quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

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Outras Paisagens Espetaculares 22

Mais reflexão, por favor

Nos jornais dos últimos dias, coincidências inquietantes. Em diferentes colunas e artigos, cresce o desassossego com a voracidade dos frequentadores das redes sociais e a obsessão do “politicamente correto”.

E o que fazer, se parece caminho sem volta? Como recuperar nossa saudável capacidade de reflexão driblando o ímpeto do “tem que ser já”?

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Debates assumem contornos inesperados nas redes sociais. Campanha contra assédio virou guerra entre gerações de mulheres. Ninguém ouve ninguém. Todas e todos devidamente punidos por seguidores esfomeados.

Cada vez menos importa o que você diz, o que interessa é o que seu interlocutor quer ouvir.

Extenuante a avidez nas redes, e quase insuportável a opressão do politicamente correto. Vamos respeitá-los, estão aí, existem, mas seria vantajoso discutir com quem entende e leva o assunto a sério.

O escritor, psicólogo, e educador Ilan Brenman, doutor pela USP, autor de duas dezenas de livros infantis premiados, analisa há muitos anos o “politicamente correto” a partir das histórias contadas para as crianças.Acha que esse politicamente recomendável “não só é incapaz de incutir atitudes nas crianças, como retira dos pequenos as válvulas de escape dos medos e frustrações”.

Na literatura “politicamente correta” o lobo mau não existe mais. O Chapeuzinho Vermelho não foi comido. Muito menos a vovozinha. O Saci Pererê virou afrodescendente. O Negrinho do Pastoreio quase foi banido. É a literatura infantil que não traz conflitos, não trabalha com o imponderável. Sem graça. Sem mistérios. Sem sustos.

Resta saber por quanto tempo ainda teremos liberdade para falar e escrever.

O adulto quer um ambiente controlado, menos trabalhoso, analisa Brenman, e é aí que a literatura “correta” encontra espaço e se distancia da verdadeira literatura. E é no mundo adulto que a patrulha se revela, predatória.

É muito bom que colunistas e jornalistas, especialistas ou não, escrevam muito sobre tudo isso.

Não vamos mudar o rumo da história. As redes sociais continuarão implacáveis e as “minorias” (maiorias, às vezes) não abrirão mão do que pode ser considerado ofensivo. Podemos tentar dar mais qualidade ao que lemos em casa, nos livros e nos computadores. Nós, nossos filhos, nossos netos. Sem opressão. Com mais reflexão, por favor.

Mirian Guaraciaba

Descobrimento

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Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
Oswald de Andrade

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar

O fim do mundo é anunciado desde a era pré-diluviana. Em 1938 Carmem Miranda imortalizou o samba de Assis Valente “O mundo não se acabou”, uma sátira a quem acreditou nessa conversa mole, beijou na boca de quem não devia, pegou na mão de quem não conhecia.

A nova versão do fim do mundo é o julgamento de Lula, visto pelas torcidas organizadas como o dia do juízo final. Para os petistas, a condenação do morubixaba é o próprio apocalipse. Só lhes restaria travar sua Armagedom, com o caudilho encarnando Cristo na batalha final contra os infiéis.

O fundamentalismo não é monopólio do PT. Com sinal trocado o mesmo sentimento se manifesta no outro campo, onde uma hipotética absolvição de Lula é vista como o próprio fim do mundo. Por isso os dois lados estão pondo suas torcidas nas ruas.

Uma anomalia, sem dúvidas. Numa democracia, a Justiça se pronuncia a partir do que está nos autos e não em decorrência da “pressão das massas”. Num impeachment, por ser um julgamento político, é perfeitamente legítima a pressão da sociedade, a favor ou contra. Já num julgamento jurídico, a pressão perde inteiramente o sentido.

Acontece que o mundo não vai acabar, seja qual for o desfecho do julgamento. O Brasil real passa ao largo desse clima. Não há, sequer, aquela curiosidade sobre quem matou Odette Rottman. O país não vai parar em frente à televisão à espera do veredicto do Tribunal Federal da Quarta Região.

Milhões de brasileiros não irão às ruas para comemorar ou protestar sobre o resultado. Suas motivações hoje são outras: a vacina contra a febre amarela, o emprego, a sobrevivência de sua família, o carnaval que bate à porta. As manifestações tendem, portanto, a ficar restritas à militância petista e seus círculos próximos.

