sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Boas festas

Aproveitem o clipe do The Florin Street Band. Voltamos na próxima semana. Uma paradinha para degustar boas leituras 

Um presente de Natal

Minha primeira lembrança do Natal remonta ao final dos anos 1960. Morávamos num cortiço na Vila Teresa, em Cataguases, interior de Minas Gerais. Meu pai ganhava a vida vendendo pipoca na praça Santa Rita, o segundo mais importante ponto para este tipo de negócio na cidade – o melhor era o da praça Rui Barbosa, com seus cinemas e bares, desaguadouro das lojas da rua do Comércio. Minha mãe lavava, nesta época, uma dezena de trouxas de roupa por semana. Junto, o dinheiro que arrecadavam pagava as despesas do aluguel (que incluía luz e pena d’água), do armazém (anotadas em cadernetas) e da farmácia (tínhamos conta numa delas!). Quase nada sobrava para comprar bobiças para as crianças.

Meu irmão cursava tornearia no Senai e estudava, por correspondência, desenho mecânico. Ainda hoje me vem à memória a curiosidade que me coçava quando aportavam em nossa casa os envelopes pardos, gordos, do Instituto Universal Brasileiro. Ele saía cedo para a escola, retornava para o almoço, guiando sua bicicleta Philips preta com frisos dourados, freio contra-pedal, voltava para a escola e no finzinho da tarde, após uma longa jornada, que incluía às vezes exaustivas partidas de futebol de salão, é que afinal sentava na pequena sala e abria os envelopes. Ali permanecia até o começo da madrugada, munido de régua, compasso, transferidor, a responder as questões propostas pelos exercícios.

Minha irmã, que tomava conta de mim, liberando minha mãe para se dedicar, com tranquilidade, a bater roupa no tanque e quarar as peças na capoeira, aproveitava para ouvir os programas da Rádio Cataguases, sonhadeira. Ela gostava de, junto com as outras meninas das casas vizinhas, tomar sol no quintal minúsculo, separados todos por frágeis cercas de bambu, esticadas em toalhas e lambuzadas com um líquido, que bem poderia ser urucum, que bem poderia ser Coca-Cola, que as deixavam sempre com a pele vermelha, nunca bronzeadas. Eu não entendia, como ainda não entendo, aquelas tardes de silêncio e suor, em que elas se entregavam à tarefa de imitar lagartixas...


Em geral, pela época do Natal, com todos nós em férias na escola, minha mãe carregava a família, menos meu pai, para a roça, em Rodeiro, uma colônia italiana a uns 50 quilômetros de Cataguases. Lá não havia festa, com distribuição de presentes e ceia à meia-noite. Limitávamos a assistir a Missa do Galo e regressar a pé, palmilhando uma légua de brutal escuridão, até a casa-sede da pequena porção de terra coberta de capim-gordura, voçoroca e cupim, que chamavam pomposamente de Fazenda do Paiol. O 25 de dezembro, para mim e para meus primos, era um dia qualquer. Mas, por um motivo que não sei precisar, não viajamos naquele ano.

E, então, senti no ar a corrente que eletrizava os colegas do cortiço. Caminhávamos pelas imediações e de dentro das casas piscavam as luzinhas das árvores de natal. Na rua do Comércio e adjacências, papais-noéis balançando sinos convidavam os fregueses a entrar nas lojas, enfeitadas de estrelas cadentes e cobertas de papel-crepom vermelho. No coreto da praça Rui Barbosa, um enorme presépio encenava para os transeuntes a pobreza do nascimento de Cristo numa manjedoura, entre animais. De todos os lugares jorravam músicas natalinas. As pessoas aparentavam possuídas por algo que não sabia determinar, mas que as deixavam diferentes.

Não fiquei desapontado quando descobri que todas as crianças recebiam presentes do Papai Noel, menos eu e meus primos – apenas constatei que, evidentemente, ele nunca iria nos encontrar naquela lonjura, que nem luz elétrica tinha. Mas agora com toda certeza ele me compensaria por todos aqueles anos de atraso. E manifestei, pela primeira vez, meu desejo: queria ganhar vários carrinhos, um para cada ano enfurnado em Rodeiro. Disse isso para minha irmã, disse isso para meu pai, disse isso para minha mãe. E devorei ansioso os dias quentes e sufocantes que me separavam da mágica Noite de Natal.

