sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Charge do dia 27/10/2017

O mal-estar urinário de Temer e as dores morais dos brasileiros

O presidente Michel Temer, ao deixar na tarde de quarta-feira o hospital do Exército, de Brasília, onde havia sido internado com urgência, escreveu: “Tive um mal-estar e já estou bem”. O tormento doloroso de Temer pertencia à baixa fisiologia corporal. E o que estão sofrendo os brasileiros em meio a uma tempestade política considerada uma das mais graves e decisivas de sua história democrática?

O mal-estar do Brasil de hoje é moral e por isso mais doloroso que o fisiológico de Temer, e não vai bastar a sonda das eleições de 2018 para desobstrui-lo. O mal-estar do Brasil é de esquizofrenia política, como pudemos observar no templo do Congresso na mesma tarde do mal-estar do presidente, quando os deputados decidiam em favor ou contra sua conduta moral.

Se a Casa dos deputados representa o sentir e o querer dos cidadãos que os elegem, o que ali vimos foi um espetáculo de dissociação mental. “Pelo Brasil” alguns deputados votaram sim à salvação de Temer, e pelo mesmo Brasil outros votaram não. Por quem vota o Brasil real, o que sofre a crise criada pelos políticos?

Enquanto as redes sociais e os meios de comunicação ironizavam as cenas, às vezes patéticas às vezes grotescas, de suas senhorias que votavam uma coisa e o contrário pelo Brasil, me golpeava a dúvida de que talvez uma parte da sociedade esteja repetindo o espetáculo de esquizofrenia da Câmara dos Deputados.

Em menos de um ano, 140 milhões de brasileiros deverão pronunciar-se sobre o bem desse mesmo Brasil pelo qual votaram os congressistas, em eleições presidenciais que se apresentam entre as mais cruciais e perigosas de sua história democrática.

Nas urnas é possível que se antes não fizerem uma profunda reflexão sobre o que querem para seu futuro e o de seus filhos muitos brasileiros repitam o mesmo paradoxo dos deputados, votando, indistintamente, “pelo bem do Brasil”, em candidatos tão opostos como o duro e direitista Bolsonaro e o populista sindical Lula, como Ciro Gomes, amante da testosterona, e a delicada Marina Silva, ou entre o clássico e viscoso Alckmin, imune a todas as aflições, e o saltimbanco Dória, que parece governar mais na nuvem virtual do que no asfalto da rua.

Enquanto o Brasil não for capaz de perceber que não é possível que a mesma pessoa, como foi Temer para os deputados, seja igual para o bem ou para o mal do país, porque todos são iguais, continuará a haver uma desorientação ideológica que pode conduzir a elegerem com seu voto um Congresso com a mesma indecência do de hoje.

O espetáculo que o Brasil está vivendo com os representantes que elegeu para que o governe deveria fazer todos refletirem antes de colocarem no ano que vem seu voto nas urnas. Um conselho prático para tentar desobstruir a democracia ferida seria não votar, por motivo algum, naqueles sobre os quais pese, não uma condenação criminal, mas até uma sombra de corrupção ou de flerte como autoritarismo.

Outra receita seria exigir dos candidatos que se comprometam a abolir, como primeira medida, o tão cobiçado “foro privilegiado”, que coloca os políticos corruptos sob as asas protetoras da grande mãe do Supremo Tribunal Federal, sempre compassivo e vigilante para que os políticos não tenham de sofrer a humilhação da cadeia, a mesma em que amontoam as pessoas comuns.

Parece que Temer, que em seus longos anos de política nunca pôde imaginar chegar ao Planalto, se conformaria, ao deixar a Presidência, em ser um ministro a mais daquele que vier a substituí-lo. Parece que Dilma, depois de ter sido considerada uma das mulheres mais influentes do mundo, não se sentiria apagada sendo senadora, e que para Aécio Neves, que antes de explodir em escândalos de corrupção aparecia como um dos candidatos-chave nas presidenciais de 2018, bastaria ser eleito simples deputado. E já vimos Lula, o presidente mais popular e aclamado dentro e fora do país, aceitar, embora tenha abortado o projeto, um ministério da então presidenta Dilma. Tudo para esses personagens poderem se abrigar no seio doce e seguro do Supremo, sinônimo de indulgência plena de seus pecados.