O clima do país é de normalidade. Se algo o julgamento de Lula evidencia é a resiliência das instituições brasileiras, apesar de todas as suas mazelas. Eis algo a ser comemorado: o arcabouço institucional consignado na Carta Constitucional de 1988 tem seus freios e contrapesos e tem funcionado satisfatoriamente. Necessita a ser aperfeiçoado? Claro, mas com cuidado para não se jogar fora a criança junto com a água suja da banheira.

Este arcabouço não terá seus alicerces abalados seja qual for o parecer da segunda estância da justiça Federal. Caso confirme-se a condenação de Lula, teoricamente há o risco de o PT querer por o país em chamas, mas se for por aí será o maior prejudicado.

O mundo não vai acabar nem mesmo para Lula e o PT. O caudilho não estará morto politicamente mesmo se sua foto não estiver na urna eletrônica. Tem poder de fogo para transferir uma quantidade suficiente de votos para colocar o seu preposto no segundo turno. Como diziam os filósofos, a vida continua. O PT não adotará uma estratégia kamikaze que inviabilize a reeleição de seus parlamentares e de seus governadores.

O mesmo vale para o outro campo. Reconhecendo que o caudilho é um osso duro de roer mas está longe de ser imbatível. Isso valia para o Lula de 2010, quando tinha força para eleger até uma Dilma Rousseff. Hoje tem um telhado de vidro oceânico.

O julgamento de Lula não é o Dia D de um Brasil de uma economia diversificada, de uma sociedade plural e de instituições sólidas, que nos diferenciam de uma Venezuela da vida.

Como o sol não vai nascer antes da madrugada, os brasileiros podem pular no ensaio do seu bloco carnavalesco. Só não pode transar sem camisinha porque o mundo não vai se acabar.

O 24 de janeiro de Lula

Só quando o dia terminar é que se saberá o resultado do julgamento de Lula no TRF-4. 3 a 0? 2 a 1? Passarão alguns meses para que se chegue ao desfecho de todos os recursos que a lei permite, e aí fica embutida outra pergunta: o retrato de Lula estará na urna eletrônica no dia 7 de outubro?

Hoje fecha-se um ciclo da vida política brasileira, o da ideia de um partido de trabalhadores, que resultou na criação do PT. Fecha-se um ciclo, e começa outro, pois nem Lula nem o PT acabarão.
Exatamente no dia 24 de janeiro de 1979, no Colégio Salesiano da cidade paulista de Lins, um congresso de metalúrgicos aprovou uma tese “chamando todos os trabalhadores brasileiros a se unificarem na construção de seu partido, o Partido dos Trabalhadores”.

Criou-se uma comissão para cuidar do assunto, e nela estava Jacó Bittar, do Sindicato dos Petroleiros de Paulínia.

Lula, a estrela desse renascimento do sindicalismo, explicou a essência da iniciativa: “Pouca gente está mais preparada que a classe trabalhadora para assumir uma responsabilidade política deste nível. Não podemos ficar esperando a democracia das elites. Os trabalhadores não devem confundir o Partido dos Trabalhadores com o PTB, MDB ou Arena.” (A Arena era o partido do regime agonizante, virou PDS, PFL e, mais tarde, DEM.)


No poder, o Partido dos Trabalhadores foi o partido de alguns trabalhadores. A primeira proposta do Congresso de Lins era a “total desvinculação dos órgãos sindicais do aparelho estatal, ponto fundamental para o desenvolvimento da vida sindical”. O imposto sindical, que sustenta cartórios de patrões e empregados, foi preservado nos 14 anos de poder petista. Extinguiu-o a reforma trabalhista de Michel Temer.

Do grupo de Lins, Jacó Bittar, o “Turcão”, elegeu-se prefeito de Campinas em 1988 e dois anos depois deixou o PT. Foi condenado em duas instâncias por atos de improbidade administrativa.

Depois da vitória petista de 2002, Lula colocou Bittar no conselho do fundo de pensão da Petrobras. Dois anos depois, ele ganhou uma Bolsa Ditadura de R$ 7 mil mensais por conta de sua demissão da Petrobras. Seus dois filhos, Fernando e Kalil, associaram-se a Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha, em empresas de entretenimento e tecnologia digital mimadas com contratos de operadoras de telefonia. Nelas, Lulinha teve um rendimento de R$ 5,2 milhões entre 2004 e 2014.