Dezembro é a estação das enchentes em Cataguases. O rio Pomba, que corta a cidade ao meio, impávido e cordato, resolve, nas proximidades do Natal, tornar-se turbulento e ganancioso, invadindo as ruas e as casas e expulsando a população para os lugares mais altos. O cortiço no qual morávamos ficava a poucos metros da margem e no verão havia sempre alguém de olho nas nuvens escuras que se formavam lá para os lados de Barbacena, nascedouro do rio Pomba, e de ouvidos atentos na Rádio Cataguases, que, em contato com cidades rio acima, transmitia boletins de hora em hora sobre o volume das chuvas.

Não foi diferente aquele ano. Na manhã do dia 24 de dezembro, acordamos com as águas beirando as casas e subindo a tal velocidade que os últimos móveis já foram retirados com os adultos mergulhados até à cintura. Pessoas corriam de um lado para outros e a todo momento carreavam notícias cada vez mais preocupantes. Caiu uma tromba-d’água em Tabuleiro do Pomba. Tem uma barragem prestes a estourar. A rodoviária está inundada. Boatos logo desmentidos, mas que alvoroçavam a nós, os indigentes. Fato era que das casas geminadas que compunham o cortiço onde morávamos só vislumbrávamos os tetos.

Perto da meia-noite, reunidos em torno de uma fogueira, ao relento, observando as águas baixarem devagar e manhosamente, alguém lembrou que era a Noite de Natal. De repente, surgiram, não se sabe de onde, uns dois ou três frangos assados, duas garrafas grandes de refrigerantes, uma travessa de arroz com petipoá e uva-passa. O Zé Preguiça, normalmente malvisto por sua boemia, pegou do violão e com a voz possante iniciou o “Noite Feliz”, logo seguido pelo entusiasmo de um coro desafinado. E todos sorriam, e se abraçavam, Feliz Natal! Feliz Natal! Meu pai, que passara o dia inteiro sumido, ajudando a transportar mudanças das casas atingidas pela enchente, aproximou-se de mim e, encabulado, me exibiu uma embalagem azul-celeste, que acomodava toda em sua mão direita. Desapontado, pois a frota por mim imaginada não caberia naquele ridículo pacotinho, o choro travado na garganta, rasguei com raiva o embrulho. Lá estavam seis minúsculos carrinhos de plástico, um para cada Natal perdido.

'Mamãe, neste Natal quero de presente mais tempo para brincarmos juntos'

Ygor é um menino de nove anos, de uma das milhões de famílias da classe C em que o pai ficou desempregado. O pequeno deve ter escutando os pais comentarem que não iriam poder comprar-lhe nada neste Natal. O fato é que se aproximou da mãe e lhe disse: “Mamãe, não quero presente de Natal, só quero que me dedique mais tempo para brincarmos juntos”. A mãe me contou que ao ouvir o filho teve um sobressalto de ternura e frustração ao mesmo tempo. “De ternura porque entendi que sou mais importante que tudo para ele, e de frustração porque meu filho estava se queixando de que lhe dedicava pouco tempo.”

Hoje existem milhares de tratados de pedagogia para tentar conhecer a alma dos pequenos e, apesar de tudo, sempre há em um lugar do coração deles algo que não conseguimos penetrar. Um professor da minha faculdade de psicologia nos dizia que conhecer o coração de uma criança “é mais difícil que o teorema da relatividade”.

Ele tinha razão. E o pior é que podemos cair na tentação de querer interpretar, sem ouvi-los, o que eles preferirem. Não nos damos conta que decidimos muitas vezes em função da nossa conveniência. Os enchemos, por exemplo, de brinquedos para que “se distraiam sozinhos”. Entenda-se: “para que nos deixem em paz”. Assim, quando ligamos a televisão para eles ou os deixamos usar o celular “para que fiquem quietos” assistindo a um jogo ou um filme. Isso sem perguntar se é o que eles mais querem.



Lembro-me agora que esse mesmo menino que agora pediu mais tempo à mãe para brincar com ela, quando tinha cerca de quatro anos, o deixavam às vezes na casa da avó para que a mãe pudesse trabalhar. Para que não atrapalhasse muito levavam uma cesta grande cheia de brinquedos que eram esparramados no terraço para que se entretivesse. Cheguei um dia de repente e encontrei o menino, ao lado de sua montanha de brinquedos, distraído com uma colher velha brincando com água e terra. Quando me viu, pediu que brincasse com ele de “amassar o pão”. Tive de buscar outra colher e continuar sua brincadeira. Diante do monte de brinquedos, ele preferiu inventar um, simples e barato.

