terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Paisagem brasieira

Campos Ayres, Paisagem - ost. - Med. 60 x 86 cm
Paisagem,  Campos Ayres (1881 -1944)

Caixinha, obrigado!

Na minha travessia da infância para a adolescência, internado no Instituto Redentorista Santos Anjos, em Bodocongó, Campina Grande, Paraíba, eu morria de saudade de minha casa paterna, a 360 quilômetros de distância do seminário, em pleno sertão. E, por incrível que pareça, meu lenitivo musical ainda não era Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Jackson do Pandeiro, o bamba do coco, ou ainda Genival Lacerda, seu Vavá, o democrático senador do rojão. Mas, sim, uma canção de domínio público norte-americana que, desafinado como sempre, cantava, fazendo a segunda voz do coro nas festas mundanas do internato. Seu título: Greenfield.

Não: os campos do sertão normalmente eram ressequidos e cinzentos, nada tendo que ver com o verde da nostálgica canção folclórica dos ianques. Mas sempre me bate uma saudade dolente quando a ouço. Não tanto mais agora que os agentes policiais e procuradores federais recorreram ao título para batizar mais uma daquelas equipes de tarefas policiais-judiciais com que se pretende pôr fim ao descalabro da corrupção no serviço público nacional. Informa o novo pai dos inocentes, o Google, que ela foi deflagrada em 5 de setembro de 2016 e investiga um desvio dos fundos de pensão, bancos públicos e estatais, estimado, inicialmente, em pelo menos R$ 8 bilhões. Além da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF), também a integram a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) e a Comissão de Valores Mobiliários(CVM). A Wikipédia dá conta de que dela participam cerca de 560 policiais federais, 12 inspetores e quatro procuradores federais da CVM, oito auditores da Previc e 14 procuradores da República. A denominação, instigante como de hábito, não se refere à canção citada, mas alude a um jargão dos negócios sobre um tipo de investimento que envolve projetos iniciantes, ainda no papel.

Nesta virada de ano, os agentes da lei houveram por bem recomendar ao presidente da República que demitisse os 12 vice-presidentes da Caixa Econômica Federal (CEF), por suspeitas de corrupção na gestão do banco estatal. Por que o presidente foi incomodado para exercer uma providência normalmente adotada pela diretoria? É que, ao contrário do Banco do Brasil (BB), só para dar o exemplo mais simples e à mão, que tem sócios privados, a Caixa, não. Ela é propriedade exclusiva do Tesouro Nacional e ao presidente cabe geri-la em nome dos cidadãos, que representa por delegação dada nas urnas, além de nomear e demitir diretores e membros de seus conselhos.

De início, Temer não pareceu dar ao caso muita atenção. Até que o MPF informou da recomendação ao Banco Central e a instituição federal encarregada de gerir as transações bancárias se associou à recomendação. Diante da resistência de Temer em atender à recomendação, os procuradores terminaram por avisá-lo de que, caso não tomasse a providência, ele poderia ser responsabilizado por eventuais atos ilícitos assinados por algum vice-presidente da Caixa pilhado em flagrante.


O escândalo ganhou tons mais dramáticos quando o noticiário encontrou um caso de suspeição que chamou a atenção do público. A vice-presidente Deusdina dos Reis Pereira foi flagrada insinuando por e-mail a um interlocutor das Centrais Elétricas de Minas Gerais (Cemg) que sua aprovação a um pedido de crédito da estatal dependeria da indicação do nome dela para seu Conselho Administrativo. Aí Temer agiu: o Planalto informou que ele tinha determinado ao presidente da CEF, Gilberto Occhi, que afastasse por 15 dias quatro dos 12 vice-presidentes (!!!), inclusive Deusdina, cujo e-mail pidão circulou por toda parte, País afora.

Na semana passada a Caixa adaptou a própria governança às exigências da Lei das Estatais. Houve, então, choro e ranger de dentes da chamada base do governo, que se sentiu atingida no coração pelas novas exigências para o preenchimento desses cargos de alta direção.

Em entrevista exclusiva, Temer disse aos repórteres Gustavo Uribe e Marcos Augusto Gonçalves, da Folha de S.Paulo : “Esses casos têm de ser avaliados e não estou os incriminando. Acho que, cautelarmente, você os afasta para que depois o Conselho possa examinar. Porque também, se não tiverem culpa, eles podem até retornar a seu cargos. Se tiverem, não retornam.”