Fernando Bittar é um dos donos da propriedade onde está o sítio Santa Bárbara, em Atibaia. Lá, a Odebrecht gastou R$ 700 mil em obras, e a OAS pagou a cozinha. Nos armários de uma das quatro suítes da casa havia roupas com as iniciais de Lula. Isso e mais uma agenda com seu nome achada numa sala.

Veículos a serviço de Lula estiveram no sítio 270 vezes. Entre 2012 e 2016, sete servidores que trabalham com ele receberam 1.090 diárias por terem ido a Atibaia. Cerca de 50 e-mails de funcionários do sítio e do Instituto Lula relacionam o ex-presidente com a propriedade. Num deles, cuidava-se de identificar o bicho que comera os marrecos do lago. Teria sido uma jaguatirica.

Lula assegura que a propriedade não é dele. Esse sítio nada tem a ver com o apartamento do Guarujá que, segundo Lula, também não é dele. O processo de Atibaia ainda está com o juiz Sergio Moro.

Há dois anos ladrões entraram no sítio, levando vinhos e charutos. Foram presos dois suspeitos, mas a queixa foi retirada.
Elio Gaspari

Paisagem brasileira

Cais do Porto visto Morro da Penha ( Niterói, 1981), Roberto Paragó

Ruínas da política

De novo, Collor e Lula são candidatos à Presidência. Fernando Affonso, 68 anos, confirmou no fim de semana em Arapiraca (AL). Luiz Inácio, 72 anos, será reafirmado pelo Partido dos Trabalhadores, sexta-feira em Porto Alegre. Eram jovens promessas na política quando disputaram, 29 janeiros atrás.

Collor construíra uma história de êxito na oligarquia de Alagoas - um dos estados mais pobres, governado por seu pai 35 anos antes, no rodízio entre senhores de engenho e "coronéis". Trocou o governo estadual pela aventura presidencial e entrou na campanha com um caixa de US$ 12 milhões, coletado entre usineiros de açúcar e álcool, que beneficiara com uma década de isenções fiscais.

Lula era a antítese. Exaltava a biografia na moldura épica do migrante pernambucano que chegou ao Sul e ascendeu à elite urbana paulista, depois de se arriscar na liderança de greves em desafio à ditadura, empresas e à burocracia sindical cevada na tesouraria governamental desde a Era Vargas. Foi o segundo operário e líder sindical a disputar votos pela Presidência, na trilha aberta pelo cortador de mármore carioca Minervino de Oliveira, vereador, ativista negro e comunista no Rio de 1930.

Era a primeira eleição presidencial direta depois de 21 anos de regime militar. Com exuberância nos insultos, Collor e Lula conseguiram ocultar dos eleitores as fragilidades de suas propostas para um país que ingressava na democracia sob grave crise econômica (aluguéis de imóveis aumentavam 866% ao ano).

Ofendiam-se diariamente, na TV e no rádio. Collor caluniava Lula, acusando-o de planejar "luta armada", "banho de sangue" e "guerra civil", sob "inspiração de Hitler e Khomeini". Lula injuriava Collor, xingando-o de "imbecil" nascido em "berço de ouro" de uma família que "mata trabalhador rural". Collor venceu, enquanto ruía o comunismo do Muro de Berlim. Renunciou antes de ser deposto por corrupção, aprisionado na moenda política organizada por Lula e pelo PT. Passados 17 anos, em 2009, desembarcaram do avião presidencial para se abraçar nas ruas de Palmeira dos Índios (AL): "Quero fazer justiça ao Collor" , disse Lula. Comparou-o a Juscelino Kubitschek, cujo governo deflagrou a expansão da indústria de metalurgia na periferia paulistana - onde surgiu o sindicalista Lula.

Collor foi absolvido pelo Supremo em 2014, por falta de provas. Hoje é a vez de Lula num tribunal, em súplica contra a condenação a nove anos e seis meses de prisão por corrupção. Ainda tem outros cinco processos.

Dos quatro presidentes que o Brasil escolheu nas urnas desde a redemocratização, dois acabaram destituídos (Collor e Dilma), um está no banco dos réus (Lula) e o atual (Temer) precisou vencer três votações seguidas (no TSE e na Câmara) para continuar no cargo e sustar seus processos por corrupção até o fim do mandato, em dezembro.

