quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Estereótipos e privilégios

Por inércia, a opinião pública vai-se habituando a chamar de “privilégio” a aposentadoria do servidor público, enquanto, de outra parte, dedica o mais reverencial silêncio às dinheiramas que são transmitidas por herança, praticamente livres de impostos, aos descendentes dos milionários. Se os filhos de ricos não são os maiores privilegiados deste país, os mais protegidos pela estrutura que pereniza a desigualdade, quem, então, é o privilegiado? Um professor que leciona e pesquisa por 30 ou 40 anos para depois se aposentar com proventos à altura do salário? O que dizer de quem herda bilhões sem nunca ter trabalhado, pagando uma ninharia de imposto?

Privilégio? Tomemos cuidado com as palavras. Elas são signos ideológicos, ensinava Bakhtin. Todas as palavras. Exemplos não faltam. Quando chamamos de “vândalos”, “baderneiros” ou “criminosos” os mascarados que atiram pedras nas vitrines no calor das manifestações de rua no Brasil, enquanto, de outra parte, chamamos de “jovens rebeldes” os também mascarados que praticam os mesmíssimos atos nos protestos em Caracas, quem fala em nossa fala é a ideologia, e nós não nos damos conta (a ideologia tem disso: ou é inconsciente, ou não é ideologia).

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Cuidado com as palavras. Uma trama de escolhas se esconde sob a superfície do léxico e o falante fala sem saber o que fala. A vida é assim. Há quase um século, o jornalista Walter Lippmann fez o diagnóstico preciso: nós nos comunicamos por estereótipos, que funcionam como rótulos simplificadores, mais ou menos como caricaturas, pelos quais a língua vai definindo as coisas de forma rasa, opaca, chapada e altamente eficiente. Palavras como “folião”, “torcedor”, “evangélico” e “sem-teto” são estereótipos. Servem para resumir os tipos humanos. Ao mesmo tempo, reduzem e apequenam a descrição desses mesmos tipos humanos. Não há como ler o mundo sem a ajuda dos estereótipos, mas, ao mesmo tempo, quem vê o mundo pela lente dos estereótipos, e só por ela, perde de vista as contradições que estão por baixo da superfície, ou seja, perde a visão do todo.

Agora um novo estereótipo vem sendo martelado nos meios de comunicação para enxovalhar o funcionário público. As palavras “privilégio” e “privilegiado” são os alicerces de uma campanha de desmoralização do funcionalismo. A campanha é oficial. Trata-se de uma ação deliberada de ninguém menos que o governo federal. Isso mesmo: os servidores brasileiros são caluniados pelos seus superiores hierárquicos (os governantes). Estamos diante de uma infâmia.

Sabemos todos que reformar a Previdência é uma agenda inadiável e imprescindível. Ninguém de posse da razão deixará de reconhecer essa verdade. O problema está, mais do que nas propostas mal costuradas, na propaganda insidiosa pela qual o governo alega defender a causa da reforma. O discurso oficial – endossado, estimulado, emulado e patrocinado por amplos setores do capital e da sociedade civil – escalou para o papel de vilão os funcionários públicos, que aparecem na foto como os causadores da “conta que não fecha”. Segundo a campanha, é preciso acabar com os “privilégios” que travam o desenvolvimento do Brasil. Não, o governo e seu coro não se estão referindo aos faraós do nosso crony capitalism de abadá, nem às celebridades hiperempreendedoras viciadas nas mamadeiras do BNDES. Para o governo, “privilegiados” são os que fizeram carreira no serviço público e se aposentaram.

Temos, enfim, que o funcionalismo é o novo vilão nacional. Mas que vilão é esse? São brasileiros comuns, que sobrevivem medianamente e um dia acreditaram na promessa do Estado de que, se topassem trabalhar recebendo proventos limitados, sem os altos benefícios e os bônus elevados que podem ser alcançados na iniciativa privada, teriam, no final da vida, uma aposentadoria digna. Agora, o mesmo Estado, que antes pedia renúncias no presente em nome da segurança futura, o mesmo Estado que afirmava, com base na lei, que a aposentadoria um pouco melhor era um direito, passa a estereotipar seus servidores como “privilegiados”.