O estilo cauteloso, habitual no presidente, não tem força suficiente para apagar evidências chocantes que podem dotar o escândalo da Caixa de dimensões, se não comparáveis com o da Petrobrás, o petrolão, o maior de todos, no mínimo, ao dos Correios, pavio da dinamite que fez explodir o mensalão. Com consequências imprevisíveis. O e-mail de Deusdina não contém um milésimo do teor explosivo da imagem do século em matéria de corrupção no Brasil: a fotografia do dinheiro em espécie em mochilas e malas no apartamento usado pela família Vieira Lima em Salvador. Ora, Geddel, amigo do peito do presidente e presidiário na Papuda, foi vice-presidente da Caixa no governo Dilma Rousseff, do PT, que passeia pelo mundo maldizendo o vice “golpista”, E este era, como chefão do PMDB, o mais alto poder que se alevantava sobre a caixa de Pandora de todas as malandragens da CEF. Com sua insuperável inimizade com a gramática e a lógica, madame age da mesma forma olímpica e insensata como atua no episódio da compra da “ruivinha” da Astra Oil em Pasadena pela Petrobrás.

Mas Temer não tem como fugir da responsabilidade nem em Davos, na Suíça, na reunião do Fórum Econômico Mundial. E, se, realmente, ele pretende, como anunciou a manchete da Folha no sábado, limpar sua imagem suja que nem pau de galinheiro, deveria ler com atenção a entrevista que o criminalista René Ariel Dotti deu a Ricardo Brandt, no Estadão, publicada nesta segunda 22, com chamada na primeira página. Dotti é assistente de acusação do Ministério Público, contratado pela Petrobrás para os processos da Operação Lava Jato. Neles defende os interesses da empresa, que se considera vítima do petrolão, também no julgamento de segundo grau da condenação de Lula em Porto Alegre.

Na entrevista, Dotti defende a necessidade do fim dos “políticos profissionais” em cargos em comissão nas estatais e no governo como forma de combate à corrupção. “Nas mazelas da administração pública em todos os níveis, a generalidade dos ‘cargos em comissão’ é porta aberta para os malsinados cabides de emprego para a prestação de serviços estranhos à função, como é rotineiro em gabinetes de parlamentares”, afirmou o responsável pela segunda sustentação oral no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, na quarta 24.

“O fenômeno tornou-se rotineiro na cultura política de aparelhamento do Estado, onde não há desempregados.” O criminalista acompanha parecer do MPF, pedindo a manutenção da condenação do ex-presidente pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no processo do tríplex do Guarujá. E também aumento de pena, estipulada pelo juiz federal Sergio Moro em 9 anos e 6 meses de prisão. e ainda que os recursos recuperados pela Justiça sejam transferidos para os cofres da Petrobrás – elementos que constam do documento já entregue no processo.

Ao contrário disso, Temer admitiu a possibilidade de partidos continuarem a fazer indicações políticas na Caixa e afirmou que acolheria “sem dúvida nenhuma” caso lhe fosse sugerido um nome que fosse “um Albert Einstein para uma atividade científica”. Trata-se de uma piada de péssimo gosto, que, aliás, marca distância abissal entre ele e Dotti.

Dotti é um herói dos advogados brasileiros na resistência à ditadura militar e teve moral sustentada pela própria biografia para enfrentar os advogados de Lula, entre os quais o ex-presidente da OAB José Roberto Batocchio, quando tentaram apontar contradição, que não havia, entre sua posição na ditadura e sua postura de advogado da Petrobrás na Lava Jato.

Se Temer, de fato, persegue a purgação de sua imagem emporcalhada por ações de seus correligionários e amigos, neste ano em que a Nação elegerá seu substituto, certamente terá de ir além do afastamento temporário dos representantes dos partidos políticos, que são de fato os verdadeiros donos da CEF. Limpeza mesmo, para valer na Caixa, só se ela for extinta ou, no mínimo, privatizada. Caso contrário, sua sina será a de continuar sendo poupança de político de qualquer partido na base do “caixinha, obrigado.”

Ira do PT tem um quê de Lacerda e de quarteis

Marcado para esta quarta-feira, o julgamento de Lula na segunda instância do Judiciário deixou os petistas fora de si. Com isso, foi possível enxergar melhor o que eles têm por dentro. A ebulição que toma conta da alma do PT leva o partido a soar à moda do velho Carlos Lacerda. Pior: a pretexto de defender Lula, o petismo recua aos tempos em que os rumos da política eram ditados pelas vozes dos quarteis.

Os apologistas de Lula sustentam que o Tribunal Regional Federal da 4ª Região não pode condenar Lula por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá. Se condenar, não pode prender. Se quiser prender, “vai ter que matar gente”, chegou a dizer a senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT, ela própria acusada de corrupção no Supremo Tribunal Federal.

O timbre inflamado confunde-se com um fenômeno antigo da história brasileira: a vocação para o desrespeito à legalidade. Por exemplo: na campanha presidencial de 1955, em que saiu vitorioso Juscelino Kubitschek, o rival Carlos Lacerda dizia coisas assim: “O senhor Juscelino não será eleito presidente. Se for, não tomará posse. Se tomar posse, não governará.”



