sábado, 24 de fevereiro de 2018

Começar é preciso

É fato testado, comprovado (e lamentado) que nenhum dos governos desde a reinstituição do poder civil no país enfrentou a questão da segurança pública. Por motivos variados: covardia, indiferença, cálculo político e, no caso das autoridades oriundas da esquerda, constrangimento para o exercício do uso da força do Estado contra o crime. Princípio equivocado de rejeição a qualquer tipo de repressão.

Uma visão herdada da ditadura. Obviamente torta, pois não leva em conta que a defesa da liberdade e dos direitos do cidadão implica a preservação da ordem como fator essencial da garantia de ir e vir sem o risco permanente e iminente de morrer. Tal inépcia nos levou ao descalabro atual.

O caos é nacional, mas o Rio de Janeiro viveu peculiaridades. Entre elas, a mais grave foi o acolhimento da bandidagem como parte do cenário de glamour e maravilha da cidade. Conto duas histórias que vi de perto: uma na década dos 90, a outra anos antes de consolidada a redemocratização no Brasil, em 1985. Nenhuma delas de violência pessoal, embora ambas conceitualmente violentas do ponto de vista geral.

Em 31 de dezembro de 1985, o traficante José Carlos dos Reis Encina (chamado “Escadinha”) foi resgatado do presídio da Ilha Grande por comparsas num helicóptero. Na hora, a fuga foi celebrada com aplausos e muito regozijo na redação do Jornal do Brasil, composta na quase totalidade do “pessoal Zona Sul”, os descolados, como um grande feito. A polícia, naquela concepção, era o inimigo a ser combatido e, como foi o caso, ludibriado.

A comemoração assustava a quem não concordava e, por isso, era classificado como “de direita”. Aos de “esquerda” parecia normal, tanto que “Chileno”, pai do bandido Escadinha, era, em 1986, festejado cabo eleitoral do então candidato ao governo do Rio Fernando Gabeira, hoje uma das cabeças mais lúcidas sobre o Brasil e suas novas circunstâncias; tanto que saiu do PT ainda no primeiro governo, quando Luiz Inácio da Silva estava no auge.

Mais de uma década depois, já no governo Fernando Henrique, numa conversa com o general Alberto Cardoso, ele, então chefe do Gabinete de Segurança da Presidência, alertou sobre a existência de “territórios dominados” pelo tráfico no Rio. Isso há quase vinte anos.

Publiquei a conversa com o general, e o mundo caiu. Marcello Alencar reagiu indignado, exigiu do presidente uma atitude, e o general me ligou constrangido: “Mantenho o que disse, mas vou precisar desmentir por exigência do governador”.

Forçado pela circunstância do cargo, o general desmentiu, e a vida prosseguiu. Levou-nos, rendidos, ao lugar de reféns da bandidagem em que hoje nos encontramos. Ambiente do qual qualquer candidato(a) a presidente na próxima eleição está obrigado(a) desde já a dizer como pretende nos livrar. De modo rápido e de maneira nada rasteira, a fim de nos assegurar uma necessária e indispensável consistência no ato coletivo de resistência.

Gente fora do mapa

Hoi An ~ Visiter en 1 jour

Entre sem bater

Passada uma semana da intervenção militar para combater “o crime organizado e as quadrilhas de drogas” no Rio, podemos ter ao menos uma certeza: o preço da “mercadoria”, por mais escassa, deve ter aumentado.

Aparentemente, para decisão tão urgente, o planejamento ainda está em planejamento, os mandatos de busca e apreensão estão entre coletivos e individuais, o interventor militar em função civil nomeará outro general para a secretaria de segurança e promete falar à imprensa oportunamente.

As razões da intervenção: combater a violência derivada do tráfico de drogas, em que, na disputa por “share” de mercado, traficantes matam traficantes e milicianos matam milicianos e impõem o terror nas comunidades? Ou combater o tráfico de drogas, policiando fronteiras, mapeando a rede de distribuição e implodindo os baronatos da contravenção?


Há tempos, dá-se destaque apenas à terrível guerra de traficantes por participação no mercado. Talvez a coisa se resolvesse aí, com todas as facções canibalizadas umas pelas outras até que não sobrasse um soldado do tráfico. Mas não é assim: derruba-se uma facção e logo vem outra tomar o atraente cartório.

E porque atraente? Pelo risco emocionante de morrer em confronto? Pela exibição orgulhosa do poderio de armas? Pela capacidade de aliciar poderosos, eleger uma “bancada” da bala e ainda impressionar umas “mina”? Por ser rendoso e rentável a ponto de compensar qualquer sacrifício?