Isso não está certo. Por mais que existam distorções – algumas aviltantes – nos holerites do funcionalismo, essa generalização não é justa. Em nome do respeito humano e da honestidade intelectual, temos o dever de questionar os bordões dessa campanha. O governo federal, secundado por seus corneteiros, que orientam, reverberam ou multiplicam a campanha, está conseguindo pregar na testa dos servidores o rótulo de sanguessugas, aproveitadores, parasitas; está conseguindo substituir o velho estereótipo do funcionário público, que já era muito ruim – o estereótipo do “barnabé”, do incompetente, do acomodado –, pelo novo estereótipo de chupim endinheirado. Chegamos, com isso, ao arremate caprichoso de um processo industrial de fabricação de estereótipos que consagrou uma certa ideologia – ela mesma um estereótipo obtuso – que só vê o Estado como fator de atraso e só vê virtude no mercado sem lei.

Ninguém aqui vai negar que o serviço público acomoda rapinagens inaceitáveis, como essa gambiarra criptojurídica, mal disfarçada sob a rubrica esperta de “auxílios” (auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio-isso, auxílio-aquilo), cujo propósito é burlar o teto constitucional. Essas distorções têm de acabar, é claro. Mas essa campanha corrosiva não quer acabar com as distorções. O propósito dela é outro: ela quer acabar com a respeitabilidade do servidor público no Brasil. Para quê? Talvez para esconder a real responsabilidade pelo rombo que aí está, responsabilidade que é dos governos e dos legisladores, sempre omissos, e não do funcionalismo.

E o truque está dando certo. Por obra de uma prestidigitação publicitária paga com recursos públicos, os servidores estão levando a culpa e se converteram no objeto do ódio invejoso de uma nação em crise. Onde está o privilégio?

De volta para o futuro

Um estrangeiro que tenha passado a primeira metade do mês de fevereiro no Brasil pode ficar com a impressão de que vivemos no melhor país do mundo. Milhões de pessoas fantasiadas ocuparam as ruas das cidades, em blocos organizados ou informais, demonstrando uma alegria incontida e uma despreocupação contagiante. A mídia, tanto a tradicional quanto a virtual, só teve olhos e espaço para explorar imagens de mulheres seminuas, famosos de ocasião, personalidades do dia. É como se suspendêssemos a vida por um momento.

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Enquanto isso, no Brasil real, as forças políticas, as que verdadeiramente importam, vão se movimentando visando as eleições gerais de outubro. O objetivo principal é perpetuar, a qualquer custo, os privilégios da elite que mantém o país refém de seus interesses desde sempre. Uma elite que usufrui das benesses do poder, pairando olímpica acima de partidos e ideologias, e que agora caça um nome que possa dar continuidade ao projeto de desmontagem do Estado, iniciado pelo presidente não eleito, Michel Temer.

O nome da vez é do apresentador de programas de auditório da Rede Globo de Televisão, Luciano Huck. Jovem e carismático, Huck tem como padrinho o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e como trunfo a superexposição de seu rosto todos os domingos, há 18 anos, em boa parte dos lares brasileiros, principalmente os de classe média baixa. Huck, que já havia renunciado à possibilidade de se candidatar à sucessão de Temer, sinaliza que pode voltar atrás, após seu bom desempenho na última pesquisa de intenções de voto do Datafolha.

Uma coisa é certa. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que aparece liderando todas as simulações das eleições de outubro, dificilmente conseguirá transferir votos para um outro candidato. O personalismo caudilhista de Lula é de tal ordem que sua imagem há muito se descolou do PT e da esquerda. Seus eleitores são seus, não do partido. Ausente do pleito, seu espólio se dispersará. E aqui entra a aposta de Fernando Henrique, a de que Luciano Huck poderia amealhar boa parte dos votos destinados a Lula, pois ambos fascinam o mesmo público.

De qualquer maneira, esse mesmo público é também alvo dos evangélicos. Ano a ano, a bancada no Congresso ligada a igrejas pentecostais e neopentecostais cresce. Em 1998, eram 47 deputados federais, hoje já são 93 deputados federais e três senadores. O objetivo da campanha deste ano é chegar a 150 deputados federais e 15 senadores. A estratégia é lançar apenas um candidato ao Senado por Estado e um ou dois candidatos a deputado federal regionalmente ligados a igrejas evangélicas, e, mais que tudo, conquistar o eleitor do Norte e Nordeste ainda fiel a Lula.

