quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A poluição atmosférica e como eliminá-la

A Região Metropolitana de São Paulo, com seus 20 milhões de habitantes e cobrindo uma área de 8 mil quilômetros quadrados, tem sido o objeto de uma experiência única no mundo que não pode ser feita em laboratórios e trouxe grandes benefícios para a população. A introdução de carros flexfuel a partir de 2004 permitiu que variasse a fração de etanol na gasolina quando a produção do álcool aumentava e seu preço baixasse.

Hoje a fração de etanol na gasolina é de cerca de 27% e muitos carros usam etanol puro (anidro). Já houve ocasiões em que o etanol substituiu cerca de 50% da gasolina no País.

A qualidade do ar, ao longo de décadas, é medida pela Companhia Estadual de Tecnologia do Estado de São Paulo (Cetesb). Pesquisadores do Instituto de Física e de Astronomia e Ciências Atmosféricas da USP analisaram os dados da Cetesb e verificaram que de 1988 a 2015 os carros que circulam por São Paulo passaram a emitir 20 vezes menos monóxido de carbono (CO), óxidos de nitrogênio (NOx) e material particulado e 40 vezes menos hidrocarbonetos (HC). Já as emissões dos mesmos poluentes por veículos pesados (caminhões e ônibus), para os quais a regulamentação surgiu mais tarde, caíram três vezes.

O componente da poluição que mais preocupa os especialistas – por representar maior risco para a saúde humana – é o chamado material particulado, uma mistura de partículas sólidas ou líquidas muito pequenas. Elas são produzidas diretamente pelos motores durante a queima do combustível ou formadas na atmosfera a partir de certos gases. Quanto menores suas dimensões, mais tempo elas permanecem em suspensão no ar e maiores os potenciais efeitos danosos. Por serem tão pequenas, elas penetram facilmente no trato respiratório e ali se acumulam, podendo provocar inflamações pulmonares, agravar doenças como a asma e até causar problemas em outros órgãos.


A principal razão de a qualidade do ar não ter melhorado ainda mais nos últimos anos é o aumento substancial do número de veículos na região, que saltou de 1 milhão em 2000 para quase 7 milhões em 2014. Com mais carros nas ruas, o volume de combustível consumido cresceu 25%. Em menos de uma década passou de 5,5 bilhões de litros por ano, em 2007, para quase 7 bilhões em 2014.

A novidade que torna o estudo da poluição atmosférica em São Paulo interessante é a correlação entre a qualidade do ar e a variação do conteúdo de etanol na gasolina. Por exemplo, entre janeiro e maio de 2011 houve alta considerável no preço do etanol e os motoristas de carros bicombustível passaram a consumir mais gasolina do que álcool. Quando os preços do etanol voltaram a cair, o consumo de gasolina baixou e a concentração dessas partículas medida na atmosfera também diminuiu.

Dos principais poluentes avaliados pelos pesquisadores da USP, só um não diminuiu de modo consistente: o ozônio, um poluente secundário, resultado de reações de compostos produzidos pelos motores com substâncias da atmosfera e a radiação solar. As emissões desse gás, que causa irritação nas vias respiratórias e aumenta o risco de infecções, baixaram até meados da década passada, mas em seguida voltaram a subir, embora não tenham atingido níveis tão elevados quanto os da metade dos anos 1990.

Não foi apenas a substituição de gasolina pelo álcool que reduziu a poluição atmosférica em São Paulo. Ajudaram também as normas do Proconve sobre a emissão de poluentes, bem como a migração das indústrias poluentes para fora da região metropolitana, o que ocorreu lentamente ao longo dos anos. Contudo a introdução de carros flexfuel a partir de 2004 – e consequentemente o maior uso de etanol – foi essencial, sobretudo porque ele partiu do zero para valores elevados em poucos anos e durante esse período sofreu variações bruscas.

As lições aprendidas com a “experiência” a céu aberto feita em São Paulo podem ser transferidas para outras grandes cidades do mundo onde a poluição atmosférica seja um sério problema, como Beijing e até Paris.

Em Beijing, Nova Délhi ou Cidade do México a poluição urbana é intensa o tempo todo, nem se consegue ver os edifícios a uma distância de cem metros. Em Paris incidentes como esse se verificaram em 2017.