Diante do espetáculo do obscurantismo que está oferecendo a elite política e até uma parte da sociedade envenenada pela luta ideológica, que os brasileiros ainda não contaminados pelo vírus da discórdia saibam apostar no Brasil da normalidade política. Por um país com uma só ética, sem privilégios para os já privilegiados, e com o ouvido alerta aos queixumes mudos dos esquecidos à própria sorte, aos desprovidos de sua dignidade ou aos que estão de novo resvalando para a pobreza. Os satisfeitos já sabem muito bem defender-se entre si e deter as “sangrias” que os acometem. Eles nunca perdem.

Procurando no lugar errado

A capa de anteontem, 25/10, deste jornal é uma síntese perfeita do drama brasileiro. Sob a manchete “Itália faz alerta para a Lava Jato” uma foto ocupando 80% da largura da primeira página por metade de sua altura mostrava Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo, respectivamente promotor e juiz envolvidos na “Mãos Limpas”, a operação de combate à corrupção que, encerrada ha 25 anos, tinha chacoalhado a Itália pelos 13 anos anteriores, e Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, promotor e juiz à frente da nossa Lava Jato, em campo ja ha 4 anos.

A primeira frase da reportagem que resumia o que se apurou no evento que reuniu os quatro na sede do jornal, era “A corrupção na Itália, 25 anos depois, voltou ao mesmo nível de antes das investigações”. E seguia o texto relatando que os protagonistas da operação brasileira estão cientes de que ela não basta para salvar o país e cobram “a aprovação de reformas políticas, estruturais e de educação” para chegarmos a resultados concretos no campo do combate à corrupção.

Mas aí começa o problema. Que reformas, exatamente?

Por baixo de cada personagem na foto havia uma frase destacada. Gherardo Colombo dizia que “Não é que faltavam provas, é que o sistema de corrupção era muito forte a ponto de proteger-se”. Relacionando Brasil e Itália, Piercamillo Davigo registrava que: “Todos sabem que quem faz as listas eleitorais controla os partidos. Ha filiações compradas”. Deltan Dallagnol emendava que “O Parlamento continua legislando em causa própria; ministros do STF soltam e ressoltam presos”. A Sérgio Moro, mais pé-no-chão, atribuiam um “Claro que como cidadão ha tensão sobre a eleição se aproximando, mas eu vou seguir fazendo o meu trabalho”.

A frase que primeiro chamou minha atenção foi a de Piercamillo. E dentro dela, aquele “todos sabem”. Quando a “Mãos Limpas” chegou ao esgotamento pelo cansaço da plateia com a falta de resultados concretos ja faziam quase 80 anos que a primeira grande operação de sucesso de uma nação unida contra a corrupção tinha terminado nos Estados Unidos. E a primeira bandeira dela, na longínqua virada do século 19 para o século 20, foi precisamente a da adoção da reforma sem a qual “todos sabiam” já àquela altura que nenhuma outra poderia chegar a bom termo no campo da política: a despartidarização das eleições municipais de modo a abrir o sistema à irrigação permanente de sangue novo e a instituição de eleições primárias diretas em todas as demais para tomar dos velhos caciques corruptos o controle da porta de entrada na política.

Daí saltei para a frase de Gherardo, da qual a de Deltan é praticamente um complemento. As duas são meras constatações de uma realidade que nos agride em plena face de forma cada vez mais violenta diariamente. Mas nenhuma aponta o que interessa que é de onde vem, essencialmente, essa força que permite aos políticos “proteger-se” e “legislar em causa própria” e aos juizes “soltar e ressoltar presos” impunemente. Foi essa a segunda bandeira da reforma americana. É de velho como ela que se sabe que essa força decorre, antes de mais nada, da intocabilidade de seus mandatos, problema que remediou-se pra lá de satisfatoriamente dando-se poder aos eleitores para retoma-los a qualquer momento com o “recall” e livrar-se dos juizes que “soltam e ressoltam presos” desconfirmando-os na primeira ação imprópria com a instituição de eleições diretas para a confirmação ou não de juizes em suas funções (“retention election”) a cada quatro anos. A receita se tem mostrado infalível para agilizar a prestação de justiça e fazer esses servidores calçarem as sandálias da humildade e esquecerem para sempre o hábito de se auto-atribuirem privilégios como convém às democracias. Quanto aos promotores, assim como todo funcionário envolvido com prestação de serviços diretos ao público ou, sobretudo, com fiscalização do sistema e com segurança tais como xerifes e até policiais em um grande numero de cidades e estados americanos, esses só chegam ao cargo por eleição direta. Um santo remédio para coibir abuso de poder e violência policial e para incentivar a aplicação da firmeza necessária contra o crime.