Convencidos de que os magistrados de segundo grau confirmarão a condenação que Sergio Moro pendurou no pescoço de Lula, o PT e seus aliados promovem um cerco ao TRF-4. Tenta-se pressionar os três desembargadores que cuidam do processo para evitar pelo menos uma decisão unânime —algo que abriria brecha para um recurso capaz de retardar a prisão e prolongar a campanha presidencial do réu.

Língua em riste, Lula ataca abertamente o presidente do tribunal sediado em Porto Alegre, o desembargador Carlos Eduardo Thompson Flores. Acusa-o de ser parcial, pois cometeu o atrevimento de elogiar a sentença de Moro.

É como se o réu petista e seus aliados buscassem inspiração no marechal Floriano Peixoto que, em tempos ainda mais remotos, submetido à notícia de que o Supremo Tribunal Federal poderia conceder habeas corpus aos líderes de uma malograda Revolta da Armada, declarou: “E quem dará depois habeas corpus aos ministros do Supremo?”

Na contramão da Polícia Federal, da Receita Federal, do Ministério Público Federal e do juiz da Lava Jato, o PT alega que não há provas de que a cobertura do Guarujá foi presenteada a Lula pela OAS. Mais do que isso: a exemplo do que sucedeu no mensalão, reitera-se que Lula não sabia que as empreiteiras plantavam bananeira dentro dos cofres de estatais como a Petrobras. Na fase mais sangrenta da ditadura militar, o general Emílio Médici também dizia desconhecer a tortura que grassava nos porões do regime.

O TRF-4 pode condenar ou absolver Lula. Seja qual for o veredicto, o fato de um ex-presidente estar sentado no banco dos réus, respondendo a um processo por corrupção, usufruindo de todas as garantias que a lei lhe assegura, desfrutando do sacrossanto direito de defesa, confortado por aliados que exercem livremente o direito à manifestação… tudo isso é muito alvissareiro.

Ao tentar transformar um avanço civilizatório numa hipotética afronta à democracia, o PT recua no tempo para descer ao verbete da enciclopédia na incômoda companhia de líderes políticos desequilibrados e militares abilolados.

Esquerda e direita têm o vírus do pensamento coletivo

Houve um tempo em que também eu debatia política em público. Relembro: um estúdio de TV, alguém de esquerda do outro lado da mesa. O pivô lançava o tema. A pessoa de esquerda corria atrás do osso como um mastim esfomeado.

Quando eu falava, havia um terrível anticlímax. De vez em quando, esforçava-me: dizia algo "de direita", só para não ser despedido na hora. Mas grande parte do tempo ficava contemplando o outro, admirando a sua vitalidade ideológica e o interesse que ele tinha por, sei lá, a política de saneamento básico.

Várias vezes fitava o meu "adversário" (não ria, por favor) e tentava ver se tinha as pupilas dilatadas. "Talvez sejam drogas", pensava, confrontado com aquelas cataratas (verbais). Não eram. Era entusiasmo.

Atenção, atenção: não falo de "entusiasmo" no sentido prosaico da palavra. Um ser humano sem entusiasmos é um cadáver ambulante. Não. Falo no sentido filosófico –aqui, como em quase tudo, David Hume (1711-1776) é o meu mestre. 

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Dizia ele que existem duas espécies de "falsa religião": a superstição e o entusiasmo.

A primeira instala-se na alma amedrontada do crente perante "males infinitos e desconhecidos", que exigem proteções igualmente fantasiosas.

A segunda revela um sentimento de exaltação (ou de "presunção", para usar o termo de Hume) em que o "entusiasta" ignora a razão ou a moral –e se entrega nos braços do orgulho e da ignorância.

É isso que torna o "entusiasmo" tão perigoso: essa combinação de vaidade e ignorância.

O entusiasmo continua na religião, sem dúvida: não conheço nenhum terrorista islamita que não seja um entusiasta. Mas, sobretudo no século 20, esse "estado de espírito" foi cultivado pelas "religiões seculares" de que falava Raymond Aron.

O comunismo e o nazismo foram formas de "entusiasmo" político (que deram no que deram). As batalhas ideológicas de hoje são novas encarnações de entusiasmo.

Pensei em tudo isso quando assistia ao vídeo do momento: a entrevista de Cathy Newman, no Channel 4, ao filósofo "pop star" Jordan Peterson. Conhecia Peterson de outras andanças: o seu "Maps of Meaning", um tratado sobre o lugar dos mitos na história humana, merece leitura.

