quinta-feira, 24 de maio de 2018

O mundo precisa de adultos responsáveis, não de otimismo infantilizado

São Paulo, a maior cidade do Brasil, pode enfrentar mais uma vez uma crise da água em ano eleitoral. E não em qualquer eleição, mas nesta que se anuncia como uma das mais duras e truculentas da história recente, agravada ainda pelas “fake news”. Na primeira crise da água, em 2014, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) reelegeu-se no primeiro turno afirmando que estava “tudo sob controle”. Apesar das evidências cotidianas de que algo muito grave estava acontecendo, a maioria da população de São Paulo preferiu acreditar que tudo ia ficar bem e a vida poderia ser retomada sem maiores alterações. A descoberta mais importante revelada pela crise foi o nível de desconexão com a realidade a que as pessoas podem chegar para não serem obrigadas a enfrentar as dificuldades, fazer mudanças permanentes na vida e pressionar os governantes e legisladores por políticas públicas. E como estão dispostas a acreditar em qualquer um que pronuncie a expressão “sob controle”. O problema é que qualquer pessoa que diga, em tempos de mudança climática, que algo está “sob controle” ou é mentiroso ou é maluco. Mas de novo estamos voltando a esse tipo de irresponsabilidade alimentada pela incapacidade de se responsabilizar de adultos infantilizados que preferem acreditar em qualquer estupidez a ter que enfrentar o mal-estar que sentem nos ossos.

No evento que marcou os 15 anos do Fórum Pacto Global, da Rede Brasil das Nações Unidas, em 16 de maio, Vicente Andreu, ex-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), fez uma intervenção contundente no palco do auditório do Museu de Arte de São Paulo (MASP): “Não é justo vir a um evento desses e não falar o que (a pessoa) realmente sente. A água no Brasil é uma agenda política rebaixada. O tema da água só aparece na eleição como tragédia e denúncia, sem propostas”, afirmou.


As séries históricas, algo tão mencionado na crise de 2014, já não fazem sentido num planeta alterado pela mudança climática. “As nossas séries históricas, aquele mecanismo que a gente sempre utilizou, de olhar pra trás para projetar o futuro, acabou. Não tem mais condições de se fazer absolutamente nada com as séries brasileiras. Eu sou estatístico de formação... Quem tentar fazer alguma correlação com as séries históricas nos últimos dez anos no Brasil aqui no Cantareira (principal sistema de abastecimento de água de São Paulo) matematicamente faz, mas pra que serve?”, questionou Andreu, um dos principais articuladores do Fórum Mundial da Água, que se realizou pela primeira vez no Brasil em março. “A variabilidade do período do ciclo hidrológico em função das mudanças climáticas está completamente alterada no Brasil e no mundo. E ainda se tenta explicar o amanhã por uma média.... Fica mais ou menos assim: não tá na média nunca. Aí, no ano que dá na média, alguém corre lá e diz: ‘Ó, voltou ao normal, voltou pra média’. Mas a normalidade agora é a exceção.”

Segundo Vicente Andreu, existe a possibilidade de uma crise da água em São Paulo ainda pior do que a de 2014. Ele afirma também que, apesar de o Cantareira ter deixado de abastecer 1,6 milhão de pessoas, o consumo seria hoje de 300 litros por habitante ao dia, o mesmo que antes da crise. “O gráfico de abril no Cantareira bateu em 2014. Se não chover em maio vai ser pior do que 2014. Então não dá mais pra tentar vender para as pessoas uma segurança que não tem. Nós temos que afirmar, sem vergonha: ‘Não sei, não sabemos’”, diz. “Temos que trabalhar com o princípio da precaução. E o princípio da precaução é, por natureza, pessimista. Essas coisas precisam ser tratadas de maneira verdadeira, com a complexidade, com as incertezas que as coisas têm, para que as pessoas acreditem. Se elas não acreditarem, não adianta nada.”

Ser responsável hoje é afirmar que a situação NÃO está sob controle. Por irresponsabilidade geral, a crise de 2014 não provocou mudanças significativas e permanentes nos padrões de consumo. Há muito o que fazer na indústria e na agricultura, que têm muito mais impacto, assim como nas casas das pessoas. Nem foram feitos os investimentos necessários em reflorestamento e recuperação da vegetação do entorno do Cantareira, uma medida mais do que urgente. A Mata Atlântica é uma floresta arrasada. É preciso recuperá-la. Quem se agarra a séries históricas está, de fato, se agarrando a seus empregos num planeta que já mudou.

Pode chover mais ou menos neste ano. A crise da água pode ser maior ou menor. O que é preciso compreender é que não é uma crise e outra crise lá não sei quando, mas uma catástrofe em curso, uma realidade deste momento histórico com a qual temos que lidar, na qual haverá um número maior e mais frequente de eventos extremos. Não é opcional. A mudança climática está aí. E não vai embora porque enfiamos a cabeça dentro de um frasco de Rivotril.

