sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Paisagem brasileira


Paisagem (1962), Daniel Freire 

Brasil, uma história lamentável

Desde 1946, o Brasil teve apenas três transições de poder algo tranquilas: Dutra para Vargas (1951), Juscelino para Jânio (1961) e FHC para Lula (2003). Desde 1980, o Brasil teve três recessões destrutivas, típicas de guerras. A baixa do PIB per capita foi de 12,3% em 1981-83, de 8,6% em 1990-92 e de 9,1% em 2014-2016. No meio do caminho de pedras, houve a hiperinflação e mais que uma década perdida na economia (1982-1992). A caminho, outro desperdício quase tão grande (2014-2023?).

Um presidente que estava para ser deposto se suicidou (Getúlio Vargas, 1954), um renunciou (Jânio Quadros, 1961), outros dois quase não tomaram posse (JK, 1956; João Goulart, 1961). Três presidentes da República de 1946 foram expulsos da política pela ditadura (JK, Jango e Jânio).

Dois presidentes da precarizada democracia de 1988 foram impedidos, Fernando Collor e Dilma Rousseff. Um dos presidentes mais populares da história do país foi condenado à prisão.

A paz de 1995-2012 era pouca e se quebrou. Mais desanimador, se percebe agora, foi um período em que era cevado outro monstro de várias cabeças: a indiferença pelas regras de disputa democrática, a idiotice econômica e a raiva da democracia social.

Houve mais que mensalão e petrolão. Dilma degradou a economia e, enfim, fraudou as contas públicas também para se reeleger (mas também acreditava em seus planos infalíveis ruinosos). Por sua vez, a deposição da presidente era um projeto bem antes de tomar a forma de impeachment.
O candidato do PSDB em 2014, quase eleito, era um elemento que faz molecagem com a ordem institucional (queria impugnar a chapa de Dilma “para encher o saco”) e pede dinheiro a gângsteres, para mencionar apenas fatos recentes da folha corrida de Aécio Neves. O núcleo do presente governo e do governismo terá sido composto de presidiários, vários deles políticos de carreiras infladas sob Dilma, Lula, FHC, Collor e Sarney.

Mesmo quem vive nos polos do conflito político pode compreender o desalento. Deve ser ainda mais o caso de quem vive na linha imaginária do equador da isenção.

A reflexão desesperançada pode caber tanto na cabeça de quem acha que Lula foi perseguido ou justamente condenado; tanto para os adeptos da tese do “golpe” ou para quem “as instituições estão funcionando”. Seja lá qual for o clichê político ou gosto do freguês, há inegáveis problemas de base, mesmo que as interpretações divirjam ao longo do espectro do ódio político brasileiro.

Desde a volta da democracia, houve alguma paz econômica em apenas um terço do tempo. Os tumultos político e econômico se realimentam e, na economia, não raro são causados por algum besteirão programático jeca, ignorante ou reacionário. A instabilidade agrava e prolonga as perdas econômicas, pois não há plano de investimentos ou programa de Estado que resista a tal desordem, que nada tem de revolucionária, mas extrapola o conflito democrático.

Bobagem dizer que “isso não é normal”. É. Raros são os casos de países com estabilidade política e civilidade socioeconômica. Mas mesmo nesta vizinhança ruim da América do Sul há quem pareça progredir. Qual é o nosso problema?

De tombo em tombo

Ninguém consegue ganhar uma guerra acumulando derrotas. O ex-presidente Lula começou a perder a sua guerra quando 500 000 pessoas foram há menos de três anos à Avenida Paulista, em São Paulo, protestar contra a corrupção e dizer claramente, no fim das contas, que estavam cheias dele. Cheias dele e do PT, dos seus amigos ladrões que acabaram confessando crimes de corrupção nunca vistos antes na história deste país e das desgraças que causou — incluindo aí, como apoteose, essa trágica Dilma Rousseff que inventou para sentar (temporariamente, esperava ele) em sua cadeira. Lula, na ocasião, não reagiu. Achou que deveria ser um engano qualquer: como seria possível tanta gente ir à rua contra ele? Preferiu se convencer de que tudo era apenas um ajuntamento de “coxinhas” aproveitando o domingão de sol. Acreditou no Datafolha, cujas pesquisas diziam que não havia quase ninguém na Paulista — parecia haver, nas fotos, mas as fotos provavelmente estavam com algum defeito. Seja como for, não quis enfrentar o problema cara a cara. Preferiu ignorar o que viu, na esperança de que aquele povo todo sumisse sozinho. Enfim: bateu em retirada — e, assim como acontece com as derrotas, também não se pode ganhar guerras fazendo retiradas.