Ou seja, cada vez mais, a aliança com os evangélicos se torna crucial para vencer as eleições presidenciais. Lula só conseguiu ser eleito Presidente da República em 2002, após três derrotas consecutivas, quando se aproximou dos evangélicos. Para agradar aos novos aliados, o PT acabou adotando uma agenda mais conservadora e pontos de discussão antes cruciais de seu programa – como aborto, relações homoafetivas, desarmamento, reforma agrária, entre outros – foram flexibilizados ou simplesmente engavetados.

O nome de Huck parece muito mais viável à elite brasileira que o do seu candidato natural, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, pouco conhecido fora do Estado e destituído de carisma. E o apresentador de televisão poderia sem problema algum associar-se aos evangélicos. Até porque, no país do carnaval, as igrejas pentecostais e neopentecostais, que têm como rebanho preferencial a classe média baixa, adotam com unhas e dentes os mesmos interesses que são da elite...

Senão vejamos: a defesa incondicional do patrimônio privado, seja o do proprietário de centenas de imóveis urbanos, seja do latifundiário; o porte de armas extensivo a todos os cidadãos; a fé cega na iniciativa individual, e, portanto, crença no estado mínimo; o uso da força no estabelecimento da segurança pública – todos esses temas são convergentes entre os que estão no topo da pirâmide social e as lideranças evangélicas. Escola sem partido? Legislação anti-aborto? Esses detalhes não preocupam a elite brasileira, pois ela não usa os sistemas públicos de educação e saúde. E, cá entre nós, ela sempre se manteve acima da lei, porque, ao fim e ao cabo, a elite é a lei...

Gente fora do mapa

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Hong Kong, Fan Ho

Transporte grátis na terra do automóvel?

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Digam agora que os políticos não são mais capazes de grandes reformas! Está lá, preto no branco, na carta que a ministra do Meio Ambiente, Barbara Hendricks, o ministro da Agricultura, Christian Schmidt, e até mesmo o chefe da Chancelaria Federal, Peter Altmeier, enviaram à Comissão Europeia, em Bruxelas: a Alemanha avalia um transporte público gratuito. Ao menos em algumas cidades. E somente se nada mais ajudar, se a qualidade do ar em algumas cidades alemãs simplesmente não quiser melhorar.

Imagine só: simplesmente entrar no ônibus, no bonde ou no metrô sem ter que pagar. Não há dúvida: aí muitos cidadãos deixariam seus carros em casa, e o ar ficaria melhor – ao menos no longo prazo. Onde mais existe algo parecido no mundo? Talvez na Estônia, na Bélgica, aqui e ali na Rússia. Mas na Alemanha, a terra das autobahns e dos carros potentes de luxo? Isso seria de fato uma novidade.

Com razão, a associação das empresas de transporte alertou que o crescimento no número de passageiros seria enorme, e que novos bondes, mais funcionários e talvez também novos trilhos custariam bilhões. O dinheiro seria bancado pelo contribuinte. Os três ministros signatários da carta veem a coisa do mesmo jeito. Eles propõem que os municípios que desejarem acabar com a cobrança sejam apoiados pelo governo. Só para deixar claro de que valores estamos falando: hoje, todas as cidades alemãs juntas faturam 12 bilhões de euros por ano com passagens de transporte público.

O que essa iniciativa surpreendente de Berlim deixa claro é o tamanho do nervosismo nos ministérios responsáveis: ao longo de anos, sobretudo os carros a diesel fizeram com que os limites de emissões de óxidos de nitrogênio nas cidades alemãs fossem ultrapassados sem que houvesse consequências. Em nove dias, o Tribunal Administrativo Federal, em Leipzig, vai decidir se proibições de circulação são legais quando as emissões estiverem muito elevadas. E as chances de que isso aconteça não são ruins.