A história do pequeno me fez dar um salto a minha infância, passada com meus dois irmãos na penúria e na pobreza posteriores à Guerra Civil Espanhola. Naquela época, os meninos acreditavam que eram os Reis Magos que nos traziam os presentes em seus camelos. O dia de Reis era o único dia do ano em que recebíamos um presente, a propósito, muito pequeno. Para a minha irmã, uma bonequinha de pano feita por alguma tia habilidosa. Para nós, os dois meninos, uma bola de tênis e às vezes um carrinho de corda que conseguia percorrer alguns metros. E para os três um pacote de balas que nós partíamos para que parecessem mais.

Tento lembrar-me se éramos mais infelizes do que as crianças de hoje que recebem presentes durante todo o ano. Acredito que aquela espera de um ano pelo presente dos Reis compensava com felicidade o vazio de um ano sem nada. E lembro-me, acima de tudo, algo relacionado com a história de Ygor e sua mãe, que ao brinquedo prefere mais tempo para brincar com ela. Meu pai tinha o hábito de sair muito cedo para passear no campo e, como professor da escola primária da cidadezinha, voltava na hora de abrir a escola. Eu nunca lhe disse, mas meu sonho era ir um dia passear na companhia dele.

Quando já tinha completado nove anos, ele me chamou, solene, e disse: “Juan, você já é grande e tem de saber um segredo: os Reis Magos não existem, são os pais que colocam os presentes, por isso neste ano você vai nos ajudar a preparar os presentes de Reis para os seus irmãos. Você não vai ganhar nada, mas eu vou te dar um presente diferente: a partir de amanhã eu vou te acordar para que você me acompanhe no passeio pelo campo”. Juro que foi o maior presente que recebi na vida. Ele não precisou me acordar. Quando se aproximou da minha cama, quase ao amanhecer, eu já estava com os olhos bem abertos. Saímos juntos. Senti-me maior de repente. Meu pai me levou a um riacho onde os pássaros iam beber naquela hora. Passeou comigo pela horta em um pedaço que nós, os pobres, alugávamos do latifundiário da cidadezinha para plantar.

Ali, com ele, aprendi a distinguir uma planta de grão-de-bico de uma de feijão, as espigas de trigo das ervas daninhas que cresciam juntas. Ele me ensinou a delícia de arrancar um tomate maduro e comê-lo ali mesmo, sem sal nem nada. Ou a distinguir em uma figueira os figos mais doces: “São aqueles que foram picados pelos pássaros”, explicou, porque eles só gostam dos bem maduros.

Voltei para casa e não sabia como explicar a todos — minha mãe, minha tia, meus irmãos — a alegria que me inundava por ter podido ir “passear com o meu pai”. Brinquedos? Para quê?

O uso da mídia por juízes e procuradores

Atualmente não pairam dúvidas de que a mídia desempenha papel fundamental na sorte dos processos judiciais, especialmente nos criminais. A par disso, muito se discute sobre a conduta de magistrados e de procuradores que externam suas opiniões fora dos processos, utilizando os veículos de difusão de informação como uma nova forma de “comunicação judicial”.

Tradicionalmente, juízes e membros do Ministério Público restringiam-se a manifestar suas posições tão somente no âmbito de suas atividades, uma vez que se considerava inapropriado participarem de discussões públicas, tendo em vista que com seus comentários se arriscariam a fragilizar a independência e a autoridade de suas decisões.

Essa era a regra, seja no Brasil, seja no exterior. O sempre ministro do Supremo Tribunal Federal Paulo Brossard dizia que quando o juiz fala fora dos autos, ele está tentando politizar ou moralizar o Direito, pois se lhe interessasse só o Direito os autos lhe bastariam. Interessante exemplo desse tipo de comportamento se verificou na Inglaterra no ano de 1955, quando lorde Kilmuir, chanceler da Inglaterra e de Gales, então chefe do Judiciário, foi convidado pela emissora BBC para participar de uma transmissão sobre os grandes juízes do passado. Como resposta, ele estabeleceu a premissa conhecida posteriormente como “a regra Kilmuir”, em que os membros do Judiciário não deveriam conceder entrevistas no rádio ou na televisão sem o prévio consentimento do lorde chanceler. Então, quando abordado por algum repórter, não importava quão interessante o assunto ou relevante para seu trabalho, os juízes simplesmente respondiam que não lhes era permitido contribuir para a matéria sem a anuência do lorde chanceler. Os jornalistas estavam bem conscientes de que o consentimento era improvável, na prática, o que punha um fim na discussão.