Lula não ganhou mais nada dali para a frente. Foi perdendo uma depois da outra, e recuando a cada derrota. Pior: batia em retirada e achava que estava avançando. Confundiu o que imaginava ser uma “ofensiva política” com o que era apenas a ira do seu próprio discursório. O ex-presidente, então, mobilizava exércitos que não tinha, como o “do Stédile”. Fazia ameaças que não podia cumprir. Contava com multidões a seu favor que não existiam. Imaginava-se capaz de demitir o juiz Sergio Moro ou de deixar o Judiciário inteiro com medo dele, e não tinha meios para fazer nenhuma das duas coisas. Chegou a supor, inclusive, que poderia ser ajudado por artistas mostrando plaquinhas contra o “golpe” no Festival de Cinema de Cannes — ou pela “opinião pública internacional”, o costumeiro rebanho de intelectuais que falam muito em inglês ou francês, mas resolvem tão pouco quanto os que falam em português. O resultado é que o mundo de Lula girava numa direção, e o mundo das coisas concretas girava na direção contrária. Sua comédia só poderia acabar como acabou: com a sua condenação, pela segunda vez, por crime de corrupção, e agora não mais por um juiz só, mas pelos três magistrados do TRF4, de Porto Alegre. Pior, impossível: ele perdeu por 3 a 0.

Derrotas, sobretudo quando não entendidas, em geral têm dentro de si apenas a semente de outras derrotas. Foi assim com o ex-presidente. Depois de derrotado na Avenida Paulista e nas ruas do Brasil inteiro, Lula perdeu o apoio que tinha no Congresso. As gangues de assaltantes do Erário que formavam a sua “base aliada” começaram a largar de Lula em busca de um novo futuro — e ele não conseguiu segurar essa tropa. Tome-se um Geddel Vieira Lima, por exemplo — esse dos 51 milhões de reais enfurnados num apartamento de Salvador e residente na cadeia desde setembro do ano passado. Foi ministro de Lula durante três anos inteiros, depois peixe graúdo no governo Dilma — e mesmo assim o nosso gênio da “engenharia política” não conseguiu segurar o seu apoio. Geddel é apenas o representante clássico de todos; há centenas de outros e de outras. Lula, embora contasse com a máquina do governo Dilma a seu favor, foi perdendo todos — e deixou-se ficar em minoria no Congresso. Perdeu, também, quando foi levado por uma escolta armada para prestar depoimento na polícia. Não se ouviu, na ocasião, um pio em seu favor por parte da massa de brasileiros reais; descobriu, chocado, que podia ser enfiado num camburão de polícia a qualquer momento — e ninguém estava ligando a mínima para isso. Foi derrotado, não muito depois, quando tentou nomear-­se “ministro” de Dilma e arrumar para si o infame “foro privilegiado”, que, na opinião da massa, é apenas um esconderijo de ladrões que querem ficar livres da Justiça. Foi derrotado de novo, logo em seguida, quando ficou claro que o seu lado não tinha força para fazer nem isso.

Lula sofreu mais uma derrota pavorosa, até ali a pior de todas, quando Dilma conseguiu o prodígio de ser deposta da Presidência da República por 367 votos contra 137, na Câmara de Deputados — nada menos que 71,5% dos votos disponíveis, sem falar no seu naufrágio por 61 votos a 20 no Senado Federal, num total de 81 senadores. Para qualquer político, seria um aviso de que o seu lado estava na mais miserável minoria; não tinha força para exigir nada, e muito menos para derrubar no grito o sistema judiciário do Brasil, só porque estava sendo incomodado por um juiz de direito de Curitiba. Para Lula, não houve nada. Como o seu partido, disse que tudo foi um simples “golpe” e que a CUT, a UNE, o MST, os bispos, os sem-teto e os etcs. jamais iriam aceitar isso. Somados, não juntavam três estilingues — mas Lula achou que conseguiriam salvá-lo. Daí para diante foi apenas de mal a pior. Quis enfrentar o juiz Sergio Moro num concurso de popularidade. Perdeu. Quis se safar com truquezinhos de advogado. Não deu certo. Tentou passar recibos falsos. Falhou de novo.