No vídeo em questão, Peterson sublinha um pormenor importante das discussões contemporâneas: a "política de identidade" é intrinsecamente autoritária porque imita a mesma "estrutura de crença" dos regimes autoritários. Que crença é essa?

A ideia de que o grupo é mais importante do que o indivíduo. Antigamente, esse grupo podia ser "o proletariado", em nome do qual se cometeram os maiores atropelos. Hoje, Peterson dá como exemplo os "ativistas trans" que policiam a linguagem e o comportamento de terceiros porque julgam falar em nome de todos os "trans".

Não é preciso grande preparação filosófica para vislumbrar a falácia da retórica de grupo. Não existe "o proletariado". Existem trabalhadores vários, com aspirações e limitações particulares. De igual forma, não existem "os trans". Existem indivíduos concretos, que vivem a sua sexualidade de forma diversa.

Infelizmente, o prof. Peterson deixou-se contaminar pelo "entusiasmo" da jornalista e esqueceu-se do outro lado da história: a submissão ao pensamento de grupo não é um exclusivo de "esquerdistas radicais".

Basta escutar a "direita radical" e as suas proclamações contra "os estrangeiros" –e em defesa dos "nacionais", claro– para compreender a grande ironia do debate político atual: esquerda e direita estão contaminadas pelo vírus do pensamento de grupo.

Pelo meio, perde-se a importância (e a primazia) do indivíduo –essa ficção pequeno-burguesa, como diziam nazistas ou comunistas, e que as mentes autoritárias sempre tentaram calar ou destruir.

E como se chegou até aqui?

Em artigo recente para o "The Millions", Sarah LaBrie acusa a internet (e as "redes sociais") de produzir as manadas que esmagam a "soberania do ser". É um bom ponto de partida –mas não de chegada: a internet deu voz e potenciou as manadas; mas elas sempre existiram no longo cortejo da história.

Como dizia David Hume, onde existe vaidade e ignorância, existe entusiasmo. E a alma dos homens sempre foi fraca: entre a solidão do individualismo e a pertença aos entusiasmos da tribo, o macaco eterno não hesita.

Gente fora do mapa

Nepal

Os ares de puritanismo

O debate entre mulheres americanas e francesas sobre assédio sexual já deu muito o que falar. Vou me dedicar apenas a uma pontinha dele. É argumento das francesas que estamos ameaçados por um novo puritanismo. Por acaso, estava lendo sobre o tema, a volta do puritanismo, mas vista de um ângulo completamente diferente. Nele, o motor do novo puritanismo não estava precisamente num grupo de atrizes vestidas de preto, mas na própria industria da diversão onde são protagonistas. Esta é uma interessante visão do filósofo inglês John Gray. Ele acha que as guerras envolvendo gente só acontecem nos estados falidos. Em países ricos de alta tecnologia, as guerras são feitas por computadores.

Com essa mudança na guerra, a pressão para manter a coesão social é relaxada, e os pobres podem ser deixados à parte, desde que não representem ameaça. Nesse contexto, há também a mutação na economia. O domínio da agricultura está no fim; o da indústria, nos estertores. Entra em cena a distração. Segundo Gray, o imperativo do capitalismo contemporâneo, nas áreas mais ricas, é manter o tédio à distância. Onde a riqueza é a regra, a maior ameaça é a perda do desejo. Gray vê a economia movida pela manufatura das transgressões e conclui:

— Hoje, as doses de loucura que nos mantêm sadios são fornecidas pelas novas tecnologias. Qualquer um ligado à internet tem uma oferta ilimitada de sexo e violência virtuais. Mas o que acontecerá quando não conseguirmos novos vícios? Como superar o ócio e a saciedade quando sexo, drogas e violência feitas por designers não venderam mais? Nesse ponto, podemos ter certeza, a moralidade voltará à moda. Talvez não estejamos longe de um tempo em que “moralidade” seja vendida como um novo tipo de transgressão.

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Essa conclusão coincide com minha ideia de que o puritanismo só voltará como uma nova moda. As coisas avançaram muito para se pensar em volta ao puritanismo dos tempos da Rainha Vitória. O debate entre francesas e americanas ficaria mais completo se houvesse uma visão da indústria um pouco mais ampla do que a relação homem e mulher no trabalho.

Depois da saída dos manifestos, surgiu uma série de denúncias contra os fotógrafos Mario Testino e Bruce Weber. Nesse caso, as vítimas não são mulheres, mas jovens modelos de moda masculina. Eles precisam parecer atraentes sexualmente. É essencial para a foto funcionar. Há uma energia sensual fluindo do modelo para o artista também como um estímulo à eficácia da imagem produzida. Mario Testino e Bruce Weber podem ter cruzado a linha do respeito mútuo nesse delicado trabalho conjunto. Mas estavam tentando revestir um produto de um apelo sexual — business as usual. Definir os limites nesse caso é um acordo que deve prevalecer numa equipe de trabalho.