Resultado de imagem para gilmar mendescharge

Fora do Brasil, no entanto, a partir da década de 1980 esse ponto de vista começou a mudar. A perda da confiança do público no sistema de Justiça e a demanda por maior transparência levaram à redefinição do papel do Judiciário. Na França e na Bélgica, por exemplo, os escândalos judiciais foram o ponto de partida para mudanças importantes na forma como os juízes e os promotores passaram a perceber a necessidade de se comunicar com a mídia e o público. Os membros do sistema judiciário tornaram-se mais conscientes da importância das estratégias de comunicação para melhorar a compreensão e aceitação de suas decisões e atividades. A crescente influência da Corte Europeia de Direitos Humanos contribuiu para o desenvolvimento da “doutrina da aparência” (appearance doctrine) e a visão de que “não só a justiça deve ser feita, também deve ser enxergada para ser feita” (not only must Justice be done, it must also be seen to be done).

Todavia o mau emprego da mídia por alguns magistrados e procuradores tem causado perplexidade. Não só por comentarem causas ainda pendentes de julgamento, mas, sobretudo, por utilizarem a imprensa como veículo de massificação ideológica, impondo as suas vontades, o que termina por capturar a simpatia do grande público, minando o raciocínio crítico em sociedade. Infelizmente, tal atitude tem sido recorrente no Brasil. Frases de efeito são a tônica dos discursos, como, por exemplo, “o foro privilegiado é sinônimo de impunidade”, ou “o fim da prisão de segunda instância gera estado de compadrio”. O reducionismo do debate tem levado a conclusões simplistas, lançando o País na sanha do populismo judicial, à revelia de uma discussão mais qualificada.

O fenômeno é mundial e naturalmente não existe somente no Brasil. O professor Hans Mathias Kepplinger, do Instituto de Jornalismo de Mainz, na Alemanha, retrata essa realidade em artigo intitulado A influência indireta da mídia sobre juízes e promotores(Der indirekte Einfluss der Medien auf Richter und Staatsanwälte). Ele conclui que operadores do Direito utilizam a mídia para expressar os seus pontos de vista de forma intensa para a população, demonstrando a sua influência, de sorte que tal conduta conduz a um efeito recíproco, que se reflete na atmosfera do tribunal e até mesmo no momento de aplicação da pena.

Difícil, portanto, negar a importância da mídia no processo penal. Por outro lado, não se buscam nos tempos de hoje juízes ou promotores herméticos, trancados em seus gabinetes, sem desencadear um diálogo com a sociedade, principalmente em tempos de judicialização da política. Ademais, é de considerar que a relação entre o público e a informação mudou sensivelmente com o advento da internet e das redes sociais. De fato, as mídias sociais oferecem a juízes e procuradores a oportunidade de interagirem com o público de uma nova forma que promova a transparência, a interatividade e a divulgação da informação. Um objetivo tão digno fez com que alguns países desenvolvessem e regulassem o uso de mídia social. A Dinamarca e a Noruega começaram a utilizar o Facebook e o Twitter.

Em suma, torna-se fundamental que o uso da mídia seja realizado sem a obsessão de fazer valer a qualquer preço determinada ideologia. É evidente que, até por força dos cargos que ocupam, juízes e procuradores têm destacado poder de persuasão em sociedade. Contudo é importante relembrar que a comunicação pela mídia não se deve prestar a constituir uma maneira de contornar o devido processo legal. Corretamente utilizada, contribuirá para divulgar informações úteis, sem violar os princípios processuais ou prejudicar o bom andamento da Justiça.

O que não se pode admitir, no Brasil, é que agentes do Estado façam uso da mídia para manipular o debate, desdenhar de decisões contrárias aos seus interesses (por vezes corporativos), abusando, assim, do direito à liberdade de expressão e, ao fim, da própria democracia.

Luís Henrique Machado

Direito de quem?

Pode ser que a história não seja exatamente assim, mas que parece, parece: está em curso um movimento para legalizar os salários do funcionalismo que excedem o teto de R$ 33,7 mil. No primeiro momento, os beneficiários desses chamados supersalários tentaram esconder os números. A presidente do STF, Cármen Lúcia, passou meses tentando obter dos tribunais de Justiça de todo o país a lista completa dos vencimentos e dos auxílios (moradia, transporte, educação, saúde etc.), as tais verbas que rompem o teto. Conseguiu no finalzinho do ano e prometeu uma análise para 2018.