Os governantes da China perceberam claramente que garantir atmosfera urbana limpa não é um problema secundário, mas um problema de grande urgência, porque para a classe média ascendente das cidades a má qualidade do ar não é tolerável, além de ser um problema sério de saúde pública.

Só para dar um exemplo, estima-se que cerca de 3,5 mil pessoas morrem na cidade de São Paulo por ano por causa da poluição. Além disso, há as centenas de milhares de atendimentos em hospitais, em especial quando se acontece uma inversão atmosférica em São Paulo e a poluição piora. É bem verdade que fumar também provoca esses problemas, mas fumar é uma decisão individual, que só alguns adotam. Sofrer com a poluição da atmosfera atinge a todos, não é um ato voluntário.

O governo chinês tem tomado medidas extraordinárias que têm caráter emergencial, como proibir a circulação de automóveis em períodos de crise. O governo francês também fez isso e mais a longo prazo começa a discutir o abandono de motores do tipo usado nos automóveis, o que corresponde a lançar fora “a água do banho junto com o bebe”. O problema não são os motores, mas os combustíveis.

O exemplo de São Paulo, substituindo gasolina (de onde se originam os poluentes) por etanol (que é um combustível limpo), mostra a existência de uma outra solução, que foi testada e comprovada.

A adoção dessa solução em outros países, como China, Índia, México e França, deveria ser seriamente considerada pelos governantes desses países.

Paisagem brasileira

Alberto VAlença, SANTO ANTÔNIO DA BARRA Óleo sobre tela, 54 cm x 63 cm (paisagem tomada do alto do Largo da Vitória). Museu de Arte do Estado da Bahia, 1938.
Igreja de Santo Antônio da Barra, Salvador, (1938), Alberto Valença

Quantas línguas você fala?

Meu professor e orientador em Harvard, o Professor Dr. David Henry Peter Maybury-Lewis, pioneiro na transformação da etnologia indígena brasileira de um mero catálogo de curiosidades e sombrias notícias de contato cultural em questões sociológicas universais, falava fluentemente inglês (sua língua materna), francês, italiano, espanhol, russo, alemão, sueco, dinamarquês, português e duas línguas nativas do tronco Jê - xerente e xavante.
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Em Harvard, ele provocava inveja do meu mentor e amigo, o então professor assistente Richard Moneygrand, um decidido monoglota. Mesmo depois de ter estudado o Brasil por décadas, Dick até hoje fala português com um sotaque denunciador.

Como bom estudioso, ele explica: “Eu não consegui falar seu língua como ele merecia. Mas quem tem culpa disso são vocês mesmos, brasileiros, que, loucos para serem estrangeiros, recusavam a me ensinar português, falando comigo todo o tempo em americana!”

Concordo com meu amigo porque muito cedo eu entendi a ascendência do anglo-americano na constituição de um mundo global. O cinema com suas cenas intensas, suas melodias ouvidas subliminarmente e, principalmente, suas telas enormes (nas quais as pessoas surgiam poderosas tal como as vemos quando crianças), foi talvez a ponte responsável pela difusão do “estilo de vida americano” como uma alternativa existencial otimista. Num país como o Brasil, marcado por uma profunda insegurança - insegurança que foi da estupidez da “raça degenerada” para a asnice do reducionismo econômico -, o otimismo americano produziu um enorme impacto. Se somarmos essa dramaturgia à dominância industrial e tecnológica multiplicada pelo consumo em massa, entendemos porque o inglês deixou de ser a língua do comércio e virou um idioma planetário e interplanetário...

Moneygrand admitia sua inveja do meu orientador e provocava: de que vale falar tantas línguas quando não se tem muito a dizer em nenhuma? Ao que o meu professor retrucava: eu acho que a gente só tem a ganhar quando pode dizer “eu te amo” em mais de um idioma...

Assim foi que, naquela primavera de 68, ouvi de Dick Moneygrand, num curso intitulado “Hipóteses Sobre Culturas Nacionais”, que nós, brasileiros, tínhamos um pendor religioso pelos “de fora” ou “estrangeiros” quando eles surgiam como brancos, louros, de olhos claros e eram aristocratas, embaixadores, ricos e obviamente falavam uma língua que não entendíamos plenamente. Eis os vossos demiurgos e heróis civilizadores, dizia Dick. Eles em nada destoam daqueles que, em outras culturas, vieram do céu, das profundezas da terra ou da água - tal como os “conquistadores” e os “descobridores” e a família real lusa - e foram vistos como superiores ou deuses. Tinham, além do sangue azul e de serem diferentes dos pioneiros ou bandeirantes locais, já se misturados aos negros africanos e índios escravizados e subordinados como alienígenas inferiores.