Mas o trabalho em si não tem nada de puritano: é movido pelo objetivo de tornar sexualmente atraente a roupa a ser vendida. E apelar para um instinto quase tão forte quanto o da sobrevivência: o acasalamento. De um modo geral, concordo com as francesas no sentido de que há que se pegar mais leve. Um homem de 95 anos foi denunciado porque tirou a roupa e pediu um sexo oral, talvez à enfermeira. É uma dessas situações patéticas que nos levam mais a refletir sobre a velhice do que propriamente sobre assédio.

Em termos literários, Gabriel García Márquez o fez em “Memoria de mis putas tristes”. Um jornalista, aos 90 anos, decide se dar como aniversário uma noite de amor com garota de 14 anos. Ao vê-la adormecida se apaixona por ela, não a molesta, mas apenas vela o seu sono. Mas entrar nessa história vai me levar muito longe da questão da moralidade e da transgressão.

Esse tema me interessou basicamente na tentativa de entender algo bastante singular. É uma questão política, brasileira: a atração dos jovens pela candidatura Bolsonaro. Num país dominado durante anos pela esquerda, com seu universo político desmoralizado, a moralidade pode ser vivida também como uma transgressão. Não tenho explicação conclusiva, mas achei apenas que, nesse universo singular, que não é o mesmo descrito por John Gray, pode ser de uma certa valia. Caso tenha alguma base na realidade, talvez nos ajude a entender o que se passa com parte da juventude e sua atração pela direita. Desqualificá-la aumenta a crença de que são incompreendidos e atacados pelo sistema.

Se esse roteiro estiver correto, o primeiro passo para discutir com ela é ter uma posição clara sobre a Lava-Jato. Enquanto o mundo político se comportar como cúmplice de quadrilhas, a juventude vai passar ao longe. Ao lado da desgastada utopia da esquerda surgirá também a nostalgia dos velhos tempos. Eles não voltam mais, assim como nunca chegarão aos amanhãs que cantam do discurso socialista. O desafio é achar uma saída que contemple a luta contra a corrupção e encare de frente um mundo complicado demais para nostalgias de esquerda ou direita.

Por que seria melhor para a direita se Lula fosse absolvido

Quando a direita envolvida na corrupção afirma, como acaba de fazer o presidente Temer, que “é melhor derrotar Lula nas urnas que transformá-lo em vítima”, o que talvez esteja querendo dizer é que, no momento atual, seria preferível para seu Governo que Lula ganhasse as eleições. Essa direita sabe que, em vista da rejeição da sociedade à corrupção, será difícil eleger um candidato que tenha apoiado o Governo Temer.

Poderia parecer estranho, mas se Lula fora condenado e obrigado a sair da cena política, a maior orfandade poderia ser da direita. Foi, de fato, nos Governos de Lula e Dilma Rousseff que a direita adquiriu maior peso político. Os principais ministros e assessores de Temer já o tinham sido nos quatro mandatos da esquerda. Foi com o PT no Governo que a direita estendeu seus tentáculos em todos os órgãos do poder que hoje mantém.

Se Lula for impedido de disputar a presidência, é possível que cresça um candidato progressista disposto a continuar combatendo a corrupção. Por que essa direita temeria mais, por exemplo, a ecologista Marina Silva ou o ultradireitista Jair Bolsonaro do que Lula? Ou um Joaquim Barbosa, um Ciro Gomes e até um Luciano Huck? Porque esses políticos alternativos a Lula não parecem dispostos a acabar com a Lava Jato. Bolsonaro já anunciou que, se ganhar, designará o juiz Sérgio Moro para o Supremo.


A direita que teme uma candidatura progressista que não seja a de Lula sabe que, se ele voltasse ao poder, a luta contra os políticos corruptos seria abordada de maneira mais benigna do que faria um candidato com ficha limpa nos tribunais. Uma nova presidência de Lula poderia se tornar um salva-vidas para muitos políticos da direita incriminados pela Justiça que sonham com uma anistia geral. Ao mesmo tempo, essa direita sabe que Lula voltaria a governar com ela mais à vontade do que com qualquer outro de esquerda, já que ele é visto mais como pragmático que como esquerdista. Se Lula ganhasse outra vez certamente repetiria o pacto com o mercado, o empresariado e os bancos, e colocaria, de novo, um liberal como o atual ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, à frente da economia e do Banco Central. Já tentou fazê-lo com Dilma, mas ela recusou.