Só que o governo – tanto o atual, interino, como também o próximo – quer evitar a todo custo as proibições de circulação. E a Comissão Europeia já sinalizou que as medidas até aqui adotadas pelo governo alemão contra a poluição do ar não bastam. Por isso a midiática cúpula do diesel, no ano passado, com a indústria automobilística, as promessas de carros menos poluentes e de melhorias nos carros a diesel.

Claro que as passagens gratuitas em ônibus e bondes não são uma má ideia. E quem mais, além dos alemães, conseguiria pô-las em prática? O sistema de transporte público já é muito bom, sobretudo nas grandes cidades. Mas gratuito? Quanto tempo levaria para os municípios se adequarem à onda de passageiros, vindos de todo o mundo? O ar vai mesmo ficar melhor? E o governo agirá com esse mesmo radicalismo contra os responsáveis, as fabricantes de automóveis e seus sistemas a diesel? Sobre tudo isso ninguém falou.

Antigamente, o grito de guerra da indústria automotiva alemã era "cidadãos livres devem viajar livremente!" Com isso, queria-se dizer que, na Alemanha, não havia limite de velocidade nas autobahns nem de potência para os motores. Liberdade era pisar no acelerador. E agora, quem sabe, o sonho de todos os ambientalistas, ciclistas e pedestres vai se tornar realidade pela porta dos fundos. Porque os políticos, por muito tempo, ignoraram quantos poluentes foram lançados no país do automóvel.
Jens Thurau

Quando você viu pela tv....

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porto alegre, 2016
quando você viu na tv
aquelas pessoas em fila na chuva
à noite numa estrada
na fronteira de um país que não as deseja
e quando você viu as bombas
caírem sobre cidades distantes
com aquelas casas e ruas
tão sujas e tão diferentes
e quando você viu a polícia
na praça do país estrangeiro
partir pra cima de manifestantes
com bombas de gás lacrimogêneo
não pensou duas vezes
nem trocou o canal
e foi pegar comida
na geladeira
não reparou o que vinha
que era só uma questão de tempo
não interpretou como sinal a notícia
não precisou estocar mantimentos
agora a colher cai da boca
e o barulho de bomba é ali fora
e a polícia pra cima dos teus afetos
munida de espadas, sobre cavalos

Angélica Freitas

Não é Lula, é o déficit

Claro que o processo ainda não terminou. Mas está claro também que o maior problema de Lula agora não é saber se terá ou não seu nome na urna, mas se e quando será preso. Ele não foi apenas condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, e por unanimidade. No conjunto, os votos dos três desembargadores do TRF-4 sustentam, com infinidade de argumentos, que houve um grande e organizado esquema para corromper a política, a democracia e a República. E que Lula estava no centro desse esquema.

Consequências: a primeira é que Lula tornou-se ficha suja, inelegível, portanto. A segunda: o ex-presidente tem outros seis processos, todos no mesmo esquema, ao cabo dos quais a condenação é mais do que provável. Por exemplo: se os juízes entenderam que o ex-presidente era dono oculto do apartamento do Guarujá, onde nunca passou um dia sequer, o que dizer do sítio, onde ele e sua família se instalaram e passaram muitos fins de semana e feriados?

Em todos esses outros casos, a julgar pelo teor dos votos de ontem, aparecem os mesmos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

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Claro que o ex-presidente ainda tem recursos nos tribunais. Mas o alcance e o tempo encolheram. No caso concluído ontem, só cabe o tal embargo declaratório, no mesmo tribunal. Trata-se de coisa simples, em que a defesa só pode pedir esclarecimentos sobre a redação da sentença. O julgamento disso é rápido, especialmente considerando o tempo do TRF-4,

Depois disso, o ex-presidente ainda pode ir ao Superior Tribunal de Justiça. Mas encerrado o processo no TRF-4, já pode ser decretada a execução da pena. Ou seja, Lula pode ser preso, em regime fechado.

Ainda há brechas para pedido de habeas corpus e tantos outros esperneios mas, de novo, a chance do ex-presidente é baixa. Mesmo porque, quando estiver batalhando no primeiro processo, nas cortes de Brasília, virão outras condenações em Curitiba e Porto Alegre.

