domingo, 18 de fevereiro de 2018

Paisagem brasileira

Mucugê (BA)

Pai do Dois Bicos

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Um morcego estonteado pousou certa vez no ninho da coruja, e ali ficaria de dentro se a coruja ao regressar não investisse contra ele.

– Miserável bicho! Pois te atreves a entrar em minha casa, sabendo que odeio a família dos ratos?

– Achas então que sou rato? Não tenho asas e não vôo como tu? Rato, eu? Essa é boa!…

A coruja não sabia discutir e, vencida de tais razões, poupou-lhe a pele.

Dias depois, o finório morcego planta-se no casebre do gato-do-mato. O gato entra, dá com ele e chia de cólera.

– Miserável bicho! Pois te atreves a entrar em minha toca, sabendo que detesto as aves?

– E quem te disse que sou ave? – retruca o cínico – sou muito bom bicho de pêlo, como tu, não vês?

– Mas voas!…

– Voo de mentira, por fingimento…

– Mas tem asas!

– Asas? Que tolice! O que faz a asa são as penas e quem já viu penas em morcego? Sou animal de pelo, dos legítimos, e inimigo das aves como tu. Ave, eu? É boa…

O gato embasbacou, e o morcego conseguiu retirar-se dali são e salvo.
Moral da Estória:
O segredo de certos homens está nesta política do morcego. É vermelho? Tome vermelho. É branco? Viva o branco!
Monteiro Lobato

Barbárie do Rio dá meia-sola no governo Temer

A barbárie do Rio de Janeiro revelou-se muito oportuna para Michel Temer. Potencializada pelo Carnaval, a barbárie estimulou o presidente. Ele andava meio desanimado com a perspectiva de ser empurrado para o rodapé de um noticiário monopolizado pelas eleições. A barbárie deu a Temer uma sensação de utilidade.

A barbárie permitiu que o chefe da nação fizesse rostos graves. Em menos de 24 horas, Temer perfilou-se diante das câmeras três vezes —em solenidade no Planalto, em rede nacional, em visita ao Rio. A barbárie aguçou a inteligência do presidente. As ideias agora brotam-lhe aos pares. Sob atmosfera sombria, vieram à luz duas providências.


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Uma medida é inédita em tempos redemocratizados: o setor de segurança encontra-se sob intervenção federal no Rio. A outra iniciativa é recorrente: vem aí o Ministério Extraordinário da Segurança Pública.

A intervenção no Rio é prima-irmã da operação de garantia da lei e da ordem que transferiu os militares dos quarteis para o sopé das favelas cariocas. Mas a barbárie trouxe o comando unificado do general-interventor Walter Souza Braga Neto.

O novo ministério apenas absorverá pedaços do organograma da velha pasta da Justiça que, aliás, já trazia a Segurança Pública enganchada no nome desde o ano passado. A diferença é que a barbárie exigiu um ministro que lhe dedicasse atenção exclusiva.

A barbárie roçou no nariz de Temer as pesquisas encomendadas pelo PMDB, que guindavam a segurança pública ao topo das inquietações do brasileiro. Súbito, a reforma da Previdência, uma derrota esperando para acontecer na Câmara, foi substituída pela guerra contra a bandidagem, cujo objetivo é a restauração da paz.

Graças à barbárie, Temer se deu conta de que o futuro é um espaço bem mais seguro do que o passado que lhe rendeu duas denúncias criminais e uma equipe ministerial moralmente decomposta. O futuro permite a qualquer governante vender para seus governados mais crédulos uma felicidade jamais vista.

A barbárie mostrou ao presidente que no futuro cabe tudo, pois, sendo futuro, não pode ser apalpado nem conferido. O futuro que inclui um Rio pacificado talvez não chegue nunca. Mas a barbárie já terá sido de imensa serventia para Temer se o crime organizado perceber que pode ser ótimo para os negócios deixar Ipanema em paz durante os dez meses de intervenção federal.

