sábado, 24 de março de 2018

Fingindo que isso é vida

De vez em quando, a gente acorda do transe. Tropeça em um dos 60.000 cadáveres produzidos todo ano. E resolve colocar uma pessoa no corpo já sem vida. Lembra que ali havia uma pessoa. Repara no rosto. Tenta, usando, na memória ou imaginação, reconstruir a vítima.

A gente chora. Reclama. Protesta. Exige civilização. Mesmo que, por nunca a ter experimentado, a gente não saiba como ela é. Ou mesmo ache que não exista. Ou que talvez, se existir, não é coisa possível de acontecer nos trópicos.

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Natural. Nestes dias de descrença, na maior parte das vezes ver para crer é melhor mesmo. São Tomé nunca foi tão atual. País desconhece tempos de paz social, fica sempre na dúvida de sua existência ou possibilidade.

Logo aparecem os donos. Já vêm autoproclamados. Explicam tudo. Até o que pensamos. Ou como deveríamos pensar. No Brasil, povo tem dono. Ou talvez sejam os donos achem que tem povo. É confuso. Não sei.

De certo é que a tempestade de opiniões de especialistas prescrevendo remédios e explicando razoes. Cada um vende soluções simples, únicas, solitárias. Quase milagres. Ou explicam que a culpa é de ninguém.

E a vida é sequestrada por análises, artigos, comentários, reportagens. Todas repetidas. Sem originalidade. Emboloradas, inúteis e sem efeito. Mas sempre expostas de maneira vistosa. Ideias velhas, mas levadas a vitrine como novidade, emolduradas em ideologias já extintas em conceitos já mortos.

Tudo fica intenso. Tenso. Mas sem solução. Atropela a esperança de melhora. Fica repetitivo. Cansa. Abate o ânimo. Até a gente voltar ao transe. Mergulhar na apatia. Aceitar o absurdo. Continuar produzindo cadáveres sem rosto, sem história. Até esquecer ou acostumar. Vamos levando. Fingindo que isso é vida.

Desse jeito, a gente vai se convencer que civilização é isso mesmo.
Elton Simões

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