Pouco se fala desse mercado tão atraente a ponto de ser disputado numa guerra sem tréguas, com comandos dados inclusive de dentro de presídios de segurança máxima. Um mercado tão rico a ponto de atrair até comandantes de quartel, policiais e políticos para a promiscuidade do crime organizado e desorganizado em que não se sabe quem é polícia e quem é bandido.

Uma pequena empresária carioca acaba de pôr a pontinha do dedo na ferida: “no Rio, polícia cheira, madame cheira, empresário cheira, jogador cheira, bandido cheira, bacana cheira” e, pelo visto, quer continuar a cheirar em paz. Nenhum deles sobe o mato ou o morro para comprar. O “mato ou morro” é a guerra das quadrilhas.

O problema talvez não esteja na favela e nos mandatos coletivos de busca e apreensão. Apreensiva, ela se arrisca a dizer que quem patrocina a violência no Rio é o “narizinho nervoso”, a ponta compradora do mercado. E indaga se a intervenção não será apenas “pra galerinha descoladex da zona Sul ficar na brisa, sentar as venta na branquinha”, que deve andar agora mais rara e mais cara...

A empresária apenas não faz a pergunta óbvia: quanto se economizaria em vidas, armamentos, batalhões, intervenções, inteligência, planejamento e novos Ministérios, se a droga fosse legalizada. Em vez de subsidiar o crime, cobrando altíssimo preço da sociedade que acaba pagando pela farra de alguns, o Estado ainda poderia faturar um troco como já faz com a bebida, o cigarro e o jogo. E ainda criar uma Brás para empregar gente, angariar voto e tirar um “por fora”.

O Governo suspeito de Michel Temer

Todo governante é suspeito — e deve ser. Mas Michel Temer é provavelmente o mais suspeito dos presidentes a comandar o Palácio do Planalto desde a redemocratização. E deve ser. Temer assumiu o comando do país em clima de “estancar a sangria” provocada pela revolucionária Operação Lava Jato e, desde então, as lâminas das guilhotinas morais do Ministério Público enferrujaram e descem fazendo mais barulho do que estrago. “É o golpe”, grita a parte da plateia que ignora que o Governo Dilma Rousseff acabou bem antes de terminar, pelas próprias trapalhadas — ou seria antes mesmo de começar, quando fraudou dados públicos para se eleger?

A golpes de mestre, o petismo vai conduzindo com a habitual competência, num último suspiro, sua orquestra de artistas amestrados. Como convencer a audiência de que um condenado é ainda mais inocente do que ele próprio se imagina? Talvez se ele fingir que quer concorrer à presidência… Nesse caso, a condenação não lhe tiraria apenas mais um de seus valorosos direitos constitucionais, mas furtaria ao povo a possibilidade de julgar seu benfeitor nas urnas. É como se o ex-presidente Lula perdesse o pênalti e o juiz mandasse voltar a cobrança para uma nova chance, como ocorreu, no fim do ano, na ópera do malandro com arranjos de Chico Buarque naquele latifúndio que era a lateral esquerda desprotegida do time de veteranos do MST — haja bola nas costas!

Enquanto isso, o Governo Temer seguia tropeçando nas próprias pernas a cada ato. Em qualquer outro governo, a escolha de uma mulher para comandar a Procuradoria Geral da República pela primeira vez seria cantada em prosa e verso pela intelectualidade nacional. Mas Raquel Dodge não era o primeiro nome da lista tríplice… Meses depois de escolhida, chegou a vez de a suspeita procuradora-geral suspeitar do presidente, que só poderia ter decretado seu benevolente indulto de Natal para livrar seus amigos da cadeia.

Pois, pasme, há quem enxergue nessa medida o grande ato progressista do Governo Temer — e, se é progressista, é bom, certo? O generoso indulto serviria para desafogar o abarrotado sistema carcerário nacional, causa aparente da expansão de facções criminosas pelo país. Ainda que essa interpretação fosse uma mentira, seria uma mentira bem agradável, daquelas capazes de eleger presidentes da República. Não adianta tentar explicar depois, porque o Supremo Tribunal Federal logo suspendeu os efeitos mais ousados do decreto, mas talvez tivesse adiantado explicar antes.

A falta de prática, no palco, de um político de bastidores parece ser responsável até pela escrita torta do presidente por linhas certas. A inflação caiu, assim como os juros, enquanto o PIB sobe aos poucos. Tudo graças a medidas como o teto de gastos, que expôs o limite do que o país tem para gastar, e a tímida reforma trabalhista, entre outros pequenos ajustes. Tudo feito para prejudicar o trabalhador brasileiro, claro, assim como a reforma da Previdência viria para exterminar os aposentados. O que mais esperar de um Governo que admite que cobra lealdade dos governadores após alardear que os beneficiou?