A barbárie revelou ao país que Temer é capaz de quase tudo, menos de informar o montante de dinheiro que a União está disposta a jogar no buraco negro em que se converteu a segurança pública. Sem dinheiro, o discurso do novo Temer é uma espécie de inócuo com mesóclises.

Para sorte de Temer, a barbárie ofusca o senso crítico dos barbarizados. A cegueira coletiva facilita muito as coisas, pois o PMDB sujo de Brasília pode intervir na administração do PMDB mal lavado do Rio como se a facção de Temer não tivesse nada a ver com a quadrilha de Sérgio Cabral.

A barbárie dá ao país a sensação de que Temer está fazendo muito. É como se tudo estivesse em movimento sem que nada precisasse mudar de lugar. Reprovado por 70% dos brasileiros, Temer enxerga na barbárie a renascença de uma reeleição. Talvez não obtenha tudo o que imagina. Mas a barbárie do Rio de Janeiro deu meia-sola no governo de Michel Temer.

Aos poucos, Europa está se cansando do turismo

Uma multidão se aglomera em frente à Fontana di Trevi, em Roma. Chegar perto exige paciência e esforço para romper a barreira formada por turistas. Quando a aproximação é bem-sucedida, fica impossível admirar com calma a beleza de uma das principais atrações da capital italiana.

Situações assim são rotina em várias partes da Europa. E, há alguns anos, vêm começando a incomodar moradores, diante de um processo conhecido como turistificação – o processo de transformação espacial e socioeconômica de regiões em detrimento do interesse turístico.

Moradores veem sua qualidade de vida sendo reduzida ao serem obrigados a conviver com turistas, muitas vezes barulhentos e que não respeitam as regras locais. Em diversas regiões, a turistificação provoca a expulsão de habitantes devido à explosão nos preços dos aluguéis.

Veneza é um dos exemplos mais gritantes. A cidade italiana perdeu praticamente a metade de sua população em apenas 30 anos. Estimativas apontam que, se esse desenvolvimento seguir o ritmo atual, pode ocorrer a "extinção" dos venezianos na cidade.

Não somente moradias foram destinadas ao turismo, mas também muitas lojas locais. A estrutura da cidade sofre ainda com a circulação de cruzeiros na região, que danificam mais as já fragilizadas fundações dos prédios locais, feitas de madeira sobre um terreno pantanoso.

Outras cidades europeias, como Lisboa, Berlim, Madri, Amsterdã e Dubrovnik, sofrem problema semelhante. Na capital da Islândia, Reykjavík, de 122 mil habitantes, os números dão uma dimensão do fenômeno: em 2008, recebeu 450 mil visitantes; uma década depois, a cifra passa de 2,5 milhões.

Em Barcelona e em Palma de Mallorca, o descontentamento levou moradores a protestar em meados do ano passado contra o turismo de massa. Os manifestantes levavam cartazes com os dizeres "o turismo mata" e chegaram a comparar a atividade com o terrorismo.

Em 2017, o turismo internacional movimentou 1,3 bilhão de pessoas pelo mundo, um aumento de 7% em relação ao ano anterior. O maior aumento (8%) foi registrado na Europa, que recebeu 671 milhões de visitas. A Organização Mundial de Turismo (OMT) prevê a continuação deste crescimento, que deve chegar a 1,8 bilhão em 2030.

"O grande desafio neste cenário é garantir um crescimento sustentável, incentivando mudanças no comportamento dos turistas, encorajando práticas sustentável e minimizando qualquer efeito adverso que o desenvolvimento da atividade possa causar nos destinos", afirma Sofía Gutiérrez, do Departamento de Desenvolvimento do Turismo Sustentável da OMT.

Diante dos atuais problemas e da perspectiva de crescimento, algumas cidades europeias procuram caminhos para conter o turismo de massa e, ao mesmo tempo, promover a atividade de uma maneira sustentável.