Reparem: a ministra não mandou cortar nem suspender os penduricalhos, ainda que fosse provisoriamente. Apenas prometeu alguma providência futura, observando que pode haver “extrateto” legal.

Ora, é justamente esse o argumento dos tribunais e das associações de classe de juízes: o salário-salário, digamos assim, fica abaixo do teto. O que vem acima são “verbas indenizatórias”, que não contam como salário, mesmo que sejam pagas regularmente todos os meses. Ou seja, parece salário, é pago como salário mensal, mas, juridicamente, é “verba”.

O levantamento entregue ao Conselho Nacional de Justiça mostrou que o extrateto é regra, e não exceção. Quase 80% dos juízes estaduais, por exemplo, ganham acima dos R$ 33,7 mil.

Resultado de imagem para supersalario charge


Não é a primeira vez que se dá um drible nessa legislação. Não faz muito tempo, o teto era o salário do presidente da República (hoje de pouco mais de R$ 30 mil). Mexe daqui, mexe dali, aconteceu que os vencimentos dos ministros do STF ultrapassaram o teto presidencial. E, assim, em vez de se reduzir o salário dos ministros da Corte, elevou-se o teto — esse que agora é sistematicamente superado.

A novidade deste ano é que o pessoal como que “assumiu” o supersalário. Em Rondônia, por exemplo, o rendimento líquido dos juízes variou de R$ 62 mil a R$ 227 mil — recorde nacional no mês de novembro. Explicação do Tribunal de Justiça estadual: normal, trata-se de pagamento atrasado de auxílio-moradia e transporte.

No próximo ano, se a ministra Cármen Lúcia colocar na pauta, o plenário do STF vai discutir a constitucionalidade do auxílio-moradia — hoje pago mensalmente a todos os juízes do país, por força de liminares concedidas por Luiz Fux. Apostas abertas, caro leitor: como decidirá a Corte?

Mas não é só no Judiciário. A defesa dos supersalários e dos privilégios dos parlamentares e governantes está em plena atividade. No pacote fiscal do governo, havia duas medidas que afetavam os salários do funcionalismo: o adiamento do reajuste de várias categorias de 2018 para 2019; e o aumento da contribuição previdenciária de 11% para 14% para os que ganham acima de R$ 5 mil e incidindo só sobre a parte que ultrapassar os R$ 5 mil.

O ministro Ricardo Lewandowski derrubou as duas. Argumento, entre outros: não se pode discriminar nem penalizar os servidores que ganham mais; a alíquota de 14% seria “arbitrariamente progressiva”.

Ora, então vamos cancelar a tabela do Imposto de Renda. Aqui, como em toda parte, a tabela é progressiva, de tal modo que os que ganham mais, pagam mais. Na tese de Lewandowski, isso seria arbitrário, injusto, a menos que seu argumento tenha valor apenas para o alto funcionalismo.

Na verdade, esse debate ficou enviesado. Reparem: não se fala em meritocracia, na qualidade do serviço prestado, no eficiente exercício da função. Ficou assim: de um lado, muita gente, mas muita mesmo, estupefata com os supersalários e, de outro, os interessados dizendo que é assim mesmo, um direito, e pronto.

De certo modo, ficou assim também na Lava-Jato e nas suas ramificações. Há juízes que mandam soltar, não vendo nada de anormal no sistema político, e outros que mandam prender, escandalizados com o nível de corrupção.

Também na reforma da Previdência: de um lado, um déficit que passa de R$ 270 bilhões neste ano; de outro, a defesa da aposentadoria plena na casa dos 50 anos.

Outro caso de que nos ocupamos: os nove vereadores da cidade paraibana de Baía da Traição ganham R$ 3.500 por mês, cada um. Contando o décimo terceiro e considerando que a Casa se reúne 24 vezes por ano, isso dá R$ 1.895 por sessão. O município tem 8.915 moradores, com renda per capita estimada de R$ 250 por mês.

Só um exemplo. Nas eleições do ano passado, foram preenchidas 57.931 vagas de vereador, nos 5.568 municípios. Se todos esses parlamentares recebessem o mesmo salário dos colegas de Baía da Traição, isso daria R$ 2,6 bilhões ao ano.

Mas essa conta é muito por baixo. O vereador de Baía da Traição, rico na sua cidade, é pobre no país. No Rio, por exemplo, considerando salários e mais verbas de gabinete e de pessoal, cada vereador custa cerca de R$ 107 mil por mês. Em São Paulo, R$ 156 mil.

