalto, imagina-se que o pior seria evitado se a resposta fosse fornecida pelos investigadores nas próximas 48 horas. Isso permitiria ao presidente, a quem o interventor Braga Netto está vinculado por força de decreto, exibir a elucidação do crime como uma evidência da serventia de sua intervenção.

Na dúvida, autoridades do governo começam a temperar o discurso. ''Imbecil é quem imaginou que em 30 dias nós teríamos solucionado a questão da violência no Rio de Janeiro”, disse, por exemplo, o ministro Carlos Marun, coordenador político do Planalto. “Essa nunca foi a nossa pretensão. Nós temos um trabalho de longo curso, ele será realizado. Se esse assassinato tinha o objetivo de nos assustar, de nos retirar do nosso rumo, esses bandidos se engaram.''