Lula é um candidato que nunca infundiu medo na direita enquanto esteve no poder. Quando disputou as eleições em 1989 e perdeu para Fernando Collor de Mello, confessou que tinha sido melhor para o país já que “ainda não estava preparado para governar por ser muito radical”. Foi José Dirceu, o dirigente do PT posteriormente condenado à prisão, que “pôs a gravata em Lula”, como escreveu este jornal na época. Dirceu o fez cortar a barba de sindicalista, vestir-se com elegância e reconciliar-se com os valores neoliberais da economia. E ganhou duas eleições.

Fernando Haddad, um intelectual do PT especialista em marxismo, considerado o estepe de Lula, recomendou a ele que, desta vez, leve o PT mais para a esquerda. Lula sabe, porém, que se voltar ao poder não poderá governar sem o apoio da direita. O que deve ter agradado a Lula foi o golpe publicitário de Haddad, que o batizou de “viagra dos brasileiros”. Pediu que, no Brasil, essa pílula “tenha a cor vermelha de Lula”, o único político, segundo ele, capaz de “devolver o tesão” aos brasileiros. A mensagem subliminar de Haddad é clara: desde que Lula saiu, os brasileiros ficaram impotentes para seguir adiante, teriam perdido seu fogo, algo que só o ex-sindicalista saberia devolver.

Essa direita, órfã de candidatos, cujo sonho é apagar o incêndio da Lava Jato para poder sobreviver tranquila, sabe que Lula, maleável por temperamento, seria mais compreensivo nos labirintos e negociatas da velha política que qualquer outro presidente da esquerda e até do centro. Poderia parecer um paradoxo, mas essa direita, com medo de acabar na prisão, na qual figura meio Congresso, não choraria se Lula fosse absolvido nesta quarta-feira e pudesse disputar as eleições. E, melhor ainda, se ganhasse.

Lula, Merkel e a fixação por líderes políticos

Faltam um dia para o julgamento do Tribunal Regional Federal (TRF) em Porto Alegre do processo contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E o debate em torno dele me faz refletir sobre uma questão: de onde vem a fixação sobre a figura do presidente? Será que a ansiedade por uma liderança política – seja presidente, primeiro-ministro ou chanceler – deve determinar tudo?

Curiosamente, na Alemanha existe a mesma concentração em volta da nossa chanceler Angela Merkel. Ela governa desde novembro de 2005. No parlamentarismo, essa repetição do mandato por 12 anos é possível, pois o chefe de governo é eleito pela maioria no Parlamento, e não pelo voto direto. Merkel e o partido dela, a União Democrata Cristã (CDU), já governaram com apoio de vários partidos.

Desde as eleições, em setembro de 2017, aqui na Alemanha, toda a atenção gira em torno da questão se Angela Merkel vai continuar chanceler ou não. A primeira tentativa de formar um governo com os liberais e os verdes não deu certo. Agora ela está negociando com os social-democratas, partido com quem governou nos últimos quatro anos. Parece contraditório, mas é democrático: na hora de formar um novo governo a aparentemente poderosa chanceler Angela Merkel depende dos deputados.

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O Congresso brasileiro parece ser igualmente poderoso. Já mostrou que pode derrubar presidentes e inviabilizar qualquer ação governamental. Desde o fim da ditadura militar, em 1985, e das primeiras eleições livres, em 1989, já afastou dois presidentes através do penoso procedimento de impeachment: Fernando Collor de Mello (1992) e Dilma Rousseff (2016).

Na sombra dos aparentemente todo-poderosos líderes políticos, os parlamentares na Alemanha e no Brasil parecem gozar de uma vida boa. Enquanto a mídia segue os passos dos possíveis chefes de governo, eles fazem ou não o trabalho deles sem serem cobrados da mesma maneira.

Na Alemanha, as eleições legislativas já foram. No Brasil, os eleitores ainda têm a chance de acompanhar e escolher os candidatos para o Congresso. Ainda dá para verificar se os candidatos têm ficha limpa ou não, se tem convicções políticas ou não.

O presidente do Brasil precisa do Congresso para governar. Sem uma maioria estável, nenhuma lei que o Executivo encaminhar vai ser aprovada. Sem deputados com ficha limpa, que estão mais preocupados em se reeleger para não perder o foro privilegiado do que em legislar projetos sociais, o Brasil não vai ter um projeto nacional.

Seja presidencialismo brasileiro ou parlamentarismo alemão: a fixação e a ansiedade por uma liderança política que chega para desfazer o nó e resolver os problemas políticos, como um salvador da pátria, não é nada mais do que uma ilusão.