A sinceridade desengonçada do ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Marun (MDB-MS), gerou indignação dos “governadores do Nordeste”, que aparecem sempre que é preciso defender o Nordeste – ou atacar seus adversários políticos. Marun negou que estivesse chantageando os colegas em nome da reforma da Previdência, mas você ficaria com o ex-escudeiro do saudoso Eduardo Cunha ou preferiria se indignar, ainda que sem muita convicção, ao lado dos “governadores do Nordeste”? A narrativa, a fake news, a pós-verdade, como quiser, está do lado de quem?

Acuado e suspeito desde o início, Temer apostou na economia como plataforma política, e quase chegou lá. Conseguiu até quebrar a resistência geral em relação à reforma da Previdência, que se metamorfoseou de punição aos pobres para medida de combate à desigualdade — se é progressista, é bom, certo? Mas o esforço de meses parece não ter sido o bastante para levar a reforma a cabo. Que tal, então, resolver o problema da segurança no Brasil? Parece uma boa ideia. É pelo o que clama não apenas a população do Rio de Janeiro, que vai receber uma ajudinha do Governo federal.

Demorou, mas Temer parece ter encontrado uma pauta na qual mesmo os desconfiados querem confiar. Com relutância, claro, porque o Governo segue sendo suspeito. Todo mundo sabe que é um truque, mas bem que poderia dar certo… Só se fala na intervenção federal e, diante do caos que tumultua a capital fluminense, fazer qualquer coisa parece melhor do que não fazer nada. É uma ótima história, daquelas capazes de eleger um presidente… Agora, só falta resolver o problema da segurança no Brasil. Ou pelo menos convencer o público de que resolveu.

Dureza, general

Nos ombros do general Walter Souza Braga Netto repousa a mais espinhosa tarefa da presente quadra: dar um mínimo de consistência a uma megaoperação de marketing. Se havia alguma dúvida sobre a alma marqueteira da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, foi dissolvida pelas descaradas declarações do próprio marqueteiro de Temer, Elsinho Mouco, ao colunista Bernardo Mello Franco, de O Globo: “Viramos a agenda. (…) Hoje a maior preocupação do brasileiro é com a segurança pública (…). O Temer jogou todas as fichas na intervenção (…). Ele já é candidato”. Pode parecer muita ousadia a candidatura de alguém com pouco mais de zero de aprovação popular e rodeado pela imagem de malas de dinheiro nas mãos ou no apartamento de alguns de seus mais próximos amigos. Mas por que não se as pesquisas apontam para um primeiro lugar vago, um segundo com proposta de voltar trinta anos no relógio da história e um terceiro disputado por um aglomerado de liliputianos ciscando em torno de migalhas?

O general Braga pouco falou na cerimônia em que foi anunciada a intervenção. Astro da festa foi o ministro da Defesa, Raul Jungmann, secundado pelo ministro da Segurança Institucional da Presidência, general Etchegoyen. O general Braga era antes uma vítima da situação. Acabara de lhe cair nas mãos uma operação para a qual as únicas preparações foram uma reunião do presidente com os ministros de sua cozinha e outra com os marqueteiros. O silêncio lhe mascarava a perplexidade. Nos dias seguintes o silêncio perdurou, e com isso abriu-­se um fio de esperança. O general Braga faz seu serviço calado. É o oposto do loquaz ministro Jungmann. Raiou a esperança de a intervenção marqueteira quem sabe transubstanciar-se em resultados substantivos.

A intervenção põe muita pedra no caminho de um oficial levado a um rumo com o qual não sonhou

Tanques e uniformes verde-oliva nas ruas não são novidade para os cariocas. Sem falar do recurso ao Exército na Olimpíada e em outros grandes eventos, está em curso desde julho uma operação que, segundo o ministro Jungmann, teria vindo para “golpear o crime”. (Decorridos sete meses, ainda não golpeou.) O que se espera de uma intervenção no governo estadual vai muito além. Ela não se completará sem: (1) uma devassa nas polícias do Rio, alguns de cujos comandos, segundo o ministro da Justiça, Torquato Jardim, são cúmplices do crime organizado; (2) igual devassa na administração dos presídios, onde os chefes do tráfico gozam de respaldo e conforto para expedir ordens; e (3) com a ajuda das unidades de fronteira do Exército e da Polícia Federal, conseguir controlar o abundante afluxo de armas e drogas ao estado.