"As cidades querem o turismo, mas perceberam que há um limite e agora buscam soluções para conduzir a onda de turistas sem acabar com a atividade", acrescenta Frank Herrmann, autor do livro FAIRreisen - Das Handbuch für alle, die umweltbewusst unterwegs sein wollen (Viagem justa – Manual para todos que querem viajar com consciência ambiental, em tradução livre).

Já Amsterdã anunciou, em outubro de 2017, a proibição da abertura de novos estabelecimentos comerciais voltados para turistas no centro da cidade, como lojas de suvenires e restaurantes fast-food. Além disso, já havia banido a circulação de ônibus turísticos e cruzeiros na região central, além de proibir a construção de novos hotéis.

A capital holandesa, assim como Barcelona e Berlim, adotou ainda regras para banir o aluguel temporário de moradias e conter desta maneira a explosão nos valores dos aluguéis. A ascensão de plataformas digitais, como Airbnb, facilitou esse tipo de negócio, tornando essa disponibilização de moradias muito mais lucrativo do que o convencional em cidades com intensa movimentação turística.

Gutiérrez destaca que, com a revolução tecnológica, esses modelos de negócios continuarão se expandindo e, por isso, é necessário que os destinos entendam as realidades deste novo mercado e regulamentem suas operações caso a caso.

Amsterdã está entre os destinos pioneiros que investiram na regulamentação do serviço. A cidade estipulou que proprietários de imóveis podem disponibilizar apartamentos em plataformas digitais, como Airbnb, por apenas 60 dias, e a partir de 2019, somente por 30 dias.

Em Barcelona, o governo congelou a concessão de licenças para novos hotéis e trava uma batalha contra o aluguel ilegal de apartamentos. Em dezembro de 2016, a prefeitura chegou a multar o Airbnb em mais de 600 mil euros por disponibilizar no portal moradias que não estavam legalizadas.

Na capital alemã, uma legislação proíbe desde o ano passado esse tipo de negócio sem a autorização prévia da prefeitura. A proibição, porém, enfrentou resistência do Airbnb e de donos de imóveis que entraram na Justiça contra a medida. Berlim voltou atrás e aprovou nesta semana o aluguel temporário de apartamentos inteiros sem legalização junto à prefeitura por até 60 dias por ano. O aluguel de quartos é permitido sem restrições.

Uma banalização

Imagem relacionadaDia desses li uma notícia sobre o espantoso caso da prisão japonesa na qual, a cada dois dias, um detento é torturado. Fiquei a meditar sobre isso. Afinal, o Japão é um país que nos encanta a todos por seu elevado nível civilizacional. Os carcereiros de suas prisões não são, em absoluto, pessoas desprovidas de educação - e muito pelo contrário.

Em Israel, não faz muito tempo, denunciaram que presos são torturados com golpes na cabeça e colocador a dormir em camas infestadas por insetos. É curioso: trata-se de outro país civilizado, notoriamente religioso. Seus carcereiros não são, evidentemente, bárbaros!

Da Suíça, outra referência mundial em civilidade, saiu um chocante relatório noticiando episódios de tortura praticados por policiais. Chamou-me a atenção o caso de um preso mantido nu e algemado com as mãos nas costas, sofrendo violências por inacreditáveis cinco horas! Isto surpreende, dado que os policiais suíços, cuidadosamente selecionados, são pessoas equilibradas.

Um outro episódio que me chamou a atenção foi o da prisão de Abu Ghraib, no Iraque, palco de repulsivos atos de tortura praticados por militares britânicos e norte-americanos. Afinal, são pessoas que receberam educação e treinamento. Li, pelos jornais, diversas reportagens retratando suas vidas - todas elas absolutamente normais, de "gente como a gente".

No Brasil não é diferente, e toda a população é testemunha disso. Passa-me pela lembrança, agora, o caso das dezenas de presos nus, sentados sobre cimento quente, expostos ao sol, sofrendo queimaduras horríveis - alguns chegaram a ficar com os ossos à mostra. Por que isso? Ao fim do cabo, os responsáveis pela gestão do sistema penitenciário são pessoas educadas, selecionadas segundo critérios bastante rígidos.