Assunto debatido, mesma resposta: é direito.

Para 2018, há muito mais do que eleições. Uma discussão sobre o que é mesmo direito, legal e ético.

Que seja um bom ano para todos.

Natal à brasileira

O lucrativo negócio de empregar presos de graça ou pagando menos do que a lei determina

O Brasil tem milhares de presos trabalhando de graça para empresas e órgãos governamentais, que, por fora da lei, se beneficiam desta mão de obra vulnerável para baratear seus custos. Outras companhias pagam aos detentos um valor muito abaixo do que prevê a legislação. É um lucrativo e obscuro negócio que ocorre atrás das grades das penitenciárias do país que tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 726.712 detentos. As companhias dos setores público e privado firmam acordos com os Estados para explorar a mão de obra dos internos: o regime de trabalho dos presos não é regulado pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e sim pela Lei de Execuções Penais, que prevê uma remuneração de ao menos três quartos do salário mínimo - ou seja, um piso de cerca de 702 reais. Mas para muitos encarcerados que trabalham, este valor, ainda que baixo, é um sonho. Outros não veem a cor do dinheiro. Dos 95.919 detentos que são empregados dentro do sistema penitenciário, 33% (ou 31.653 pessoas) não recebem nada, trabalham de graça.

Além dos que trabalham sem remuneração dentro dos presídios, outros 39.326 detentos que estão empregados recebem valores abaixo dos 702 reais exigidos pela LEP. No total, 75% dos internos que exercem alguma atividade no cárcere recebem menos do que o exigido por lei. Os dados constam em um relatório do Ministério da Justiça intitulado Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, publicado no início de dezembro e feito com dados de 2016. Todos os presos que trabalham contam com o benefício da remição de pena por dias de atividade – cada três dias de trabalho abatem um dia no cumprimento da sentença.

Detento trabalha na fabricação de bolas de futebol em Minas Gerais

O artigo 29 da LEP diz que “o trabalho do preso será remunerado, mediante prévia tabela, não podendo ser inferior a três quartos do salário mínimo”. Além disso, o empregador não precisa arcar com nenhum encargo trabalhista ao utilizar o serviços de um preso. Mas na prática, além do fato de existirem poucas oportunidades de trabalho no cárcere (apenas 15% dos detentos brasileiros trabalham), quando estas vagas existem, são predominantemente empregos remunerados de forma irregular até para os padrões dos anos de chumbo. Isso porque a LEP foi assinada em julho de 1984 pelo general João Figueiredo, no penúltimo ano de ditadura militar no país. Apesar de ser um direito, o trabalho no cárcere - visto como uma das principais ferramentas de ressocialização do preso - acaba sendo mais uma forma de exploração.

Em São Paulo, Estado com a maior população carcerária do país (240.061 presos), a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) mantêm contratos com 631 empresas privadas e 55 órgãos públicos que utilizam mão de obra dos internos, segundo dados oficiais. No site da pasta, o programa Alocação de Mão de Obra é descrito como uma oportunidade para que “a empresa possa desenvolver seu plano de responsabilidade social (...) sem vínculo empregatício com o trabalhador que está em cumprimento de sua pena e, portanto, sem os encargos sociais”. No Estado, 27% dos detentos que trabalham não recebem remuneração alguma, e 53% recebem menos do que o valor estipulado em lei. Além disso, uma portaria da SAP estipula que quanto mais postos de trabalho uma empresa ofereça dentro do presídio, menor é a taxa administrativa paga para a Secretaria, em um negócio lucrativo para todos – menos para o detento.

Questionada pela reportagem, a SAP de São Paulo afirmou que os presos prestam serviços nas áreas de “construção civil, têxtil, artesanato, fabricação de bens duráveis e não duráveis, alimentício e prestação de serviço”. Indagada, a pasta não comentou o descumprimento da LEP no Estado, tampouco forneceu a lista das empresas que utilizam mão de obra de detentos, e respondeu apenas que "discorda da metodologia de coleta de dados utilizada pelo Infopen na ocasião".