Contra o bom êxito da intervenção tem-se a evidência de que transferir o problema para a esfera federal não é panaceia. Exército e Polícia Federal são os responsáveis pela vigilância das fronteiras, e elas seguem porosas como sempre. Na questão dos presídios, duvida-se de algum progresso quando se lembra que até hoje não se conseguiu nem mesmo barrar a entrada de celulares. Temos ainda a escassez de recursos, que não é só do Rio, mas também do governo federal, para sustentar a intervenção. Quem vai pagar o quê, e como, era uma questão em aberto desde o anúncio da medida. Leve-se em conta, por fim, que o estado segue entregue ao sistema Sérgio Cabral, o príncipe da ladroagem, ora representado pelo triste Pezão. Para ser exitosa, faltará ainda à missão do general Braga imunizar-se contra os efeitos perniciosos irradiados da vasta parte da administração fora de seu controle. É muita pedra no caminho do nosso general calado, desviado numa esquina da vida para um rumo com o qual não sonhou. Dura será sua vida.

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Com a legenda “Militares inspecionam mochilas de alunos em operação em favela na Zona Norte do Rio”, a foto na primeira página da Folha de S.Paulo da quarta-feira 21, publicada na página 54 desta edição de VEJA, exibia em primeiro plano o cano do fuzil pendente do ombro de um soldado, visto de costas, e, ao lado, de frente para a câmera, uma bonita garotinha, negra, gordinha, de uniforme azul e branco, expressão séria e grandes olhos entre indagadores e amedrontados voltados para o soldado. Imagine-se cena similar com uma menina branca, os mesmos olhos indagadores e amedrontados, o mesmo soldado, o mesmo fuzil, numa escola do Leblon. A menção a “mandado coletivo de busca e apreensão” teria chance de causar comoção. Imaginem-se o leitor e a leitora por um momento na pele dos pais da garotinha da foto. Pensemos na garotinha, que teria 5 ou 6 anos.
Pensemos nas mochilas sendo reviradas.

Imagem do Dia

Huanglong‎ (China) 

Prisões em massa, o moto das facções que afetam a vida de metade dos brasileiros

Chacinas nas ruas e massacres em presídios motivados por brigas entre facções criminosas rivais já se tornaram rotina no Brasil. Pelo segundo ano consecutivo o país vive um mês de janeiro sangrento com as tradicionais imagens de corpos mutilados, manchas de sangue no chão e parentes desesperados em busca de informações. Ano passado ocorreu no Amazonas, Roraima, Rio Grande do Norte e Acre. Este ano Goiás e Ceará foram palco da violência. Como é de praxe, nestas horas as autoridades anunciam pacotes de medidas emergenciais tais como envio de tropas federais, construção de presídios e endurecimento das penas e da repressão ao tráfico de drogas. Mas especialistas ouvidos pelo EL PAÍS apontam que algumas destas supostas soluções são, na verdade, parte do problema. Proibição das drogas, encarceramento em massa e o tratamento desumano dentro do cárcere são justamente alguns dos fatores que levaram ao crescimento exponencial e à nacionalização do crime organizado no país. Pior: traçam um cenário sombrio no qual só a reversão dessas medidas, algo que não parece estar no horizonte nem no médio prazo no país, poderiam mitigar o problema.

É uma má notícia para quase metade dos brasileiros que têm a percepção de viver em áreas sob influência das facções criminosas. Segundo levantamento nacional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública feita pelo Instituto Datafolha em agosto passado, 23% dos entrevistados consideram que é alta a chance de que o crime organizado ou facção atue em sua vizinhança. Outros 26% responderam que a chance é média. Fenômeno antes restrito principalmente a São Paulo e Rio de Janeiro, hoje as facções estão presentes dentro e fora dos presídios de todos os Estados – com conexões internacionais nos principais países produtores de cocaína da América do Sul.

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“É preciso rever a política de guerra às drogas, que não deu certo em lugar nenhum do mundo”, diz Camila Dias, socióloga da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “É difícil, quando vemos estas cenas de violência, tentar lidar com isso dizendo que é preciso romper com a política de encarceramento em massa e combate às drogas. Mas se você olhar para as ultimas duas décadas, foram justamente estes dois fatores que provocaram esta crise”.

O fracasso da guerra às drogas no Brasil é constatado até mesmo por quem atua dentro do Estado: “A guerra às drogas é perdida, irracional”, afirmou o ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro José Maria Beltrame em 2015. Enquanto muitos países começam a flexibilizar sua política de repressão e permitir o uso recreativo de algumas drogas leves, como é o caso da maconha nos Estados Unidos, o Brasil continua seguindo a mesma política de enfrentamento adotada nos anos de 1960. Aqui, a chamada guerra às drogas começou em 1961, antes mesmo do então presidente dos EUA Ronald Reagan ir à TV em 1986 com seu famoso discurso anti-drogas. “Houve uma convenção no Rio para discutir drogas e uso de tóxicos. E o que se seguiu foi um progressivo endurecimento das leis e ai o combate deslanchou. À partir daí tudo piorou”, afirma Michel Misse, professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e fundador do Núcleo de Estudos em Cidadania, Conflito e Violência Urbana.