O fato, resumindo, é que a tortura faz-se presente em todos os países do mundo - dos mais avançados aos mais atrasados. Por que será? Fico a recordar um conceito elaborado pela filósofa Hannah Arendt, qual o da "banalidade do mal": em resultado da massificação de conceitos, podem surgir comunidades incapazes de fazer julgamentos morais. O mal torna-se, assim, banal. Será que a banalização da tortura teria alguma relação com o fato de tantos defenderem, ainda que de forma velada, que tudo é aceitável contra certo tipo de gente?

Pedro Valls Feu Rosa

Imagem do Dia

Port Alberni (Canadá)

Empulhação

As Forças Armadas, com o Exército à frente, são a organização mais respeitada do Brasil. Dão de 10 a 0 no Supremo Tribunal Federal, no Ministério Público, nos juízes que ganham o “auxílio-moradia”, na mídia e no Congresso Nacional. Ganham de longe de qualquer organização civil ─ sindicatos, empresas estatais ou privadas, confederações disso ou daquilo, clubes de futebol, OABs e similares. É melhor nem falar, então, da Igreja Católica e das CNBBs da vida ─ e muito menos desses lúgubres “movimentos sociais”, entidades de “minorias” e outros parasitas que vivem às custas do Tesouro Nacional. Enfim, as Forças Armadas têm mais prestigio que qualquer outra coisa organizada que exista neste país. Militar não rouba. Militar não falta ao serviço. Militar não é nomeado por político. É exatamente por essas razões ─ por ter nome limpo na praça, e valer mais aos olhos do público do que todos os três poderes juntos ─ que o Exército foi chamado para defender um Rio de Janeiro invadido, tomado e governado na prática por um exército de ocupação de criminosos. Mas é só por isso, e por nada mais: o governo chamou os militares, porque esta é a única maneira de tentar mostrar à população que está “fazendo alguma coisa” contra a derrota humilhante que lhe foi imposta pelos bandidos. O Exército não pode derrotar o crime no Rio de Janeiro. Nenhum exército foi feito para isso, em nenhum lugar do mundo. Pode haver algum alívio durante um certo tempo, mas depois a tropa tem de sair ─ e aí o crime volta a mandar, porque é o crime, e não o governo e sua polícia, quem manda no Rio de Janeiro.


O governo Michel Temer, no caso, é culpado por empulhação ─ mas só por empulhação. Pela situação do crime no Brasil, com seus 60.000 assassinatos por ano, recordes de roubos, estupros e violência em massa, e a entrega da segunda maior cidade do país à bandidagem, as responsabilidades vão muito além. A culpa pelo desastre, na verdade, é conjunta ─ o que não quer dizer, de jeito nenhum, que ela é dos cidadãos. Ela é de todos os que têm algum meio concreto de influir na questão e não fazem o seu dever. Como é possível enfrentar a sério o crime se temos leis, um sistema Judiciário e agentes do Estado que protegem ativamente os criminosos? Afinal, do jeito em que está a ordem pública no Brasil, eles têm praticamente o direito de cometer crimes. A maior parte da mídia mantém uma postura de hostilidade aberta à polícia ─ nada parece excitar tanto o fervor do noticiário do que as denúncias contra a “violência policial”. Obedece, ao mesmo tempo, a mandamentos de simpatia e compreensão perante os criminosos, sempre tratados apenas como “suspeitos”, vítimas da situação “social” e portadores prioritários de direitos. A maior parte dos 800.000 advogados do país é contra qualquer alteração que torne menos escandalosa a proteção e garantias fornecidas ao crime pelas leis atualmente em vigor. Policiais são assassinados em meio à mais completa indiferença ─ policial bom é policial morto, parecem pensar governo, oposição e quem está no meio dos dois. Os bispos, as ONGs, as entidades de defesa dos direitos humanos, as variadas “anistias” internacionais que andam por aí, as classes intelectuais, procuradores, juízes, políticos e mais uma manada de gente boa são terminantemente contra a repressão ao crime. Punição, segundo eles, “não resolve”. Sua proposta é esperarmos até o Brasil atingir o nível educacional, cultural e social da Noruega ─ aí sim, o problema estará resolvido.