Também é verdade que o PT poderá tentar registrar a candidatura de Lula, mesmo estando ele condenado. Aí, caberia ao Tribunal Eleitoral negar a candidatura, pela lei da ficha limpa. O caso pode chegar ao STF, mas o PT e seus aliados estarão cometendo suicídio eleitoral se insistirem com num candidato tão enrolado na Justiça.

Mais vale ainda para os aliados. Quem vai querer se suicidar junto?

Por outro lado, também está claro que o PT não vai conseguir incendiar o país. O ex-presidente passou por uma condução coercitiva - aliás considerada legal e pertinente no TRF-4 - foi julgado e condenado duas vezes e o que temos? Manifestações limitadas a militantes cada vez mais escassos. Pode haver algum quebra-quebra, mas as ruas não serão ocupadas pelas massas.

Dizem alguns: se Lula for preso, isso dará munição ao PT e à tese da vitimização.

Errado. Mais provável que aconteça a mesma coisa que se viu até aqui: protestos isolados e segue a vida.

Aliás, este é um ponto a favor da estabilidade institucional e política. Trata-se de um líder popular, ex-presidente, mas que, em processo regular da Justiça, foi considerado culpado. Cumpra-se a sentença, e pronto. É a lei, que vale para todos.

Além disso, a economia segue em processo de recuperação, agora apoiada pela expectativa dominante de que Lula não será candidato. Por isso, sobe a Bolsa e caem dólar e juros.

Dizem os petistas: sem o ex-presidente, a eleição é fraude. Ora, nem os candidatos de esquerda deixarão de participar do pleito, mesmo que gritem a favor dessa tese.

E mesmo o pessoal do PT passa a pensar no seu próprio futuro. Há candidatos a governador, senador, deputado - políticos que precisam fazer uma campanha minimamente organizada, para pedir votos a todos os eleitores, não apenas aos militantes. Não vão conseguir isso numa longa briga judicial ou tentando incendiar as urnas.

Tudo considerado, quem sabe agora haja mais espaço para o país se concentrar no seu grande problema. Não é Lula, é o brutal déficit das contas públicas que ameaça soterrar todo o esforço de recuperação.

Paisagem brasileira

João Pessoa (PB)

As balas perdidas encontram crianças aqui no Rio

Há quem diga que o carioca está desligado de seu sofrimento. Não está não. Quem está desligado de nosso sofrimento é o Governo Federal que não assumiu ainda as rédeas desta cidade. O Rio não pode continuar nas mãos deste desgoverno que promete tanto e nada faz.

Sofremos diariamente com notícias terríveis. Estamos perdendo nossas crianças e não me refiro apenas às vítimas fatais de tiroteios entre policiais e bandidos, bandidos e bandidos e policiais e policiais.

Refiro-me também ao desprezo que temos pelo nosso futuro. Como assim? Bem, em minha opinião, ao não demonstrar, com vigor, aos jovens, que não queremos continuar a viver sob o terror em que estamos vivendo. Temos que mostrar-lhes que não estamos nada satisfeitos com essa situação. Temos que lhes fazer ver que eles são o que temos de mais importante e que suas vidas são nosso maior valor.

Neste mês de fevereiro perdemos duas crianças e estamos com outra internada em estado grave, as três vítimas de tiros. A TV noticia as mortes e nos mantém a par do estado do pequenino internado, mas em seguida nos mostra a cidade em pleno batuque, sambando como se não houvesse vítimas a prantear.

Será que estamos com o coração tão leve a ponto de sambar e cantar, livres, leves e soltos?

Sei que muitas pessoas acham que o Carnaval alivia o sofrimento, permite que o povo desabafe. Acham que a festa anima e dá nova vida à cidade. Eu me pergunto o seguinte: não era melhor primeiro retomar o controle de nossa cidade e só então festejar o Carnaval? Ou será que acham que durante o Carnaval os bandidos viram anjos?

O governador Pezão, que foi vice-governador do presidiário Sergio Cabral, não teve tempo para ler o projeto do Governo Federal para a retomada da Segurança Pública aqui em nossa cidade pois tinha uma reunião em Brasília com outros governadores para assuntos de interesse geral do Brasil. Será que eram assuntos mais importantes que a tenebrosa situação do Rio de Janeiro?