Mesmo no período democrático a legislação manteve o viés de enfrentamento. A lei de drogas sancionada pelo então presidente Lula em 2006 endureceu a pena para o pequeno traficante sob o verniz de fazer a distinção entre usuários e traficantes. Na prática, o local de residência da pessoa detida pela polícia continua sendo o parâmetro usado pela polícia e pelo Judiciário para distinguir o primeiro do segundo. “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”, diz o artigo 27 da lei. “Como a lei não especifica a partir de qual quantidade de posse você é traficante ou usuário acaba ficando a critério dos agentes públicos”, afirma Misse.

O professor defende a legalização das drogas como única solução possível para romper o ciclo de violência. “Ela [a legalização] é estratégica, não só para o funcionamento da Justiça e para a pacificação das relação sociais. Mas na América Latina é possível dizer que o Estado de Direito depende disso. Isso é ponto pacífico, é consenso na academia”, afirma Misse. Ele, no entanto, é pessimista quanto à possibilidade da legalização avançar no Brasil, seja via poder Legislativo seja via Supremo Tribunal Federal. “Somos um país conservador. Veja o tempo que demorou para aprovarmos uma lei do divórcio! [a lei do divórcio brasileira é de 1977]”. O STF chegou a discutir a descriminalização da maconha, mas a votação foi suspensa em agosto de 2017 após o falecido ministro Teori Zavascki pedir mais tempo para analisar o tema. O placar estava 3 a 0 para a descriminalização.

Inversão de valores e empobrecimento do país

Finalmente, o Carnaval 2018 foi encerrado no dia 18 de fevereiro, apresentando vantagens e desvantagens em relação ao lazer, ao turismo, à economia, à segurança pública, à imagem do país no exterior e ao fomento de celebridades do show business. Uma investigação sobre isso pode contribuir para explicar o Brasil quanto ao senso estético, à corpolatria, às relações de gênero, às artes plásticas, ao uso do espaço público, ao apoio do Estado aos eventos populares, ao sentido de celebrações profanas, a metas individuais e coletivas, permitindo decifrar nossa singularidade na comunidade internacional.

Identificamos muitas diferenças, ao longo do tempo, quanto às fantasias, à formação de blocos e à agregação dos foliões em universo anônimo permeado por prazer, crítica política e recursos inebriantes. Algumas têm sido lamentáveis pela queda da qualidade da música e adesão dos jovens a propostas grotescas para a linguagem, as atitudes, o futuro do país e o bem-estar social. A terra de figuras magníficas nas composições e no canto em muitas situações – Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Cartola, Nara Leão, Ângela Maria, Gonzaguinha, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto, Almir Sater e Ney Matogrosso – produz agora ritmos esdrúxulos com letras deploráveis pelo incentivo à violência, ao sexo irresponsável e sem poesia, à depreciação da mulher e à afronta às instituições. Estas são indispensáveis para garantir o compartilhamento de extenso território sem carnificina e com busca incessante de liberdade, conforto, diálogo e soberania nacional.

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Lideranças políticas e teóricos de diferentes matizes têm pregado, entretanto, o confronto que vem aflorando em diferentes pontos do país, sendo o mais visível o controle dos bandidos sobre a Cidade Maravilhosa. Isso seria pelo nivelamento por baixo, expropriando as classes privilegiadas de seu patrimônio, enquanto se fortalecem as camadas populares. Daí, o incentivo de péssima produção do lazer para os jovens, com financiamento público e cumplicidade da mídia que não preza a qualidade de sua programação. A indução ao consumo dos novos “artistas” fica muito fácil porque os estudantes têm frequentado uma escola sem compromisso com a instrução, que sustentou a formação de várias gerações de brasileiros, até alguns anos atrás.

A desigualdade social é nosso grande problema, desde a colonização, e precisa ser superada com ascensão de todos via educação plena e qualificação profissional; jamais no sentido inverso. Os brasileiros merecem inserção na sociedade moderna, porque o país não pode ficar em patamares tão ridículos de desenvolvimento socioeconômico, em que o cidadão não conquista sua autonomia, ficando à mercê de demagogos e de assistencialismo governamental. Para tanto, é indispensável que o Estado elabore um planejamento estratégico que reverta a depreciação por que passam as diferentes instituições, oferecendo oportunidades verdadeiras para o estudo, o trabalho e a soberania nas eleições.