Não sei quanto aos italianos, mas Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, ambos ex-alunos de Harvard, certamente conhecem essas soluções e já ouviram pelo menos alguma coisa sobre a história da sua implantação. E, no entanto, quando chega a hora de propor remédios para o Brasil, ficam só no mais do mesmo, com dezenas de medidas que reforçam os seus próprios poderes quando o argumento indiscutivel do resultado, que eles chegaram pessoalmente a viver e experimentar, diz claramente que a resposta não está em reforçar os poderes estabelecidos, já pra lá de excessivos no Brasil mas, ao contrário, em fragiliza-los para aumentar os do eleitor.

O problema que matou a “Mani Puliti” como poderá matar a Lava Jato é, portanto, o pouco que ela se propôs ser face ao muito que poderia e deveria ter desencadeado.

Cabe, finalmente, examinar a posição do próprio jornal nessa discussão. Ainda que se destaque pelo esforço para não se submeter à “patrulha” que zurra e escoiceia ante qualquer esboço de argumento crítico racional, com o que ameaça matar não só a Lava Jato mas todo o ensaio brasileiro de democracia, também O Estado não ultrapassa o limite que a latinidade daqui ou de além mar se impôs.

O brasileiro não sabe o que são primárias diretas, “recall”, “retention election” de juizes, federalismo, referendo e iniciativa legislativas não golpistas. Nunca viu uma cédula de uma eleição americana com as dezenas de decisões que se submete diretamente ao eleitorado na carona de cada eleição. Não sabe o que é o sistema de City Manager e porque esse é o modelo de gestão municipal que se generalizou no país que, por dispor desses instrumentos, tornou-se o mais próspero, o mais inovador e o mais livre que a humanidade já juntou sob uma única bandeira.

A imprensa brasileira só se permite difundir, quando não festejar, aquilo que fracassou.

Imagem do Dia

Fancy - Taimu Mountain @ Fujian, China
Monte Taimu, Fujian (China)

A terceira onda

Passado o ciclo de denúncias contra Michel Temer — supondo que o Ministério Público pare por aí — a questão que se coloca agora não é como ''virar a página'', mas como retirar o Brasil do caderno de ocorrências policiais e do buraco político em que se encontra. Compreender como esse processo de desventuras em série — que se dá, pelo menos, desde 2013 — se conformou na política nacional; o que gerou de novo, o que deve ser descartado e o que pode ser aproveitado é tarefa fundamental. Até para que se decida no que se deve ou não apostar.

Difícil responder, sem, é claro, emitir juízos e preferências aqui e acolá. E, é óbvio, qualquer opinião desta natureza se baseia apenas na intuição, num pessoal modo de interpretar a realidade e na insegurança inerente a qualquer opinião política: não há verdades, menos ainda, certezas. Tudo é mesmo a matreira desconfiança do caboclo a sofismar e suas apostas, ao final. Vamos à leitura do processo:


Já em 2013, quem acompanhava a política há algum tempo sabia que o sistema emborcava. Os ''anos de ouro'' de Lula e Dilma foram um período em que não se fez o necessário para renovação de um sistema que — bastava olhos de ver — caducara. Ao contrário, os governos do PT negligenciaram evidentes problemas nesse campo. Deslumbrados com o noviciado do poder, encantaram-se de si mesmos e do sucesso vago, frouxo e frágil na economia. Assim, compuseram, na política, com o que estava podre e se contaminaram com ele. Ilusória a euforia; o bom momento foi péssimo conselheiro.