O que não adianta é fingir que não estamos em perigo. É perigo e é grave, medonho, pois está roubando nosso maior tesouro, as crianças.

Perdemos, desde 2007, 44 crianças vítimas de tiroteios, segundo a ONG Rio de Paz. Em 2017 foram dez as vítimas. E agora, no início de 2018, já temos três vítimas:

Jeremias, de 13 anos, não estava na escola porque a instituição estava fechada por ordem da polícia. Morreu baleado.

Emiliy, de 3 anos, saía de uma lanchonete acompanhada dos pais. Morreu.

E nós estamos em estado de vigília pedindo a Deus pela recuperação de João Pedro, de 4 anos, que está numa UTI em estado grave. Foi vítima de um tiroteio.

Confesso que já ando com medo de ler os jornais, ou ligar a TV ou o rádio, e ficar sabendo de mais crianças vítimas de tiroteios.

E peço um favor: não digam que o Rio não sofre com essa situação. Sofre, sim. E muito.

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

Nome do problema não é Cristiane nem Segovia

O problema do governo tem nome e sobrenome. Políticos e jornalistas o chamam ora de Cristiane Brasil, ora de Fernando Segovia. Se estivessem certos, a solução seria simples. Bastariam uma esferográfica para a assinatura do presidente e um par de folhas para o ato de nomeação de outra pessoa para o Ministério do Trabalho e para a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal. Mas estão todos enganados.

Chama-se Michel Temer o problema do governo. Chegou ao Planalto como solução constitucional para a autocombustão que consumiu o mandato de Dilma Rousseff. Virou um problema porque, não tendo como elevar sua estatura política às dimensões exigidas pelo momento histórico, optou por rebaixar o pé-direito do Planalto. Revelou-se um pequeno presidente. Bem menor do que seria razoável.


Nesta quarta-feira, que deveria ser de cinzas, a ministra Cármen Lúcia manteve acesa a fogueira que transforma a novela Cristiane Brasil num filme de terror que já dura 44 dias. A magistrada reiterou que cabe ao STF, não ao STJ, a palavra final sobre a moralidade da nomeação de uma ministra do Trabalho com condenações trabalhistas. Mas se absteve de expedir um veredicto.

Se Michel fosse menos Temer, mandaria Roberto Jefferson e sua filha às favas e acomodaria no Ministério do Trabalho alguém com mais biografia do que folha corrida. Mas o subpresidente não tem músculos para desafiar o minúsculo PTB de Jefferson. Ou o partido indica outro nome ou as cenas de terror se prolongarão indefinidamente.

Quanto ao chefão da Polícia Federal, o investigado Temer concorda que ele falou demais. Mas decidiu ser compreensivo. O problema é que o ministro Luís Roberto Barroso avalia que Segóvia precisa de interrogatório, não de compreensão. Relator do processo em que Temer é suspeito de beneficiar uma empresa portuária, Barroso ouvirá Segovia na segunda-feira. Por que insinuou que o processo será arquivado? Por que deixou no ar a hipótese de punir o delagado que investiga o presidente?

Se Temer não fosse tão Temer, José Sarney jamais teria ousado indicar Segovia para o comando da PF. E o denunciado Eliseu Padilha não estaria na Casa Civil, pronto para avalizar um apadrinhado capaz de azeitar a Operação Abafa a Jato. E não haveria na coordenação política do Planalto um Carlos Marun para migrar da condição de ex-chefe da milícia parlamentar do bandido Eduardo Cunha para a de defensor número um do comandante da Polícia Federal.

Temer parece decidido a obrigar os brasileiros a viverem num Brasil alternativo. Um país fictício em que nada de reprovável acontece. Nesta ficção, em nome da continuidade das reformas, ninguém vai reparar que o presidente não está à altura do cargo que ocupa.

O humor das ruas

Não sobrou ninguém em pé. O Brasil da Lava-Jato emergiu nos blocos e nas escolas de samba numa bem-humorada devassa política. O compositor João Roberto Kelly expôs a fadiga com o Judiciário e seu augusto tribunal em marcha nacional: “Alô, alô, Gilmar/ Eu tô em cana, vem me soltar/ Eu roubei, eu roubei, eu roubei/ Não estou preso à toa/ Mas no mundo, não há quem escape/ De uma conversinha boa.”