A desonra do mérito

Desde criança me acostumei a ver sobre a mesa de professores, funcionários, juízes, advogados, uma plaquinha de madeira com “Honra ao Mérito” escrito em letras douradas, prateadas ou pintadas à mão. Bem na frente da mesa, era como uma legenda sobre quem estava atrás, um ícone de cafonice, equivalente ao pinguim de geladeira e ao quadro da Santa Ceia na sala.

Cafona, sim, mas 50 anos depois, verdadeiro e urgente. Honrar o mérito é do que mais precisamos, para enfrentar o empreguismo, o aparelhamento partidário, as indicações políticas e todas as formas de favorecimento que degradaram a administração pública, as estatais e quebraram seus fundos de pensão. Esquerda, direita e centro não podem negar: sem meritocracia, não há democracia plena.

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Mas como falar de uma competição equilibrada, por méritos, entre pessoas que tiveram oportunidade, dinheiro, tempo para estudar em boas escolas, e os pobres, pretos e malformados pela maioria das péssimas escolas públicas brasileiras? Assim, as Ferraris sempre chegarão antes das bicicletas e dos jegues, embora alguns deles se transformem em Ferraris. Só a educação equilibra a competição.

Enquanto isso, nada justifica que nas administrações públicas brasileiras e nas estatais os méritos do preparo profissional e desempenho sejam atropelados pelo apadrinhamento e as indicações políticas. Não foram poucos os funcionários concursados e eficientes que aderiram a um partido político como forma de crescer na carreira.

A cultura da boquinha, da sinecura, da troca de favores, é de esquerda, direita ou centro? Seria parte integrante do DNA do brasileiro, professor DaMatta? Ou algo que se exacerbou e transbordou nos últimos anos?

Os milhões de funcionários honestos, competentes e trabalhadores são os principais interessados na reinstituição da meritocracia no serviço público e, principalmente, nas 120 estatais que sofreram prejuízos colossais com essa cultura nefasta e corrosiva. Não tem que manter isso aí, não.

Nenhum candidato pode evitar esse debate. Como sanear o desperdício e o roubo do dinheiro público provocado pela desonra do mérito?

Paisagem brassileira

FRANCISCO COCULILO - Vista noturna da Baía de Guanabara, O.S.T,Rio, 34x48 cm.
Vista noturna da baía de Guanabara,  Francisco Coculilo

Ha muito caldo e pouco feijão na panela de 2018

Os partidos têm até o dia 15 de agosto para registrar no Tribunal Superior Eleitoral os nomes dos candidatos à Presidência da República. Ou seja: faltam seis meses. Há na praça, entre candidatos e pretensos candidatos, uma dezena de nomes. A lista inclui até condenado. Mas, se a sucessão fosse uma feijoada, haveria no panelão muito caldo e pouco feijão. Carne, nem pensar. A grande pergunta é: o que pretendem fazer os candidatos? Ou, por outra: o que eles têm a oferecer? O problema não é nem a falta de projeto, mas a sensação de que todos o consideram desnecessário.

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Muitos dizem: ah, isso é assim mesmo. O brasileiro está noutra sintonia. Mal acabou o Carnaval. O Tite ainda nem convocou a seleção da Copa. Por essa lógica, o eleitor só vai acordar para a sucessão quando começar a propaganda dos candidatos na televisão. Beleza. Tudo normal. Mas foi esse tipo de normalidade que transformou a democracia brasileira num empreendimento político que saiu pelo ladrão. Depois de tantos escândalos, imaginou-se que algo de anormal aconteceria.

A oligarquia política que caiu nas ratoeiras do mensalão e da Lava Jato se rearticula para oferecer dois tipos de mercadoria nessa eleição: mais do mesmo ou algo muito pior. Nesse exato momento, os principais candidatos montam suas coligações. Seguem a mesma lógica maldita que colocou o Brasil no caminho do brejo. Em troca do tempo de propaganda, negociam a alma com Jeffersons e Valdemares, Jucás e outros azares. Só no final do processo aparecerão as ideias… Dos marqueteiros. E você, se não abrir os olhos, vai acabar elegendo a melhor encenação, não o melhor candidato.

Lula acredita ser a reencarnação de todos os pobres do país

Lula, que é católico, acostumou os brasileiros a se comparar com a figura de Jesus. Quando era presidente da República, tinha na parede, atrás de sua mesa de trabalho, um enorme crucifixo de madeira que desapareceu quando Dilma chegou. Em 2010, o ex- presidente carismático afirmou que tinha sido mais flagelado do que Jesus antes de ser crucificado: “Se eu pudesse dar uma imagem das punhaladas que levei e pudesse tirar a camisa, meu corpo apareceria mais destroçado do que o de Jesus Cristo”. No Brasil, “só Jesus ganha de mim em honradez”, disse em outra ocasião. E perante o juiz Moro explicou que aqueles que o delatam e acusam “deveriam ler melhor a Bíblia, onde se condena nomear o nome de Deus em vão”.