Essa idolatria do outro - o branco aristocrata - é algo comum em todos os sistemas coloniais nos quais o colonizado mimetiza o colonizador e tem o sonho de visitar o centro do império do qual faz parte. Mas, no caso do Brasil, houve um tumulto. Primeiro, porque Portugal foi mais tangido pelo comércio do que pela missão civilizatória como ocorreu no caso espanhol; segundo, pelo fato excepcional na história das realezas, da fuga da família real para o Brasil. Aqui, o centro foi para a periferia num transtorno das teorias da colonização. Quando Lisboa é trocada pelo Rio, há uma implosão carnavalesca na qual colonizador e colonizado ficam exilados. Nesta periferia que virou centro, todos são canibalizados pela força dos costumes locais. Não é, pois, por acaso que o Brasil tenha essa sina imitadora e esse vezo pela estima negativa de si próprio. A familiaridade com aristocratas numa sociedade onde tudo devia ser feito levou a esse, digamos, poliglotismo cultural e político que até hoje faz com que vocês, brasileiros, pensem que existam mesmo países plenamente equilibrados e resolvidos. A idealização do outro corresponde a uma autodenegação.

Conforme vejo nas minhas anotações, Moneygrand terminou o curso arriscando: “Não há certeza em nenhum lugar. Esses modelos que vocês tanto buscam não estão fora, mas dentro de vocês. Tal como os idiomas, eles promovem alternativas, jamais certezas. As ideologias, como as leis que vocês têm em profusão, precisam ir além dos decretos, elas precisam ser seguidas”.

Roberto DaMatta

A Globo, do outro lado do paraíso

Nenhuma rede de comunicação foi – e ainda é – tão influente na história recente do Brasil como a Globo. Na época da ditadura civil-militar, o grupo Globo se consolidou como o maior do país e um dos maiores do mundo. A redemocratização chegou, e as Organizações Globo seguiram fortes. Nos protestos de junho de 2013, a cobertura da TV Globo e da Globo News foram decisivas para consolidar a narrativa de que os manifestantes eram “vândalos”. A Globo influenciou a opinião nacional na forma como cobriu a Lava Jato, os movimentos pelo impeachment de Dilma Rousseff e contra o PT, assim como na divulgação dos grampos ilegais da conversa gravada entre Lula e a então presidente do país. E, finalmente, foi em O Globo, principal jornal do grupo, que foi denunciada uma conversa altamente comprometedora entre o presidente Michel Temer (PMDB) e Joesley Batista, dono da JBS, à noite, no palácio residencial e fora da agenda, e que culminou com um editorial defendendo a renúncia de Temer – mas não eleições diretas. Como todos sabem, Temer não caiu até hoje.

Há algo novo no horizonte da Globo neste momento. Para parte daqueles identificados com a esquerda, a Globo é “golpista”. Essa parcela aponta a rede, em especial a TV Globo e a Globo News, como protagonista do “golpe parlamentar” que tirou Dilma Rousseff, uma presidente ruim, mas legitimamente eleita, do poder. Essa narrativa é alimentada não só pelos fatos atuais, mas pelo passado da emissora: em especial a edição do último debate entre Fernando Collor de Melloe Luiz Inácio Lula da Silva, nas eleições de 1989. Era o primeiro pleito presidencial após o fim de uma ditadura que durou 21 anos, detonada por um golpe civil-militar que a Globo apoiou, fato pelo qual pediu desculpas em 2013. A desconfiança contra a Globo, disseminada em uma parcela considerável dos que pertencem ao campo progressista, é permanente. E vem se acirrando desde 2013, amplificada pela facilidade de difusão das redes sociais. Essa ligação com o “golpismo”, mais incisiva neste momento, está intimamente ligada ao passado da Globo, mas também a algumas escolhas do presente.

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A novidade, porém, está em outro campo, na parcela da sociedade que chama a Globo de “comunista”. Essa é a parte surpreendente mesmo para aqueles que sempre consideraram a Globo responsável por todos os problemas do Brasil. De comunista, virou também “pró-Lula” e “pró-PT” e até mesmo “pró-Cuba”. Até bem pouco tempo atrás seria difícil alguém acreditar que viveria para ver a Globo ser chamada de “comunista”. Mas, no atual momento do país, o impossível é um conceito desidratado pelo sem limites da realidade política.