Com o tempo perdido, o relógio da política girava acelerado na direção do colapso: em meados daquele ano, as ruas foram ocupadas para demonstrar o mal-estar latente. Por conta de R$ 0,30, mas não só, um barril de críticas e ressentimentos explodiu. A negligência, esta mais geral, não apenas do PT, com a qualidade dos serviços públicos também gritou nas avenidas: no geral, o Brasil fazia estádios ''padrão'' FIFA, mas tratava displicentemente, em todos os níveis da Federação, a educação, a saúde e a segurança públicas.

Por fim, a repressão da polícia paulista às manifestações só fez piorar a situação e elevar o número de pessoas dispostas a se mobilizar, agora, “apenas” pelo sagrado direito de protestar.

***

De fato, 2013 liberou energias, movimentos e taras guardadas; sinalizou avanços, mas constituiu também retrocessos. O fato é que a sociedade real despertara do sonho de marketing do Cristo voador, da capa da The Economist. Dividida, fragmentada em visões diferentes e opostas de mundo, a sociedade passou a se olhar no espelho e não gostar de seu reflexo contraditório e inacabado.

Não, o Brasil não era, não senhor, um paraíso de esquerda; havia uma miríade de agrupamentos liberais, conservadores e autoritários, muito mais do que poderia supor uma vã estética popular/populista. Eleições à esquerda, com consenso econômico e pauta progressista, como a de 2002, entre Lula, Serra, Ciro e Garotinho eram evidentemente artificiais. Expressavam condicionantes momentâneos, não determinantes estruturais.

O fato é que dali em diante surgiram grupos formados por gente jovem, até ali ausente do palco político. Uns, em busca da ampliação de liberdades, outros corporativistas; também havia os truculentos e autoritários, assim como anarquistas. Uma miríade de grupos e sentimentos que, gostem ou não, representava a pluralidade e o conflito da sociedade real.

Com o impulso das redes sociais — um fenômeno paralelo e, no entanto, avassalador — o pacto social explodiu. O país caminhou para a radicalização e a polarização obstruiu o diálogo. Frágil, com enorme déficit de credibilidade e incapaz de representar, o sistema político, ao invés de conduzir o processo, foi arrastado por ele.

***

Mas, o enredo da história guarda ironias dialéticas: ao mesmo tempo, vários desses novos movimentos se deixaram cooptar por personagens políticos e forças partidárias. O processo de mudança ficou travado, até que numa segunda onda desembocasse no impeachment de Dilma Rousseff. Mas, nem por isso avançou no caminho mais desafiador da remoção dos escombros do sistema político arcaico, que tem sobrevivido a quase tudo no país. E, ao invés de significar o novo, parte da explosão iniciada em 2013 tem servido de escudo e biombo para o velho.

Essa constatação, exasperante para muitos, gera ambiguidade: uns se decepcionam sem esperança e simplesmente abandonam a arena: ''política é o fim''; outros olham apenas para a economia e se dão por momentaneamente satisfeitos. Já há outros que, no entanto, insistem e reafirmam a necessidade de superar o caos e saltar o abismo.

Jovens insatisfeitos com as condições gerais do país ainda buscam a transformação do sistema e a superação do atraso. Não aderiram ao governo Temer, nem atribuem importância absoluta à economia; não buscam no passado resposta ao medo que possuem do futuro. Entendem somente que, sem melhorias na política, tudo o mais será como baldear o oceano com as mãos.

Críticos, mas nem por isso radicalizados; bem formados, mas tampouco dogmáticos resolveram se articular em novos movimentos sociais; pode-se dizer que são a terceira onda do processo despertado em 2013. Já não mais ingênuos para acreditar que tudo se resolva com a troca de personagens, quase sempre tão iguais; tampouco sucumbem ao ceticismo — ainda enxergam a mudança como uma possibilidade.

Menos preocupados com seus ganhos, em si, do que com a transformação mais ampla do sistema político, estão dispostos a buscar, por dentro, as mudanças a que são impelidos pela pressão de fora. Pretendem disputar eleições, eleger uma nova geração de parlamentares, mudar a mentalidade. Constituir uma nova elite política. Utopia é o lugar onde se quer chegar.