No Rio, o bloco Imprensa Que Eu Gamo algemou com romantismo: “Quando a gente se encontrar/ Nem Gilmar vai nos soltar.”
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A mineira Orquestra Royal evoluiu na mordacidade das planilhas com nomes e codinomes: “Relaxa o Garotinho/ E solta o Bicudo/ Abraça o Mineirinho/ Com Supremo com tudo/ Cuida da Rosinha/ Adula o Angorá/ Libera o Barata/ E faz acordo com Jucá.”

A banda avançou na temporada eleitoral com “Bolsomico”, a desmemória da ditadura: “É melhor Jair/ Já ir embora/ Sair correndo/ Para a aula de História.”

Em Campinas (SP), os Marcheiros vislumbraram uma feição peculiar no horizonte da corrida presidencial: “Na aristocracia/ Desponta um nariz descomunal/ Com vontade de se enfiar/ No pleito eleitoral.”

Boca Nervosa emoldurava o sorriso na tela do YouTube, enquanto desconstruía outra candidatura (embargada em juízo) em “O homem mais honesto do Brasil”: “Com tanta honestidade/ É a nossa Santidade/ No Vaticano tá rolando um zum-zum-zum/ Ele foi canonizado e será pontificado/ O Papa Luiz 51/ Ei, ei, ei, que beleza/ Ele é mais santo que a Madre Teresa/ Acredite quem quiser/ É mais honesto que Chico Xavier.”

Prefeitos e governadores ascenderam a um grupo especial. Em São Paulo, por exemplo, ouvia-se: “É buraco na rua/ É o mato crescendo/ É um Deus nos acuda/ Quando está chovendo/ O farol não funciona/ A enchente aparece/ Liga 156, e nada acontece/ Enquanto isso, o prefeito gariiii…/ Fala de São Miguel/ E sonha com o (palácio do) Morumbi/ É isso aí!”

Em Belo Horizonte, João Batera e Dimas Lamounier retrataram a desilusão na periferia com gerações de governantes: “Há tempos tô esperando, esperando o metrô/ Eu era criancinha e hoje sou avô/ Tem mais de 30 anos e ainda não chegou/ Cadê a verba, desapareceu/ Será que tá em Brasília, ou o gato comeu.”

A 500 quilômetros, na Costa Atlântica, o Simpatia é Quase Amor insuflava Ipanema: “Ensaio de escola? Ele mela!/ Roda de samba? Atropela!/ Macumba? Não tolera!/ Só gosta de bloco Nutella!/ Ele não cuida? Nem zela!/ Casa de jongo? Cancela!/ Em nome de Deus? Apela!/ Qual o nome do hômi?/ É (…)

Pelos botequins, Luís Filipe Lima e Alfredo Del-Penho puxavam o coro: “Eu trabalho o ano inteiro/ E ainda acendo uma vela/ Só pra poder pagar/ O IPTU pro Crivella.”

À volta, o Barbas ironizava um incerto projeto de poder no “interesse de Deus”: “Ira e soberba, que preguiça de você/ Quanta avareza, solta a verba, quero ver/ Alô, seu prefeito/ Expulsa a gula de poder/ Olha… nosso corpo é luxúria/ Se inveja, se mistura/ E deixa o povo te benzer.”

Nas calçadas, Thiago de Souza e Daniel Battistonni arrematavam: “Marcelinho/ Não fique assim/ Quarta de Cinzas a folia/ Chega ao fim/ Marcelinho/ Não fique p***/ Que até a Páscoa/ Eles voltam para o culto!”

De São Cristóvão à Sapucaí, milhares do Tuiuti suplicavam pelo fim da servidão, decretada há 130 anos: “Meu Deus/ Meu Deus/ Se eu chorar não leve a mal/ Pela luz do candeeiro/ Liberte o cativeiro social”. Dominante, a crítica política aberta, mordaz, atrevida e até herética sugere que no Brasil da Lava-Jato floresce o desencanto, mas se renova a aposta num futuro diferente daquilo que o futuro costuma ser na Quarta-Feira de Cinzas.

José Casado