A esse clamor tem se juntado parte do fundamentalismo evangélico, concentrado numa parcela das igrejas pentecostais e neopentecostais, que tem dado novos sentidos ao que chamam de comunismo. Desde que essa parcela do evangelismo começou a crescer no país, a se articular como força política no Congresso e a ter na TV um de seus principais meios de proselitismo religioso (e também político), as escaramuças com a Globo, por um lado, e as tentativas de aproximação da rede com lideranças evangélicas, por outro, têm sido uma constante especialmente desde 2010. É fundamental lembrar que a principal concorrente da Globo é, já há algum tempo, a Record, ligada à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), do Bispo Edir Macedo.

Como tudo, no Brasil atual, nada é simples. Muito menos previsível. Na tarde do sábado, a hashtag #GloboLixo viralizou nas redes. Durante uma transmissão ao vivo, em que o repórter informava sobre o estado de saúde de Michel Temer, que passava por uma angioplastia no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, um homem parou bem atrás do repórter e começou a gritar: “Globo Lixo!”. A transmissão teve de ser interrompida, e as redes sociais foram tomadas por todo o tipo de comentário com #GloboLixo.

O curioso no episódio é que a hashtag foi usada por pessoas que em todo o resto discordam de forma visceral. Embora a maioria claramente pareça pertencer ao campo conservador, havia muitos ligados ao campo progressista. A Globo era “#GloboLixo” por motivos muito diversos e até mesmo opostos, unindo campos que têm se mostrado inconciliáveis no cotidiano do país. Hoje, a Globo (assim como outros veículos de comunicação) tem sido chamada de “lixo” também por grupos que até bem pouco tempo atrás eram tratados por ela como a face nova e arejada da democracia numa “cruzada contra a corrupção” ou como os jovens rostos do liberalismo, o que não deixa de ser uma ironia.

Isso não significa que a Globo atingiu uma unanimidade negativa, mas que este momento do Brasil se torna mais e mais complexo. E a forma como é vista a maior rede de comunicação do país por diferentes grupos é crucial para tentar compreender o atual fundo do poço sem fundo.

A pecha de “comunista”, relacionada à Globo, é a mais desafiadora, porque tão delirante quanto calculada. Até o Santander, um dos maiores bancos privados do mundo, foi chamado de “comunista” durante o ataque à exposição QueerMuseu, em Porto Alegre, no qual a direção do centro cultural capitulou diante dos manifestantes. Chamar tanto o Santander quanto a Globo de “comunistas” pode ser compreendido como uma falha cognitiva desses acusadores. Mas este é um caminho fácil demais.

Uma pista importante é a ligação entre comunismo e temas morais neste momento em que grupos estridentes, mas não necessariamente representativos do pensamento da maioria dos brasileiros, como pesquisas já mostraram, têm produzido ataques contra a arte, artistas e museus, assim como episódios como a queima como “bruxa” de uma boneca com a cara da pensadora americana Judith Butler.

Comunismo, hoje, no Brasil, para alguns grupos, está muito mais associado aos costumes. A tudo que, para estes grupos, representa “aquilo que não presta”, categoria em que costumam colocar no mesmo patamar a reivindicação de um direito civil, como o casamento gay, e um crime, como a pedofilia. Neste mesmo sentido, algumas lideranças no campo da política, movidas pelo oportunismo, popularizaram a frase “querem transformar o Brasil numa Cuba”, como se essa fosse uma ideia real em circulação. Sem contar que a Cuba de Fidel Castro promoveu a perseguição e o encarceramento de gays e de lésbicas, uma face que a tornou mais parecida com aqueles que repetem essa frase sem noção.

O mais interessante desse processo é que a famosa ameaça do passado, que se tornou um tanto anedótica, a do “comunista comedor de criancinhas”, ganha uma literalidade de acepção sexual com o recente fenômeno nacional de enxergar pedófilos em quadros, performances e museus e acusar os autores das obras e os responsáveis pelas exposições como propagadores não só da pedofilia, mas também do comunismo. Nessas decodificações recentes que despontaram na sociedade brasileira, ser comunista seria, em resumo: “Corromper nossas crianças, acabar com a família brasileira, estimular a pedofilia e fazer todo mundo virar gay”.