Um desses agrupamentos, mas não o único, é o Movimento Agora! Conheço, de estrada, vários de seus membros. São militantes da política e não de partidos, são progressistas nos costumes e políticas sociais; liberais tanto quanto possível em economia, sem se perderem no dogmatismo. São idealistas, mas também pragmáticos. Terão sucesso na start-up política que empreendem? Somente o tempo e os resultados dirão. Mas, partem de princípios que merecem respeito, pelo menos a atenção.

Recentemente, foram, porém, envolvidos numa polêmica em torno do nome do apresentador de TV, Luciano Huck. Cogitado e incentivado a disputar a eleição presidencial ano que vem, Huck, em paralelo, anunciou sua adesão ao Agora! e foi o suficiente para que se insinuasse um Movimento que se sujeitara a ser aparelhado do astro da Globo. Polêmica besta porque nada é tão simples assim.

Conversei com o pessoal do Agora! O que ouvi me pareceu de bom senso: que motivos teriam para fechar as portas a Luciano Huck? O apresentador, assim como muitos outros famosos, se aproximou das ideias do agrupamento; aderiu a um processo que precede ao balão de ensaio em torno de seu nome como candidato presidencial. É jovem, possui energia, tem capacidade de comunicação e é articulado; aderiu — não foi ''aderido''. Por quais motivos haveria de ser vetado?

Será candidato a presidente no ano que vem? Quem saberá responder, ao certo? Talvez nem ele mesmo. Intenção não paga o pão. E, se vier a ser, garantem os membros do Agora!, esta é uma questão de Luciano Huck, não do movimento, que não quer se confundir com nenhum partido em particular e nem com projeto presidencial em especial. O Agora!, dizem, não tem dono: possui membros e colaboradores, é uma ideia e uma intenção prática. Não é um feudo.

Mais uma vez: somente o tempo e os resultados dirão se o agrupamento pode vir a ser isso tudo mesmo. O que parece descabido é que movimentos desse tipo, como uma terceira onda de 2013, sejam imediatamente desqualificados pelo ceticismo e pela a antipolítica. É necessário que se lhes dê voz e espaço para que digam e demonstrem ao que vieram. Estão seriamente preocupados em expandir limites; almejam crescer a partir da diversidade: social, econômica, étnica, de gênero. Por que não?

Um país que ainda concede atenção a personagens e partidos carcomidos pelo tempo, superados pela história, não deveria — e nem pode — virar as costas a qualquer possibilidade de inovação, de renovação, de transformação que surja de suas contradições. É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão. No breu em que nos encontramos, qualquer-qualquer centelha já pode ser um alento de luz.

Carlos Melo 

Vergonha que não se tem aqui

Temos de deixar de fingir que a degradação de nossa política e as ações de alguns de nosso Executivo são normais. Não são. Quando esse comportamento emana do mais alto de nosso Governo, é perigoso para nossa democracia. Projeta uma corrupção do espírito e fraqueza. Os jovens estão olhando. Que faremos quando nos perguntarem ‘por que você não fez nada?’ Eu hoje me ergo para dizer: já basta
Jeff Flake, senador republicano pelo Arizona, ao anunciar que  não se candidatará à reeleição

O obscuro uso do Facebook e do Twitter como armas de manipulação política

Tudo mudou para sempre em 2 de novembro de 2010, sem que ninguém percebesse. O Facebook introduziu uma simples mensagem que surgia no feed de notícias de seus usuários. Uma janelinha que anunciava que seus amigos já tinham ido votar. Estavam em curso as eleições legislativas dos Estados Unidos e 60 milhões de eleitores vieram aquele teaser do Facebook. Cruzando dados de seus usuários com o registro eleitoral, a rede social calculou que acabaram indo votar 340.000 pessoas que teriam ficado em casa se não tivessem visto em suas páginas que seus amigos tinham passado pelas urnas.