Há várias barreiras travando o enfrentamento desse momento de urgência. A primeira delas é que os adultos dessa época carregam uma mentalidade de século 20 e estão criando filhos com uma mentalidade de século 20. Ainda com a convicção de que bastam obras e tecnologia que tudo se resolverá, na crença absoluta da potência humana. Seguidamente sem perceber que esse “pode tudo” causou uma mudança na Terra. Tanto que cientistas respeitados defendem a alteração do nome desse intervalo de tempo geológico do planeta, que passaria a se chamar de Antropoceno – ou o período em que a espécie humana se tornou uma força capaz de deformar a paisagem global.

Outra barreira é o momento geopolítico, com um pesadelo como Donald Trump liderando a maior potência mundial e as democracias em crise existencial profunda. No Brasil, que abriga a maior porção da maior floresta tropical do mundo e deveria estar dando exemplo, mas não está, perdeu-se a chance de fazer uma grande mudança de paradigma quando São Paulo viveu a crise da água. Os interesses eleitoreiros se impuseram, e a população, já esgotada por tantas dificuldades econômicas e decepções políticas, se deixou alienar mais uma vez.

O debate sério sobre a água e a mudança climática só entrará na pauta das eleições deste ano se houver muita pressão dos eleitores. Sem políticas públicas para enfrentar os desafios do aquecimento global e outras alterações provocadas pelos humanos, o que inclui desde zerar o desmatamento na Amazônia até ampliar o saneamento básico para toda a população, não há enfrentamento de fato. Mas o contexto é de rebaixamento da política, de um modo geral, e de baixa credibilidade dos políticos tradicionais. Para agravar, Jair Bolsonaro, que já se revelou incansável no ato de proclamar sua ignorância sobre todos os temas, lidera as intenções de voto em cenários sem Lula.

Quem trabalha com as questões da mudança climática tem se feito uma pergunta recorrente: como fazer com que as pessoas compreendam o que acontece hoje no planeta e passem a agir, o que significa tanto pressionar o poder público para tomar as medidas necessárias quanto mudar padrões arraigados e se adaptar a uma vida que será diferente? Havia a expectativa de que São Paulo, pelo tamanho e importância que tem no cenário brasileiro, pudesse ser um laboratório de conscientização e propostas criativas durante a crise da água que começou em 2014. Mas a oportunidade foi perdida. E a crise da água logo foi esquecida pelos que ainda têm o privilégio de poder esquecê-la, como se tivesse sido apenas um soluço.

Com os índices do Cantareira se revelando mais uma vez perigosos, as falsificações e mascaramentos já começaram. Nesta segunda-feira, 21 de maio, o Cantareira estava com 47,8% da capacidade. Em 2012 e 2013, anos que antecederam à crise, o Cantareira operava com 73,5% e 61,5%, segundo reportagem do UOL. Mas a Sabesp (empresa de saneamento do estado de São Paulo) já afirmou que “não há motivo para preocupação”. A irresponsabilidade do “sob controle” já começa a ecoar. Afinal, Geraldo Alckmin deixou o cargo de governador de São Paulo para disputar a presidência da República pelo PSDB.

Há ainda uma outra barreira impedindo que as pessoas despertem. E esta pode ser a mais difícil de transpor. Esse momento da história, no qual a mudança climática se torna o maior desafio, encontra um tipo de humano que foi moldado pela indústria do entretenimento. Homens e mulheres se tornaram adultos infantilizados esperando que lhes digam o que está acontecendo, o que pensar e como reagir, e o que têm de consumir a cada vez, de produtos materiais a conceitos. É nessa chave que entra a atual neurose do “otimismo”, que faz com que os “pessimistas” se tornem uma espécie de traidores que não querem que o mundo melhore.

Já escrevi neste espaço e não me canso de repetir: acusar o mal-estar dessa época é um sinal de saúde mental. Agir como carneiros saltitantes de desenho animado enquanto a Amazônia é destruída, a falta de água ameaça São Paulo, o Ártico degela aceleradamente, os eventos climáticos extremos se sucedem e as populações mais frágeis começam a se deslocar pode demonstrar dificuldade para se conectar com a realidade. Com essa negação é preciso se preocupar.

Mas é para esse tipo de comportamento que a indústria de entretenimento preparou a geração de consumidores de emoções que aí está. E está preparando a nova que vai assumir um mundo em dificuldade extrema. As carinhas sorridentes, a raivinha e os coraçõezinhos das redes sociais são um estágio a mais na infantilização da humanidade. Somos adultos botando desenhos fofos em posts o dia inteiro.

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