Parte dos contratos feitos entre detentos e empresas no Estado de São Paulo passam pela Fundação Professor Doutor Manoel Pedro Pimentel, a Funap, ligada à SAP. A entidade faz uma triagem das companhias, para evitar, por exemplo, que elas despeçam funcionários que estão em liberdade para contratar detentos, além de garantir o pagamento previsto em lei. “Para o setor privado é interessante investir neste tipo de mão de obra, uma vez que economizam todos os encargos trabalhistas”, afirma Lucia Casali, diretora da Funap. Mas nem tudo é lucro para a empresa que opta por trabalhar com presos. “Dificilmente eles conseguem que o interno trabalhe oito horas por dia, tendo em vista que é preciso que ele saia da cela, vá até a oficina, retorne no almoço horário de almoço... Tudo isso leva tempo”, afirma Casali.

Em algumas ocasiões, a Fundação chegou a acionar a Justiça para garantir que empresas conveniadas fizessem o pagamento correto do salário dos presos. A diretora da Funap afirma que todos os contratos irregulares apontados no estudo são feitos por fora da Fundação. “O ideal seria que os presos ganhassem um salário mínimo completo. Mas se todos ganhassem ao menos três quartos do mínimo já seria ótimo”, diz. A expectativa dela é que no máximo até 2019 a situação da exploração irregular de detentos seja sanado no Estado.

A reportagem tentou contato com duas empresas que exploram o trabalho dos presos paulistas sem sucesso.

No Distrito Federal a porcentagem de presos que trabalham de graça é de 100%. Procurada para comentar o descumprimento da lei, a Secretaria de Segurança Pública e Paz Social do DF informou que " o levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, de 2016, está desatualizado no que se refere ao Distrito Federal". Segundo a nota enviada, atualmente cinco internos e 132 internas do sistema prisional que cumprem penas em regime fechado exercem serviços remunerados".

Procurado, o Ministério da Justiça informou que "recentemente lançou o Selo Nacional de Responsabilidade Social pelo Trabalho no Sistema Prisional", e que "as empresas, órgãos públicos e entidades de economia solidária terão até o dia 31 de janeiro para se inscreverem neste primeiro ciclo de concessão do Selo". Já o Ministério Público Federal afirmou que tem atuação "pontual" no sistema penitenciário estadual, e suas ações são voltadas para o sistema federal. O assessor do procurador-geral de Justiça de São Paulo Paulo José de Palma informou que "o Ministério Público Estadual irá apurar a possível irregularidade em contratos firmados com os detentos".
“Lógica predatória”

O Instituto Ethos, que trabalha com responsabilidade social para empresas, afirmou em relatório que “ainda que existam experiências louváveis [com contratação de presos], a lógica que as preside é essencialmente predatória (...) pois objetivam oferecer pequenos favores aos presos em troca de benefícios maiores para a empresa”. Mais à frente o documento afirma que o barateamento da produção para as empresas ao não remunerar presos de forma justa é tão grande que a Organização Mundial do Comércio “possui rígidas recomendações quanto à prática de dumping por meio da utilização de mão de obra de presidiários para baratear os custos de produção, considerada concorrência desleal”.

Vai-se o queijo, preservam-se os ratos

Não localizei o vídeo. O trecho a que vou me referir, provavelmente fazia parte de uma fala em que José Dirceu, discorrendo sobre a importância da política, afirmou aos companheiros, em Canoas/RS, que “se o projeto político é o mais importante, o principal é cuidar do PT”. Só localizei fragmentos desse pronunciamento no YouTube. Mas nesse ou noutro vídeo da mesma época, o então Chefe da Casa Civil de Lula fez uma referência à importância do controle dos fundos de pensão. Homem de visão, o Zé! Tudo aconteceu conforme previsto por ele: o PT passou a controlar os fundos; e tudo andou conforme o previsível: abriu-se um colossal rombo nas contas dessas importantes instituições – R$ 78 bilhões, em números de junho deste ano!


Mais de duzentos mil empregados e pensionistas de empresas estatais serão chamados, ou já estão fazendo isso, a aumentar, em muito, suas contribuições aos respectivos fundos de pensão. Os participantes e pensionistas da Petros já sabem que precisarão aportar R$ 14 bilhões em 18 anos. Outro tanto (13,5 bilhões) será assumido pela “nossa” amada Petrobras. A Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc), interveio no Postalis e, diante do que tem descoberto, vai “aumentar o valor das punições por má gestão”, hoje limitado a ridículos R$ 40 mil.

Nada disso me surpreende. Tudo estava previsto desde o momento em que Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto e a máquina petista se instalou no coração do governo e do Estado brasileiro. Até Deus se negou a nos acudir no subsequente Deus-nos-acuda.