Dois anos depois, quando Barack Obama tentava a reeleição, os cientistas do Facebook publicaram os resultados desse experimento político na revista Nature. Era a maneira de exibir os músculos diante dos potenciais anunciantes, o único modelo de negócio da empresa de Mark Zuckerberg, e que lhe rende mais de 9 bilhões de dólares por trimestre. É fácil imaginar o quanto devem ter crescido os bíceps do Facebook desde que mandou para as ruas centenas de milhares de eleitores há sete anos, quando nem sequer havia histórias patrocinadas.

Há algumas semanas, o co-fundador do Twitter, Ev Williams, se desculpou pelo papel determinante que essa plataforma desempenhou na eleição de Donald Trump, ao ajudar a criar um “ecossistema de veículos de comunicação que se sustenta e prospera com base na atenção”. “Isso é o que nos torna mais burros e Donald Trump é um sintoma disso”, afirmou. “Citar os tuítes de Trump ou a última e mais estúpida coisa dita por qualquer candidato político ou por qualquer pessoa é uma maneira eficiente de explorar os instintos mais baixos das pessoas. E isso está contaminando o mundo inteiro”, declarou Williams.

“Citar a coisa mais estúpida que qualquer político diga é uma maneira de explorar os instintos mais baixos das pessoas. Isso está contaminando o mundo inteiro”, declarou o fundador do Twitter

Em diversas vezes, a arte reflete algumas questões sociais e problemas que passamos em nosso cotidiano. Com todo o crescimento da internet e a alta da tecnolog
Quando perguntaram a Zuckerberg se o Facebook tinha sido determinante na eleição de Trump, ele recusou a ideia dizendo ser uma “loucura” e algo “extremamente improvável”. No entanto, a própria rede social que ele dirige se vangloria de ser uma ferramenta política decisiva em seus “casos de sucesso” publicitários, atribuindo a si mesma um papel essencial nas vitórias de deputados norte-americanas ou na maioria absoluta dos conservadores britânicos em 2015.

O certo é que é a própria equipe de Trump quem reconhece que cavalgou para a Casa Branca nas costas das redes sociais, aproveitando sua enorme capacidade de alcançar usuários tremendamente específicos com mensagens quase personalizadas. Como revelou uma representante da equipe digital de Trump à BBC, o Facebook, o Twitter, o YouTube e o Google tinham funcionários com escritórios próprios no quartel-general do republicano. “Eles nos ajudaram a utilizar essas plataformas da maneira mais eficaz possível. Quando você está injetando milhões e milhões de dólares nessas plataformas sociais [entre 70 e 85 milhões de dólares no caso do Facebook], recebe tratamento preferencial, com representantes que se certificam em satisfazer todas as nossas necessidades”.

Paisagem brasileira

Rio Piabanha (1950), Edgar Walter

Teorias conspiratórias, dois pesos e duas medidas

Não repita isso perto das crianças, por favor, mas o ex-deputado federal Eduardo Cunha, que foi cassado no ano passado e habita atualmente uma cela de cadeia, tem razão. Não conte para as crianças, mas o ex-senador Delcídio do Amaral, cassado por unanimidade também no ano passado, também tem.

Depois que o Senado Federal, na semana passada, livrou a cara do senador Aécio Neves, devolvendo-lhe o mandato do qual ele tinha sido suspenso pelo Supremo Tribunal Federal, tanto Cunha como Delcídio se declaram injustiçados. Os dois alegam que teriam direito de receber o mesmo tratamento. Nenhum deles é campeão de ética, como todos sabemos. Nenhum deles pode ser tomado como um modelo de transparência e de impessoalidade no trato com a coisa pública. Nenhum deles tem a reputação ilibada que se exige daqueles que podem pontificar sobre assuntos da Justiça. Mas, ao menos nessa parte, eles têm motivos para protestar.


Tudo bem que, na política brasileira recente, essa história de parlamentares, ministros e governantes se dizerem perseguidos perdeu toda a credibilidade. Todos os tais homens públicos que têm problemas com a polícia vestem imediatamente o papel de vítima e se põem a protestar contra as conspirações terríveis que os sabotam. Consta que um deles, o ex-ministro Geddel Vieira Lima, tem desempenhos dramáticos notáveis, chegando mesmo a verter lágrimas autênticas em depoimentos plangentes. Lula e seus assessores repetem o tempo todo que há um complô partidarizado envolvendo policiais, procuradores, juízes e jornalistas com o único objetivo de tirá-lo da cédula nas eleições do ano que vem. É um inocente perseguido.