A jornalista Dora Kramer, na sua coluna da última edição de VEJA, escreveu o que está para ser dito há muito tempo e ninguém diz: a cidade do Rio de Janeiro vive, hoje em dia, como se estivesse ocupada por uma tropa de invasão nazista. Nem mais nem menos. Um invasor do país tem de ser combatido com guerra, e não com decretos, criação de “ministérios de segurança” e a intervenção de um Exército que é mandado à frente de combate com as mãos amarradas. Não tem estratégia clara. Não tem missão definida. Não tem a proteção da lei. Não tem o direito de usar suas armas dentro da finalidade para a qual elas foram projetadas e construídas. Não tem meios adequados sequer para proteger os seus próprios soldados ─ muito menos, então, para atacar o inimigo. Enquanto for assim, o Rio continuará entregue aos invasores.

Escolas não são vozes indicadas para clamar por justiça e liberdade

O que me faz refletir no momento é a intensa repercussão, na esquerda brasileira, desses dois enredos vencedores. Historicamente, as escolas de samba têm diversas manifestações de crítica social e política. Caprichosos de Pilares, São Clemente, Unidos da Tijuca, Império Serrano e tantas outras enfrentaram a censura e até o boicote, sem grande repercussão. Por que, neste momento, Beija-Flor e Tuiuti viraram ícones da luta política?

A explicação que encontro é que está em falta um canal de expressão da revolta, da justa insatisfação e do desencanto do brasileiro com a situação do País. Por isso estão aceitando inadvertidamente o grito que sai da boca errada. As vencedoras não são as vozes indicadas para clamar por justiça e liberdade, porque ambas são usuárias, na vida interna, de práticas antidemocráticas.


A Beija-Flor fez enredos elogiosos à ditadura no início da década de 1970 e com isso subiu ao Grupo Especial, onde se mantém até hoje. Nos arquivos da ditadura se encontra uma carta dirigida ao general ditador, solicitando ajuda para manter a escola na elite do carnaval, para continuar louvando os feitos da “Revolução”. Chegada a democracia, não se inibiu de cantar em enredo os feitos do então presidente Lula. Há dois anos, louvou a Guiné Equatorial e seu ditador. Para mim, isso tem nome: oportunismo. Quando o samba-enredo nos conclama a “aprender com a Beija-Flor”, eu me pergunto se estou interessada nas lições que ela tem a ensinar.

Quanto ao Paraíso do Tuiuti, sua trajetória é maculada por episódios de truculência e pela adoção de práticas internas alheias à democracia. O grupo que tomou o poder na escola há cerca de 15 anos, após a chegada da escola ao Grupo Especial em 2001, foi o mesmo que, após levar a escola ao Grupo B, tramou a fusão dos grupos A e B para que a escola subisse sem vitória. No carnaval passado, última colocada, não foi rebaixada graças a um acidente que provocou a morte de uma profissional da imprensa, atropelada por um carro alegórico desgovernado do Tuiuti. Com isso, não houve rebaixamento e a escola ficou na elite.

Nos preparativos do carnaval deste ano, acabou com a disputa interna para escolha do samba-enredo, prática que faz parte das tradições e ritos das escolas e suas alas de compositores - e encomendou samba a compositores de reconhecido talento, em um atalho muito desrespeitoso com os poetas da escola. Zumbi, de onde nos assiste, deve estar envergonhado com esse “quilombo da favela”. Tanto quanto a maior parte dos brasileiros, quero justiça e igualdade. Mas, em momentos de polarização, a esquerda deve ficar atenta para não comprar gato por lebre.