Quando Carlinhos Cachoeira gravou o achaque de Waldomiro Diniz (2004) e Roberto Jefferson denunciou o mensalão (2005), o país tomou ciência de que havia uma organização criminosa atuando em larga escala no aparelho de Estado. Dez anos depois, quando se encerrou o julgamento do mensalão e a Lava Jato iniciou atividades, provavelmente os seis ministros que desconheceram o crime de formação de quadrilha eram os únicos cidadãos brasileiros que ainda se recusavam a admitir sua existência. Mas como entender, agora, esses eleitores de Lula e, mais especificamente, o silêncio das vítimas do rombo nos fundos de pensão? Por que não vejo carro de som, megafone ou apedidos na imprensa denunciando a gestão irresponsável desses planos por militantes partidários? Afinal, desde 2003 esses recursos estavam na mira do Zé, da política e, portanto, do partido que os usou para negócios, com destaque para os bilionários financiamentos concedidos aos projetos fracassados das “campeãs nacionais”.

Diante de tudo isso, não posso deixar de pensar na Síndrome de Estocolmo, ou seja, na afeição do sequestrado pelo sequestrador. É um fato que, por si só, mostra o tamanho de outro rombo, aberto na consciência política de tantos brasileiros. Ele se expressa na dedicação a quem lhes tomou a carteira e levou junto, como moedas do bolso, alguns dos mais humanos sentimentos de indignação e revolta.

Percival Puggina

Investigação revela exército de perfis falsos para influenciar eleições no Brasil

São sete da manhã e um rapaz de 18 anos liga o computador em sua casa em Vitória, no Espírito Santo, e dá início à sua rotina de trabalho. Atualiza o status de um dos perfis que mantém no Facebook: "Alguém tem um filme para recomendar?", pergunta. Abre outro perfil na mesma rede. "Só queria dormir a tarde inteira", escreve. Um terceiro perfil: "Estou com muita fome". Ele intercala esses textos com outros em que apoia políticos brasileiros.

Esses perfis não tinham sua foto ou nome verdadeiros, assim como os outros 17 que ele disse controlar no Facebook e no Twitter em troca de R$ 1,2 mil por mês. Eram, segundo afirma, perfis falsos com fotos roubadas, nomes e cotidianos inventados. O jovem relatou à BBC Brasil que esses perfis foram usados ativamente para influenciar o debate político durante as eleições de 2014.

As evidências reunidas por uma investigação da BBC Brasil ao longo de três meses sugerem que uma espécie de exército virtual de fakes foi usado por uma empresa com base no Rio de Janeiro para manipular a opinião pública, principalmente, no pleito de 2014.

A estratégia de manipulação eleitoral e da opinião pública nas redes sociais seria similar à usada por russos nas eleições americanas, e já existiria no Brasil ao menos desde 2012. A reportagem identificou também um caso recente, ativo até novembro de 2017, de suposto uso da estratégia para beneficiar uma deputada federal do Rio.

A reportagem entrevistou quatro pessoas que dizem ser ex-funcionários da empresa, reuniu vasto material com o histórico da atividade online de mais de 100 supostos fakes e identificou 13 políticos que teriam se beneficiado da atividade. Não há evidências de que os políticos soubessem que perfis falsos estavam sendo usados.

Com ajuda de especialistas, a BBC Brasil identificou como os perfis se interligavam e seus padrões típicos de comportamento. Seriam o que pesquisadores começam a identificar agora como ciborgues, uma evolução dos já conhecidos robôs ou bots, uma mistura entre pessoas reais e "máquinas" com rastros de atividade mais difíceis de serem detectados por computador devido ao comportamento mais parecido com o de humanos.

Parte desses perfis já vinha sendo pesquisada pelo Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo, coordenado pelo pesquisador Fábio Malini.

"Os ciborgues ou personas geram cortinas de fumaça, orientando discussões para determinados temas, atacando adversários políticos e criando rumores, com clima de 'já ganhou' ou 'já perdeu'", afirma ele. Exploram o chamado "comportamento de manada".

"Ou vencíamos pelo volume, já que a nossa quantidade de posts era muito maior do que o público em geral conseguia contra-argumentar, ou conseguíamos estimular pessoas reais, militâncias, a comprarem nossa briga. Criávamos uma noção de maioria", diz um dos ex-funcionários entrevistados.

Esta reportagem é a primeira da série Democracia Ciborgue, em que a BBC Brasil mergulha no universo dos fakes mercenários, que teriam sido usados por pelo menos uma empresa, mas que podem ser apenas a ponta do iceberg de um fenômeno que não preocupa apenas o Brasil, mas também o mundo.