No Supremo estão pendentes 273 inquéritos contra políticos, por corrupção. Como Lula e Collor, todos ascenderam no ocaso da ditadura, dominaram o poder sob a Constituição de 1988, mas naufragaram nas vagas promessas aos eleitores sobre um país com horizonte bonito e tranquilo para as utopias políticas que eles mesmos corromperam.

A Lava-Jato está expondo o retrato desse fracasso de gerações.

José Casado

A Constituição de 1988 e os municípios

Toda a edição de domingo deste O TEMPO, a começar pela coluna de Vittorio Medioli, trata da quebradeira do Estado e dos municípios de Minas (e do Brasil, acrescento), e de como as pessoas reagem à queda de seu padrão de vida. O sofrimento é generalizado – exceto, é claro, para quem não depende do que ganha para sobreviver, isto é, os ricos...

Creio que, na realidade, o problema vem desde a promulgação da Constituição de 1988, e, se só agora se abate generalizadamente, o fato se deve à gigantesca recessão na qual o país mergulhou desde 2014. Na verdade, a União está quebrada, e, como a rede de distribuição de receitas do sistema tributário adotado pela Constituição depende de que a União faça repasses aos Estados e aos municípios, quando aquela retêm o que a esses deve, cá na ponta, no local de moradia das pessoas, é que o drama será verdadeiramente sentido e sofrido.

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Aquele colunista descreve bem como a pobreza generalizada dos brasileiros exerce profunda pressão sobre os cofres públicos municipais: a busca por creches e escolas, o abandono de antigos planos de saúde e, como consequência, as demandas ao SUS, o não pagamento ao funcionalismo público e todo o cortejo de mazelas que acompanha o dia a dia dos pobres. Convivo diariamente com pessoas que dependem do transporte público, de péssima qualidade e alto preço por usuário. Costumo comprar cestas básicas, e aquilo que os governantes não conseguem perceber – do alto de seu trompeteante conjunto de indicadores – fica muito claro: não chega até a dona de casa a redução da inflação porque ela tem que comprar o gás de cozinha (que até parece uma joia brilhando ao lado do fogão, de tão caro que está) e porque o marido dela, quando tem um “pau velho” de um carro todo arrebentado, já não consegue mais colocar gasolina como antigamente. E como levar as crianças à escola se não se conta com transporte escolar, luxo nunca sonhado pelos que dele precisam?... Comprar carne para a casa – depois de anos e anos vivendo em hotel em Brasília – virou para mim um verdadeiro quebra-cabeça. O quilo da que era mais barata virou agora a que todo mundo procura e subiu lá nas alturas, e o que era caríssimo virou o que às vezes sobra para comprar. Fico parecendo barata tonta... e volto no tempo....

Quando fui secretária municipal de Educação, no ano de 1993, em Belo Horizonte, fui convidada pelo secretário de Estado de Educação, Walfrido dos Mares Guia, para uma reunião sobre um assunto muito importante. Tratava-se de “municipalizar” as escolas da rede estadual – todas passariam para o município de Belo Horizonte. Recusei de bate-pronto. Por qual razão? Porque a tal municipalização do Walfrido não vinha acompanhada de adjudicação de professores, o que acarretaria o aumento da folha de profissionais a ser paga pelo município e futuramente pesaria na concessão das aposentadorias.

Olhando pelo retrovisor, vejo que enxerguei na hora o problema. E parece que não foi resolvido ainda pelo número de greves da categoria.

Ô sofrimento antigo!!!

A 'Questão Lula' e seu inevitável fantasma

Pode-se gostar ou não do ex-presidente, mas é inegável que Luiz Inácio Lula da Silva é uma persona política com enorme relevância para a história do país; para o bem ou para o mal; para o bem e para o mal, não importa. Lula e um personagem complexo que comporta características que ao mesmo tempo se negam e se complementam. Como toda grande biografia, possui virtudes e defeitos que despertam sentimentos contraditórios.

Como objeto de análise, é fascinante buscar compreender seu alcance na cultura nacional: exemplo acabado do que Sérgio Buarque de Holanda chamou de ''homem cordial'', é todo emoção: enternecimento e fúria, amor e ódio, sentimentos opostos que também vai despertando em diferentes segmentos da sociedade.

Por carregar uma série de símbolos, torna-se uma grande ambiguidade. No final das contas, será mesmo aquilo que seu interlocutor quiser. Depende, antes, dos sentimentos e valores de quem o olha.