Nunca, no entanto, Lula tinha se atrevido a tanto como fez dias atrás em Belo Horizonte, quando disse aos seus seguidores, aludindo sem dúvida aos juízes: “Estão lutando com um ser humano diferente. Eu não sou eu. Sou a encarnação de um pedaço de células de cada um de vocês”. E acrescentou, no melhor estilo evangélico: “Prendam minha carne, mas minhas ideias continuarão livres”. Ao elevar o tom de suas identificações religiosas, Lula, que é o melhor publicitário de si mesmo, chegou a flertar com o dogma cristão da encarnação. De acordo com os Evangelhos, Deus “se encarnou em Jesus Cristo”. Desse modo, todos os que creem nele e o seguem se tornam deuses como ele.

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A mensagem simbólica de reencarnação enviada por Lula aos juízes e magistrados é clara: é inútil tentar condená-lo ou impedi-lo de disputar as eleições para que, como ele propõe, “o Brasil volte a ser o que era” e não o esfarrapado no qual o transformaram aqueles que tentam encurralá-lo. É inútil, porque, segundo Lula, quem estão perseguindo não é ele, que não é uma pessoa normal, mas “um ser humano diferente”, que não tem por que se submeter às leis dos seres comuns. Por isso, diz que não se sente obrigado a acatar nenhuma sentença de condenação contra ele. Se Lula não é Lula, mas a encarnação dos milhões que o seguem, se ele não é feito como todos nós de nossas próprias células, mas das células de cada um dos pobres, dos sem-terra e dos sem-teto, é inútil acusá-lo de algo porque “ele não é ele”. São os pobres que se transubstanciaram em Lula. Persegui-lo, condená-lo, é condenar milhões de pessoas que confiam nele.

Segundo essa imagem bíblica da encarnação, de nada serviu, por exemplo, que Jesus Cristo tenha sido crucificado, porque ele não era mais um profeta, era a encarnação de tudo quilo que as elites desprezavam. Podiam arrancar-lhe a vida, mas não matar sua mensagem. Curiosamente, é o que afirmou Lula em Minas: “Prendam minha carne, mas minhas ideias continuarão livres”.

Não deve ser fácil para os juízes e magistrados a sutil e simbólica linguagem teológica de Lula, aos quais manda dizer, evocando os livros sagrados do cristianismo: “Se me encarcerais, se me fechais as urnas, não o estais fazendo ao Lula político, que já não existe, porque se encarnou nos pobres com quem compartilhou suas células”. Encarcerá-lo, condená-lo ao ostracismo, seria como condenar esses milhões de brasileiros, em sua grande maioria pobres e analfabetos que o seguem e querem votar nele, e nos que ele se encarnou e até mesmo se transubstanciou.

Lula deveria dispensar todos os seus advogados. Ninguém sabe defendê-lo melhor do que ele. E faz isso usando parábolas e símbolos sagrados que tocam a sensibilidade de um povo profundamente religioso como o brasileiro. E isso sem necessidade de recorrer aos livros da jurisprudência humana. Para Lula, para se defender, basta-lhe a Bíblia. Bastará também aos juízes e magistrados?

Colarinho sujo

Como todas as iniciativas demagógicas adotadas para algum fim inconfessável e anunciadas como se tivessem por objetivo o interesse público, que dificilmente será alcançado, a intervenção federal sob chefia militar na segurança pública do Rio é, no popular, meia-boca.

O Estado do Rio de Janeiro está clamando por uma intervenção federal por inteiro há muito tempo, desde, pelo menos, a ampla divulgação da roubalheira superlativa que faz do ex-governador Sérgio Cabral protagonista do maior escândalo de corrupção e má gestão da História. E o atual ocupante do cargo (chamá-lo de governador é uma cínica licenciosidade léxica), Luiz Fernando Pezão, não passa de um capataz com carta branca do antecessor, enquanto este passa uma temporada no inferno prisional. Intervir na segurança e mantê-lo no cargo é um acinte para os fluminenses, que terão de continuar a suportar sua óbvia nulidade, e os brasileiros, que pagam a pesada conta secreta para manter essa fantasia de bloco de sujos.

No editorial Uma intervenção injustificável, publicado sábado, este jornal já fez a pergunta que não quer calar: o que aconteceu nos últimos dias que justificasse a decretação da medida radical antes de ser debatida e votada no Congresso Nacional a reforma da Previdência? Ao que se saiba, nada! A crônica do fiasco anunciado na conquista dos três quintos de votos dos congressistas para aprovar a reforma, sem a qual não há remendo possível para as contas públicas nacionais, é mero pretexto.