Essas ligações não são novas, basta lembrar das marchas Da Família, com Deus e pela Liberdade, marcadamente católicas, que precederam a ditadura civil-militar, em 1964, contrapondo-se à suposta “ameaça comunista”. Mas, no Brasil atual – e na era da internet – isso aparece com nova roupagem e com novos atores e com muito mais virulência, o que torna tudo mais complicado.

Assim, não é apenas uma falha cognitiva ou uma deficiência educacional ou ainda uma ignorância, já que nada mais distante do comunismo do que a Globo ou o Santander. (E sem esquecer que tampouco o comunismo é um conceito teórico fechado ou acabado nem suas experiências reais foram menos do que controversas.) Mas, neste caso, trata-se também de uma nova construção de sentidos, com pouca ou nenhuma conexão com o conceito original de comunismo. Em vez de ser ridicularizada, essa apropriação deve ser escutada, estudada e compreendida. Inclusive porque cresce e porque tem influenciado o cotidiano do país.

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Felicidade, por Steve Cutts

Moscas sem asas

Após a votação da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), lembrei-me de uma das composições do Skank: "Indignação". Diz o refrão: "Eu fiquei indignado, ele ficou indignado, a massa indignada, duro de tão indignado. A nossa indignação é uma mosca sem asas, não ultrapassa as janelas de nossas casas".

De fato, pouca gente estava nas cercanias da Alerj e ninguém nas galerias, a não ser uns puxa-sacos do bando. Até a oficial de Justiça que tentou entregar um mandado para que o circo fosse público foi barrada. Em 17 minutos, 39 deputados restituíram o mandato de três colegas presos acusados por corrupção. Em momentos assim, as vítimas são a Justiça, a democracia e a nossa esperança de viver em um país mais digno. Como dizia o educador Paulo Freire, "num país como o Brasil, manter a esperança viva é em si um ato revolucionário".



A população - tal como um lutador de boxe nocauteado após muito apanhar - ficou indiferente à votação, até porque já previa o resultado. O Supremo Tribunal Federal (STF) abriu a porta da impunidade aos políticos ao transferir para o Legislativo a decisão sobre o afastamento do senador Aécio, em noite que culminou com um voto atabalhoado da ministra Cármen Lúcia. Nessa brecha, corruptos já voltaram à vida pública também no Rio Grande do Norte e em Mato Grosso. Caberá à Suprema Corte deixar claro se todo o Legislativo poderá cometer crimes e ficar impune ou se essa é uma prerrogativa exclusiva dos parlamentares federais. Por enquanto, pelo mesmo ralo onde passa um corrupto federal, passam quadrilhas estaduais. O esgoto é o mesmo.

A Lava-Jato mostrou que a corrupção brasileira não é apenas episódica, do tipo que existe em todos os países e é combatida com transparência, controle social e educação de qualidade. No país há várias quadrilhas estruturadas - que precisam ser extirpadas - compostas por políticos, agentes públicos e empresários, tendo como alvo negócios bilionários do Estado, sejam contratos, subsídios, isenções fiscais, concessões, financiamentos, autorizações tarifárias e tudo o mais que possa gerar propina.

No Rio de Janeiro, porém, o roubo foi potencializado a partir do momento em que políticos com interesses comuns passaram a ter domínio sobre o estado, a prefeitura, a Alerj e, inclusive, o Tribunal de Contas. Assim, ficaram reunidos sob o mesmo comando quem legisla, contrata, executa, paga e fiscaliza, um verdadeiro paraíso para os corruptos. Daí a importância de se alterar as legislações que permitem o vaivém de políticos entre o Legislativo e o Executivo, bem como a composição dos tribunais de contas de forma a impedir a politização.

Mas tal como aconteceu com a operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália, a Lava-Jato está ameaçada desde quando as investigações atingiram as oligarquias políticas.

Assim, no Congresso está em curso a CPI da JBS, que tem como alvo principal o Ministério Público. Na Câmara, tramita o projeto de abuso de autoridade, que tenta constranger promotores e juízes. Outras propostas alteram a Lei da Ficha Limpa e impedem a delação de presos.

No STF, a qualquer momento pode ser rediscutida a prisão a partir da condenação em segunda instância e já existem objeções para homologação das delações premiadas. O foro privilegiado continua a ser um passaporte para a impunidade.