O manifesto ausente

Há 120 anos, em 15 de janeiro de 1898, o jornal "Le Temps" publicou uma petição por um novo julgamento do major Ferdinand Esterhazy, o verdadeiro culpado pelo ato de traição atribuído a Alfred Dreyfus. Além de Émile Zola, autor do "Eu acuso", assinavam-na Anatole France, Émile Durkheim, Marcel Proust, Claude Monet e várias outras figuras da vida cultural francesa. Naquele dia, nascia a tradição moderna dos manifestos políticos de intelectuais. A catástrofe humanitária na Venezuela pede, urgentemente, um manifesto de nossos intelectuais de esquerda. Duvido, porém, que eles tenham a clareza moral necessária para escrevê-lo.

A petição de 1898 cumpriu relevante função pública, ao contrário da maioria dos manifestos que vieram depois, quase sempre consagrados a fins tolos, frívolos ou francamente abjetos. Como regra, intelectuais assinam declarações políticas para servir a um partido ou causa sectária --e isso nos melhores casos, ou seja, quando não se trata simplesmente de cimentar lucrativas relações profissionais ou acadêmicas. A constatação aplica-se a intelectuais de esquerda e de direita, mas principalmente aos primeiros, que cultivam mais tenazmente o hábito do abaixo-assinado.

Hoje, porém, devo pedir justamente a eles que façam, uma vez na vida, o que fizeram Zola e cia: escrever para proteger valores preciosos.

The Legitimacy of Maduro

Não conhecemos com precisão a dimensão da tragédia, pois o regime de Maduro proibiu o acesso à Venezuela da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA. Mas o relatório parcial que ela produziu descreve um cenário de desnutrição infantil e carência generalizada de medicamentos básicos. Reportagem do "Washington Post" revela que famílias desesperadas já abandonam seus filhos pequenos em orfanatos.

"As pessoas já não conseguem mais comida. Entregam seus filhos exatamente porque os amam", explicou Magdelis Salazar, assistente social em orfanato de Caracas. Junto com o fluxo de refugiados rumo à Colômbia e ao Brasil, configura-se a paisagem típica de um país em guerra --com a diferença de que não há guerra. Chico, Marilena, Comparato, Dallari, Alencastro, Maria Victoria, Fornazieri, Singer —onde estão vocês?

A aliança entre Caracas e Havana derivou do encontro do desvario ideológico chavista (o projeto da unidade da América Latina contra os EUA) com o cálculo realista castrista (a subvenção da economia cubana pelo petróleo venezuelano). No início de 2012, durante os dois meses de sua agonia em Cuba, Chávez organizou com os Castro a transição do poder para Maduro. O pacto desigual conferiu ao regime castrista o controle sobre os aparatos de segurança do Estado venezuelano, que é exercido por agentes dos órgãos de inteligência cubanos. A goma dos assessores cubanos imobiliza o chavismo crepuscular, prevenindo dissidências e impedindo uma saída negociada. O manifesto ausente faz falta pois Havana guarda a chave de uma solução pacífica para a Venezuela.

Nessas circunstâncias especiais, a palavra dos intelectuais de esquerda pode exercer uma efetiva influência indireta. O persistente silêncio deles serve como cobertura do apoio dos partidos brasileiros simpatizantes do castrismo à ditadura de Maduro. A ruptura do silêncio cúmplice --na hora do êxodo venezuelano e da pré-campanha presidencial no Brasil-- alteraria os termos da equação. O regime castrista precisa da legitimidade oferecida pela esquerda latino-americana. Sob pressão do PT, do PSOL e do PC do B, Havana possivelmente se moveria, reproduzindo o que fez no caso das Farc colombianas.

Nossos intelectuais de esquerda especializaram-se em manifestos partidários ou destinados a causas mesquinhas, como pedir o escalpo de algum articulista inconveniente. Que tal variar, em defesa dos direitos humanos dos venezuelanos comuns? Dessa vez, companheiros, vocês não são irrelevantes.

Demétrio Magnoli