Em nome da busca desse ideal, Temer nomeou o mais truculento cabo de esquadra das hostes que herdou, no pra lá de baixo clero do MDB – à época ainda com o pê, não o do início de pudor, mas, sim, o do meio de impunidade –, do colega Eduardo Cunha, hoje habitante do Arquipélago Curitiba, onde se encontra Cabral. Carlos Marun na Secretaria de Governo é o erro de pessoa no lugar errado. Nomeado para seduzir parlamentares resistentes a uma causa improvável, ele só sabe rosnar e morder.

Se seria injusto inculpar só o valentão de circo com porrete à mão pela derrota na votação capital para o equilíbrio das contas públicas, sua instalação no Palácio do Planalto, à direita de “deus-pai todo-poderoso”, é a mais completa tradução da desistência sem honra da votação e do pretexto para evitá-la. Marun é subserviente a Eduardo Cunha a ponto de figurar entre os gatos-pingados que tentaram evitar sua cassação pela Câmara e de ir visitá-lo na cela, com passagem paga pelo contribuinte. E Marun não seria Marun se não tivesse confessado, como o fez há pouco, que a única atitude de que já se arrependeu até hoje na vida foi, sob pressão, devolver essa despesa. Pois, para ele, tudo o que o chefe manda é legítimo.

Resta a segunda questão: por que intervir pela metade, se Pezão já renunciou a governar o Estado? Não é o que ele fez ao se acoitar em seu berço, Piraí, para fugir do caos momesco na capital do Estado, depois de ter anunciado um plano de segurança sem dados, comprometimento de verbas nem metas à vista? A única explicação (usar justificativa seria um engano semântico) é a conveniência para os remanescentes palacianos – Temer, Moreira e Padilha –, que preferiram evitar a investigação do que Rodrigo Janot chamou de “quadrilhão do PMDB” a encará-la.

Eles são do mesmo partido de Geddel, que, ainda que viva aos prantos na Papuda, nunca deu nem indício de origem e destino dos R$ 51 milhões encontrados num apartamento em Salvador usado pelo clã, também formado pelo mano Lúcio, da fiel base de Temer na Câmara, e “mãinha” Marluce, acusada de usar o próprio closet como caverna de Ali Babá. São da patota de Rodrigo (nome pelo qual se identificou Joesley Batista ao entrar no Jaburu para gravar o presidente) Rocha Loures, recordista dos cem metros com mala com R$ 500 mil, sem dono nem fiel depositário. E de Henrique Alves, aquele lá das Dunas.

Convém não omitir Jorge Picciani, chefão na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que conseguiu de Eduardo Cunha a nomeação do filhote Leonardo para a liderança da bancada do então PMDB na Câmara, vendeu o voto dele a Dilma e terminou aderindo ao companheiro de primeira hora, Temer. Por mercê dessa virada dupla, Leonardo Picciani é ministro do Esporte no ano da Copa do Mundo e, ao que indica seu sumiço, deve estar dando expediente na Rússia.

A terceira causa (usar razão seria um escárnio gramatical) da intervenção pela metade é que, despojado do disfarce de presidente reformista em plena Quarta-Feira de Cinzas, o atual chefe-geral da súcia resolveu apelar para o velho refrão da violência como tema de enredo que todos os governos adotam, mas nenhum se arrisca a enfrentar de verdade.

Para isso tomou “na moral” a bandeira de Bolsonaro e apelou para os militares de hábito. Assim foi na Eco-92, nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Mundial da Fifa em 2014 e na Olimpíada de 2016. Sempre no Rio e com idêntico receituário: um acordo com os chefões do tráfico de drogas, que tiraram férias e deixaram a autoridade brincar de ocupação do Haiti nas praias, longe do seu território. Deu certo enquanto duraram os acordos. E agora?

O problema agora é que um objetivo colide com o outro. A violência campeia porque as Polícias Civil e Militar são corrompidas do topo à base, como constatou Torquato Jardim, “escanteado” ministro da Justiça. E isso só é possível porque os gestores públicos fazem vista grossa após serem comprados como o são os subordinados. Como se reprime o crime organizado se se faz isso para impedir que policiais, procuradores e juízes federais da primeira instância tenham mãos livres para combatê-lo? E isso não é só no Executivo. Quem duvida que o Supremo Tribunal Federal julgue (o que já é um absurdo) e até conceda habeas corpus ao criminoso (condenado por corrupção e lavagem de dinheiro) Lula da Silva? E um fato nega outro.

José Nêumanne