No Executivo, as designações da Procuradora-Geral da República e do diretor-geral da Polícia Federal geraram receios por terem contado com o apoio ou a indicação de investigados. Ambos manifestaram preocupação com os "vazamentos", enquanto a sociedade está preocupada é com maior publicidade. Em se tratando de homens públicos, é essencial termos conhecimento do inteiro teor das denúncias/delações, dos argumentos de defesa, da tramitação das ações e dos julgamentos. Desde que a transparência não prejudique o aprofundamento das apurações, não há razão para sigilo.

Em alguns meses saberemos se as instituições estão realmente funcionando e atuando em defesa do Estado, ou se os brasileiros estão fadados a permanecerem comandados por uma corja de políticos sem escrúpulos que governa, legisla e indica ministros para tribunais superiores para que sirvam aos seus interesses.

Voltando ao Skank, precisamos ir além das moscas sem asas. Fazer com que a nossa indignação ultrapasse as janelas das nossas casas e chegue às ruas e às urnas. Tal como dizia Santo Agostinho, a esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las.

'Se va enredando como en el muro la hiedra"

Lembrei-me desses versos de Violeta Parra vendo a lambança que se passou na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro nos últimos dias. Um tribunal (TRF-2) havia determinado a prisão preventiva do presidente daquela Casa e de mais dois deputados estaduais. Com base em recente decisão do STF, que se aplicou a Aécio Neves, submeteu seu acórdão àquele Parlamento. Os deputados, sem tomarem conhecimento do tribunal, determinaram que os colegas fossem soltos. E os investigados acabaram voltando à prisão porque alvará de soltura algum fora expedido pelo tribunal.

Quando o STF foi levado, em maio de 2016, por ocasião do caso Cunha, a decidir se, tratando-se de suspensão de mandato parlamentar, teria ou não de submeter sua decisão à respectiva Casa legislativa, procurou-se empurrar com a barriga qualquer deliberação vinculante. Deu bode. Depois, já em 2017, no calor do “affair” Aécio, sem o menor constrangimento, desconstruíram a decisão unânime que haviam tomado, no ano anterior, no sentido de suspender o mandato do deputado Eduardo Cunha, sem autorização da Câmara dos Deputados. Em maio de 2016, não havia precedentes. Daí recorreram, por analogia, a um julgado de agosto de 2006, ocasião em que fora rejeitado um habeas corpus formulado pelo presidente da Assembleia Legislativa de Rondônia. Dito parlamentar havia sido preso em flagrante, e sua prisão, mantida pelo STF, sem audiência daquela Assembleia. A relatora do habeas corpus, ministra Cármen Lúcia, fez tábula rasa dessa oitiva, ao argumento de que o Parlamento daquele Estado federado vivia uma “anomalia institucional, jurídica e ética”. Para quem não se recorda, na época, 23 dos 24 deputados estaduais rondonienses estariam envolvidos nas mesmas falcatruas que levaram à prisão do presidente da Casa.

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A lembrança daquela anomalia ensejou o conceito de “franca excepcionalidade” a justificar, no caso Cunha, a decisão autônoma do STF. E daí, já às voltas com o caso Aécio Neves, pulou-se para a exigência de uma “superlativa excepcionalidade”, a fim de que se consagrasse, em sentido inverso, a submissão da decisão judicial ao crivo do Senado Federal. Mas, afinal: a “doutrina Aécio”, depois de todo o “requinte” de sua construção jurídica, deve ou não ser aplicada no Rio de Janeiro? Ou será que o TRF-2 não tinha reparado na “anomalia institucional, jurídica e ética” em que há muito está metida a Alerj? Ou seja, lá no STF, tudo começou com um caso estadual, mas pode até ser que a casos estaduais semelhantes não se venha a aplicar, doravante, a orientação do próprio STF. Isso mais parece uma daquelas trilhas sonoras dos velhos desenhos de Tom e Jerry, fazendo fundo às idas e vindas das perseguições do maldoso gato ao simpático ratinho. O STF se enredou em uma tal confusão, “como a hera na pedra”, que fica difícil, hoje em dia, saber onde, afinal, está a tal anomalia, pelo menos, institucional.

E não seria, então, o caso de Suas Excelências, no mínimo, dizerem a Eduardo Cunha: “Desculpa, erramos”?!