O chefe de Estado Michel Temer faz muxoxos no mesmo diapasão: teria sido alvo de uma traiçoeira molecagem do ex-procurador-geral, obcecado com a ideia de derrubar o presidente da República. Temer acusa de estar conluiado com o ex-procurador um empresário de nome Joesley, a quem agora chama de bandido, e que, até anteontem, era seu amigão do peito. Esse bandido (ou empresário), de gravador no bolso, registrou tenebrosas e cavernosas inconfidências de Temer. Gravou suas falas vagas e, principalmente, gravou seus silêncios mais do que comprometedores. Entremeados de “ahams” e “hums”, os silêncios de Temer dizem mais que mil palavras. A fita de Joesley é explosiva menos pelo que Temer diz e muito mais pelo que Temer escuta sem demonstrar a mínima contrariedade.

Aécio também posa de mártir, como um São Sebastião ensanguentado, ele que também foi gravado pelo mesmo empresário (ou bandido) dizendo que só confia em quem pode mandar matar. Ou, em suas próprias palavras: “Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer delação”. Talvez Aécio prepare uma autobiografia: “O injustiçado que falava palavrões”.

O interessante é que tantas teorias conspiratórias se anulam umas às outras. É cartesianamente impossível que as mesmas instituições que se articulam em complôs inomináveis para derrubar Lula sejam as mesmas que planejam na calada da noite a derrocada desumana de Temer, que urdem a ruína cruel de Aécio, que maquinam a condenação injusta de Geddel, que preparam a desgraça imerecida de Delcídio e a malhação interminável de Cunha. Cada condenado, cada réu, cada investigado tem sua própria teoria conspiratória. Como cada uma contradiz as demais, o ridículo de todas acaba aparecendo com a clareza de uma prova documental. São todas ridículas.

Fora isso, num ponto, ao menos num ponto, Delcídio e Cunha têm sua razão para se indignar. “Há provas de que Aécio é culpado”, declarou Delcídio em entrevista à Rádio Guaíba, de Porto Alegre, na quarta-feira (18). “Infelizmente, acrobacias jurídicas livraram a cara do Aécio Neves”, prosseguiu. “No meu caso, nem uma perícia dos áudios foi realizada. Não pude me defender.” Delcídio do Amaral pode estar errado em muita coisa que fez, mas tem legitimidade para se sentir passado para trás. Existe algo de dois pesos e duas medidas no ar.

Eduardo Cunha preferiu se manifestar num artigo, publicado na quinta-feira (19), no jornal Folha de S.Paulo. O texto que ele assina é enroladíssimo e se perde num cipoal de minhocagens supostamente jurídicas que mais confunde do que esclarece as coisas, mas, em resumo, Cunha protesta por não ter podido levar ao plenário da Câmara uma decisão do Supremo que o afastou do mandato e da presidência da Câmara. Por que Aécio pode e ele não pôde? Nessa pergunta, ele tem um ponto. Outra vez, existe algo de dois pesos e duas medidas no ar. Só não vá dizer para as crianças que Eduardo Cunha está certo. Elas podem entender errado.

Justiça à moda

Resultado de imagem para gilmar Mendes e o crime charge

Vossa excelência vai mudando a jurisprudência de acordo com o réu. Isso não é estado de direito, é estado de compadrio. Juiz não pode ter correligionário
Luiz Roberto Barroso, ministro do STF, ao "colega" Gilmar Mendes

Erro grosseiro

A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, fará na semana que vem sugestões ao governo para que altere o conteúdo da portaria sobre o trabalho escravo, portaria que ela mesma classificou de retrocesso. A portaria determina, entre outras coisas, que a inclusão de empresas na lista suja do trabalho escravo dependerá de ato do ministro, o que tira autonomia da área técnica. Também muda procedimentos de fiscalização, tornando mais difícil a comprovação do ilícito, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A intervenção da procuradora será a única que o governo acatará, dizem líderes da base aliada do presidente Michel Temer. Portanto, a portaria será modificada, mas mantida. É provável que Raquel Dodge, uma militante dos direitos humanos, deixe a portaria impecável do ponto de vista legal.