Astrid Prange de Oliveira

Imagem do Dia

Comida de cachorro

Ninguém conta tão bem a história íntima do PT como o próprio PT — e ninguém, como ele mesmo, mostra com tanta clareza como são as coisas na sua vida real. Nesta reta final do julgamento do Tribunal Regional Federal-4, de Porto Alegre, que vai confirmar ou não a sentença de nove anos e meio de cadeia que o ex-presidente Lula recebeu por corrupção, o partido todo entra numa espécie de apoteose na exibição do que tem de pior. Seu tema, agora, é a Venezuela. Depois de romper com o sistema democrático em vigor no Brasil, ao propor abertamente o combate a qualquer sentença contrária à Lula, o PT decidiu dobrar a meta, como faria a ex-presidente Dilma Rousseff. Resolveu ir à Venezuela para denunciar o processo “político” contra Lula, e a “utilização” da Justiça para dar mais um “golpe” e impedi-lo de “concorrer às eleições”. Isso mesmo: foram reclamar justiça na Venezuela, a estrela-guia infalível da esquerda brasileira de hoje. Como poderiam ter escolhido melhor?

A Venezuela, como demonstram os fatos a cada dia, é justamente o país latino-americano que eliminou o seu próprio sistema judiciário — só Cuba pode comparar-se a ela neste quesito atualmente. Não há mais juízes. Há apenas funcionários do governo encarregados de executar as ordens que vêm de cima. Há prisões diárias de manifestantes da oposição. Há tortura contra presos políticos. Como ir falar de “justiça” numa tirania bananeira como essa? Na prefeitura de Caracas, a capital, o governo sempre perdia as eleições. Solução: eliminaram a Prefeitura de Caracas, com a explicação de que ela não era mais necessária. A oposição tem maioria no Congresso? Nenhum problema: o governo nomeou um outro Congresso e decretou que é esse o que vale. Não há outro país no continente em que a repressão policial nas ruas seja tão selvagem — ainda no Natal, uma mulher grávida foi assassinada a tiros por um guarda na fila onde deveria receber a esmola de fim de ano do governo — um pernil. A grande ideia do governo de extrema-esquerda da Venezuela é eliminar as forças armadas e colocar em seu lugar uma milícia de 500.000 homens armados, que funcionarão como uma guarda particular dos donos do governo.

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É esse o país que Lula e o PT elegeram como o modelo para o Brasil. Já foi o tempo em que tentavam fugir da questão, dizendo que “cada país escolhe o seu caminho” e outras bobagens do mesmo tipo. Hoje deixam absolutamente claro, sem disfarce algum, que o regime da Venezuela é o que querem para o Brasil — e que o seu único “projeto político” é chegar lá, com Lula no papel de “comandante supremo”. O ex-presidente já disse que o único problema da Venezuela é ter “democracia demais”. Ainda há pouco a presidente do PT manifestou seu apoio integral às últimas medidas totalitárias do governo para criar um tipo de eleição em que eles ganharão sempre. Mais recentemente, um deputado do partido (o mesmo que deu “voz de prisão” à uma mulher que o criticava num corredor do Congresso) esteve em Caracas para se queixar, em portunhol extremo, que a Justiça brasileira persegue Lula — e para louvar a sorte dos venezuelanos, que, segundo o PT, vivem num país de judiciário independente, sob o império da lei e com a proteção de todos os direitos. Aproveitou para explicar as presentes calamidades que o governo criou na Venezuela (já tem gente comendo comida de cachorro, na penúria geral de alimentos), como resultado da “guerra econômica” que “a burguesia” move contra o povo.

Lula, se condenado, será um mártir para o PT. Só mesmo na Venezuela a Justiça seria capaz de lhe fazer justiça.

Laranjas em cana vendem abacaxis a preço de banana

A sucessão presidencial embananou e está difícil saber quem poderá descascar abacaxis sem usar laranjas. E surgiu uma pergunta importante: candidato em cana pode concorrer?

Não é de hoje que a agricultura e a pecuária fornecem metáforas e inusitadas comparações para entendermos nosso País, onde, para a surpresa dos novos ocupantes da Terra de Vera Cruz, sobretudo portugueses, a banana era nativa e dava em todos os lugares, desde o quintal da casa até em espigões e em imensos banhadais.
Alguns casos com frutas tornaram-se célebres. Um dos primeiros foi o de Pedro de Rates Henequim, que viveu entre os séculos XVII e XVIII. Ele proclamou ter sido a banana, e não a maçã, a uva ou o figo, o fruto do pecado original no Éden. Sua nova teologia não pegou. Interpretações lendárias já tinham inventado a expressão pomo de Adão para identificar a maçã na garganta masculina como prova de que o primeiro homem, se comeu a fruta, não engoliu o caroço.