Falar ou escrever a seu respeito desperta paixões, a favor e contra. Patrulhas ideológicas que emergem de suas escuridões a cobrar do analista uma posição: inocente ou culpado; herói ou vilão? Mas, julgá-lo não me compete; esse papel cabe aos juízes. Julgar os juízes, bem, isso fica para os especialistas da área jurídica. E mesmo entre eles há grande discrepância.

Cumpre, porém, compreender seu papel na arena política, sua racionalidade e os efeitos de sua ação. Apenas isso. Assim, o que se pode dizer é que qualquer que seja o resultado do julgamento no TRF de Porto Alegre, depois de amanhã, a centralidade e a tensão do tema ''Lula'' serão permanentes, dali em diante. Mesmo que o Tribunal encerre o assunto jurídico, o assunto político não se encerra.

Absolvido, Lula entrará para o jogo eleitoral com todos os direitos, empunhado o estandarte do injustiçado que exige desculpas; ficha limpa, será um candidato fortíssimo. Todavia, neste caso, a reação de setores sociais urbanos e contrários a ele e ao PT não será calma: haverá tendência ao repúdio e à repulsa ainda maior pelo sistema político e pelas instituições nacionais — ou o que se entender por isso.

Mas, e se Lula for condenado? Dependente do placar. Enquanto puder recorrer, o que é de seu direito, não se entregará; buscará mobilizar o país e o mundo em sua defesa e em seu favor. A questão residirá no maior ou menor sucesso dessa empreitada.

Caso o score dos juízes seja, ao final, de 2 a 1, os recursos se alongarão e, com isso, o ex-presidente, obedecidos os prazos regimentais e as regras atuais — e isto deve ser obedecido, é da democracia e dos direitos de todos de que se trata —, Lula estará no jogo eleitoral para se defender e até para postergar a pena, vencendo a eleição.

Já na hipótese de um 3 a 0, os recursos serão sumários e o deixarão de fora da eleição. Da eleição, mas não do jogo.

Sua bandeira será, então, a vitimização. O PT, naturalmente, buscará transformá-lo num mártir — com exagero, vão compará-lo a Nelson Mandela. Os apelos de seu papel em relação à desigualdade e ao acesso dos mais pobres ao mercado de consumo serão constantes; as elites — com quem se compôs no passado — serão demonizadas. Radicais construirão trincheiras. Uma atmosfera de classes de um bolchevismo tardio. Também é do jogo.

O que deve se considerar é que, mesmo não candidato, a ''Questão Lula'' tem potencial para se tornar a tônica da eleição, em detrimento de outras agendas importantes para o país.

Esta possibilidade é alta e consistente: o noticiário e a militância de esquerda tendem a acompanhá-la com obsessão; seus antagonistas, vigilantes, idem: elevarão a água da fervura. Candidatos do PT em todo país e quem quer que seja o substituto de Lula mais Ciro Gomes, Marina Silva, Guilherme Boulos, artistas e redes sociais… Todos reivindicarão para si a defesa e, claro, o patrimônio eleitoral de Lula.

Ao mesmo tempo, figuras como Michel Temer, Aécio Neves e todos os envolvidos com o foro especial da Lava Jato sentirão maior o calor do inferno que há meses já os cerca. A pressão por suas punições será enorme. Imagens de malas atulhadas de dólares e reais, assessores correndo pelas ruas, delatores de todo tipo… Nada disso será esquecido. Uma pergunta lógica e incômoda ficará no ar, na TV, no rádio, nas ruas: por que apenas Lula?

Nesse cenário, as urnas se fecharão, mas a ferida não. A condenação de Lula, com seu afastamento do processo ou sua prisão, martelará como ferro quente sobre a imagem do próximo presidente da República, toda hora lembrado que venceu porque o adversário não pode concorrer. E ele, vitorioso, não terá como provar o contrário.

Até para quem não gosta de Lula, não haverá felicidade total: sua eliminação ou prisão deixarão marcas em todos, seja como temor, ressentimento ou remorso. Como diz a canção, ''a falsa euforia de um gol anulado''. A ''Questão Lula'' permanecerá como um fantasma; como o armário que, mesmo depois de tanto tempo, ainda abriga as roupas de um casal que morreu de repente.

Carlos Melo