Mais que tudo, Lula nunca percebeu que o Brasil, apesar de todos os seus atrasos, já saiu um pouco do século XIX. Como José Sarney, Renan Calheiros e o restante do Brasil da senzala, não conseguiu entender que existe hoje, na vida real, uma parte do sistema de Justiça que não depende de quem manda no governo, como foi durante séculos. Poder Judiciário, para Lula, é uma força auxiliar dos donos do governo, dos que têm influência e bons “índices de pesquisa”. Estão lá para “acertar”, ajudar e resolver. Tem um juiz atrapalhando? Tira o juiz. É Maranhão puro. No seu caso, quando enfim se deu conta de que não estava funcionando assim, entrou em pane — “espanou”, como se diz, e perdeu de vez o rumo. Ao fim, veio a derrota mais arrasadora, do seu ponto de vista pessoal. Foi condenado como ladrão, e demolido de vez, agora, com o aumento da sua sentença de nove anos e meio para doze anos de cadeia no tribunal que está acima de Moro — com provas que não podem mais ser contestadas. Fim da história — sem contar a batelada de processos penais que ainda tem pela frente.

Lula se vê reduzido, hoje, a contar com gente que queima pneu na rua para fechar o trânsito por umas tantas horas, e diz que isso é um ato de “resistência” política. Põe na praça manifestantes que correm da polícia. Manda milícias sindicalistas proibir que trabalhadores entrem em seus locais de trabalho — frequentemente, acabam apenas levando uns tapas e desistem de seus piquetes. Pode, como sabotagem, organizar greves de funcionários públicos; mas isso só funcionaria se as greves durassem pelo resto da vida. Pode, também, tumultuar as eleições. No mais, sobram-lhe os “intelectuais”, artistas da Globo que assinam manifestos, a classe média urbana que não precisa pegar no pesado e a elite milionária — que tem aí mais uma oportunidade de fingir-se de “esquerda civilizada” sem correr risco nenhum. Não é grande coisa. Não dá para fazer uma revolução bolivariana. Não dá para tomar de volta o Brasil.

Narrativas falsas

O mundo descobriu recentemente o poder e o risco das fake news. Mas no Brasil, há décadas, somos vítimas de narrativas falsas que corrompem nossa maneira de pensar.

Para defender seus gastos, o governo corrompe a aritmética e cria a falsa narrativa da moeda com a inflação, dando-lhe valor menor do que o indicado na cédula.

Bastaria o PIB crescer para todos terem bons empregos e altos salários e o Brasil chegaria ao Primeiro Mundo. O resultado foi o crescimento da riqueza nas mãos dos poucos ricos e a persistência da pobreza na vida da multidão de pobres.

Quando essa narrativa mostrou a cara perversa, optou-se pela falácia de que a transferência de R$ 170 em média por mês seria suficiente para tirar uma família da pobreza. Decretou-se o fim da miséria, independentemente da verdade.

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O impeachment seguiu prescrições constitucionais e as instituições continuam funcionando. O novo presidente foi escolhido vice duas vezes pela presidente impedida. Mas ainda prevalece a falsa narrativa de golpe.

A mesma falácia que impedia ver os problemas já anunciados em 2011 no meu livro “A Economia Está Bem, Mas Não Vai Bem” agora mostra os problemas herdados como sendo criados pelo atual governo.

E esse mesmo governo, imerso na corrupção e desprezando a opinião pública, contribui para fortalecer a falsa narrativa de que ele é o culpado do desastre, mesmo quando a economia mostra recuperação.

Da mesma forma, sustenta-se a falsa narrativa de que a Lava Jato vai salvar o Brasil, esquecendo-se de que juiz pode mandar prender político corrupto, mas não elege político honesto.

Criou-se a narrativa da Lei da Ficha Limpa, de que a política acabou com a corrupção, mesmo deixando soltos e elegíveis políticos e juízes que constroem palácios, com dinheiro roubado de escolas, do saneamento, de teatros e da ciência.

É também falsa a narrativa de que a cassação dos direitos políticos de um corrupto vai educar o eleitor, quando poderá até acomodá-lo. Todos que não forem condenados serão vistos como igualmente bons.

Depois do “rouba, mas faz”, cairemos no “se não rouba, já é bom”, não importando suas prioridades e competência. O Brasil vai continuar igual se não nos educarmos como eleitores.

Quando se discutia a Lei da Ficha Limpa, defendi que o “ficha-suja” deveria poder ir à campanha como os cigarros vão à venda, com o aviso de que “este candidato foi condenado por corrupção e faz mal à saúde nacional”.

A Justiça condenaria, mas caberia ao eleitor cassá-lo nas urnas. Não se tiraria a soberania do povo e certamente educaria melhor o eleitor. Mas não foi assim que a lei foi aprovada, com apoio dos que não aceitaram a sugestão e, hoje, reclamam dela.

A Lei da Ficha Limpa deu à Justiça o poder de condenar e cassar. Vamos ter de conviver com ela, esperando educar o eleitor por outros meios, mas alertando que acreditar plenamente em narrativas falsas não educa.

Cristovam Buarque