O figo e a uva entraram por razões simples: sendo de pouca ou nenhuma leitura, muitos dos primeiros cristãos aprendiam mais com as pinturas do que com as letras, e os artistas cobriam a nudez de Adão e Eva, ora com folhas de parreira, ora com folhas de figueira.

Além do mais, travavam-se discussões interessantíssimas. Até mesmo os umbigos de Adão e Eva eram objeto de controvérsia, pois afinal tinham sido feitos de barro e não houvera gestação. Se não “p”, então não “q”, ensinava a lógica. Não tendo sido gerados, não deveriam ter umbigo. Que tremendos críticos de arte avant la lettre! À semelhança do sapateiro de Apeles, iam muito além das sandálias da pintura.

O abacaxi ─ frequentemente confundido com o ananás ─ já estava há muito tempo no palavreado nacional quando entrou a laranja, que de repente mudou de significado.

Sabemos muito mais acerca dos novos laranjas graças às descobertas da Polícia Federal e do Ministério Público, mais especificamente da operação Lava a Jato, expressão que deveria ter hífen, mas nosso bagunçado Acordo Ortográfico terceirizou também a língua portuguesa.

Parentes de todos os graus, cunhados, mulheres, ex-mulheres, caseiros, faxineiras e pessoas jurídicas como gráficas, oficinas, borracharias, farmácias e outras empresas, muitas delas inexistentes, compuseram o novo e imenso laranjal.

Só mesmo depois de entrar em cana (esta até deu nome a um ciclo econômico, o da cana de açúcar) é que laranjas, tendo que descascar abacaxis, delataram os bananas que não queriam assumir.

Todos estes temas estão diariamente na mídia de vários formatos, do impresso ao eletrônico, passando, naturalmente, pelo áudio e pela imagem, pois o Brasil mais vê e ouve do que lê e pensa.

Há laranjas e bananas em profusão no Brasil atual. E poucos em cana, uma vez que a Justiça demora a descascar tantos abacaxis e identificar os nomes daqueles por quem dobram os laranjas.

Deonísio da Silva

O país do desperdício

O Brasil é um país abençoado pela natureza. É situado no interior de uma placa tectônica, sem a ameaça constante de terremotos, não sujeito a temperaturas extremamente baixas nem a tornados, fatores estes que obrigam muitos países a gastos significativos de reconstrução e de recuperação da população ferida, sem contar as irreparáveis mortes ocasionadas.

No entanto, o Brasil menospreza essa benção. Chuvas mais persistentes e ventanias fortes, que seriam consideradas brisas para os habitantes do corredor de tufões do Caribe, impõem também custos significativos ao país, devido ao desleixo dos políticos e agentes públicos. Desleixo traduzido na falta de dragagem das calhas dos rios conhecidamente problemáticos, na deficiente drenagem das vias pluviais das cidades, na ausência de manutenção das encostas, bem como no estelionato eleitoral perpetrado por aqueles que viabilizam a moradia da parcela mais indefesa da população em áreas de risco. Político brasileiro enjeita as palavras “manutenção” e “prevenção”, preferindo “inauguração” com solenidades, placas de bronze e propaganda eleitoral.

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Todos os anos ocorrem catástrofes evitáveis, com danos materiais, desalojados, mortos e feridos, um sofrimento imposto principalmente à população mais vulnerável do país. Recursos antes destinados à melhoria efetiva das condições de vida da população acabam sendo realocados na reconstrução de imóveis e equipamentos públicos destruídos, na realocação de desalojados, em atendimentos médicos e psicológicos.

Em muitos casos, tais recursos são tragados pela corrupção. As unidades de atendimento não estão preparadas para esse afluxo anormal. Absenteísmo ao trabalho e à escola, atrasos, desatenção nas atividades laborais e de estudo, tudo desemboca no desperdício de recursos físicos e de potencial humano, tão importantes num país que pretende se desenvolver ou, pelo menos, sair da armadilha da renda média na qual nos encontramos. Tal situação piora ainda mais a disparidade de renda e de oportunidades.

Ao invés de revolta, percebem-se o desalento e a resignação da maioria da população afetada, através das entrevistas da mídia que cobre os desastres. Trata-se de um problema cultural. Um pouco indignação já seria positivo. Por outro lado, não há punição dos responsáveis, parte devido ao nosso sistema jurídico, parte pela cultura do “mais ou menos”, do “deixa disso” e pela “síndrome da compadecida”. Raros são os políticos que vêm em defesa dos prejudicados, contra os desmandos de seus colegas desonestos.

O custo total dessa nossa incompetência para o país é significativamente superior ao das obras de manutenção, prevenção, fiscalização e de conscientização da população carente sobre seu direito a ações construtivas e competentes do poder público. Se nada mudar, seremos sempre o país do desperdício, que carrega água em cestos.

Fernando Cariola Travassos