O problema para o governo é que depois de mais um erro tão gritante, não tem Raquel Dodge que dê jeito. A OIT anunciou ao planeta que o Brasil não é mais referência no combate ao trabalho escravo, a oposição encontrou mais uma justificativa para acusar o governo Temer de revogar a Lei Áurea, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou que limitar a definição de trabalho escravo é inaceitável. Para piorar, representantes da União Europeia sinalizaram que a portaria pode prejudicar a compra de produtos brasileiros, pois o bloco rejeita mercadoria que pode ter sido produzida por escravos.

Enfim, o governo de Michel Temer, que quer ser reconhecido pela História como reformista, corre o risco de lá entrar com outra denominação, a de obscurantista.

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Pior é que esse não é o primeiro erro mortal do governo quanto às suas próprias iniciativas. Antes, decreto de Temer que autorizou a mineração na Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca) deu a impressão de que o governo havia liberado geral o desmatamento na Amazônia. Não adiantou dizer que projetos minerais, no fundo, têm maior capacidade de proteger o meio ambiente do que a pecuária, que as reservas indígenas e ambientais seriam respeitadas. A Temer só restou revogar o decreto.

Numa entrevista ao site Poder 360, o presidente Michel Temer defendeu a portaria do trabalho escravo, disse que será mudada por Raquel Dodge e ofereceu alguns exemplos de abusos cometidos por fiscais nos laudos a respeito do trabalho escravo. Num deles, o empresário foi enquadrado como patrocinador do trabalho escravo porque o beliche superior não tinha proteção lateral ou escada. Noutro, porque os chuveiros não dispunham de suportes para sabonete e toalha. Em mais um, porque os locais destinados aos extintores de incêndio não tinham sinalização na cor vermelha. De fato, são três casos de abuso. Não dá para dizer que esse tipo de falha é sinal de escravidão.

Acontece que a divulgação da portaria assinada pelo ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que também é deputado federal pelo PTB do Rio Grande do Sul, foi tão mal feita que todas as iniciativas para se pôr um pouco de ordem no trabalho dos fiscais se tornaram inúteis. O tema, importante para as relações de trabalho, foi tratado de forma tão desequilibrada que o Brasil, mais uma vez, pode estarrecer o mundo, agora pelo trabalho escravo.

Os brasileiros poderiam estar envolvidos em outro debate: como o País vai pagar sua dívida com a população de origem africana? Seus bisavós foram trazidos para o Brasil à força e escravizados. Os descendentes continuam mal remunerados quando têm emprego, sua juventude morre por assassinatos muito mais do que a juventude bisneta de europeus. Se não tiveram chances no passado, têm menor expectativa de futuro.

Mas, não. O Brasil está envolvido é com o tema do trabalho escravo. Convenhamos, ninguém merece.

Gente fora do mapa

RAZÃO DE VIVER....

Temer encolheu, e 2018 o deixará ainda menor

Depois de comprar o enterro da segunda denúncia criminal da Procuradoria-Geral da República, Michel Temer disse que a verdade venceu. Conversa fiada. O que prevaleceu foi o fisiologismo. A verdade continua encoberta pelo véu da impunidade, que só será levantado quando Temer deixar a Presidência e for realmente processado. Até lá, Temer terá de lidar com a nova verdade que o cerca. Ele se tornou um personagem menor. Diminuiu entre uma denúncia e outra. Tem agora 251 deputados apoiadores —menos da metade da Câmara.

Considerando-se que Temer precisaria de 308 votos para aprovar na Câmara uma reforma previdenciária que sua equipe econômica considera vital, o presidente está em apuros. Sobretudo porque seu nanismo tende a aumentar à medida que se aproxima o ano eleitoral de 2018. Temer ficou parecido com a personagem de uma história do escritor Josué Guimarães —uma mulher que diminuía diariamente de tamanho.

Para evitar que a personagem percebesse o seu encolhimento, os familiares diminuíam as dimensões dos móveis. Serravam os pés das mesas e das cadeiras. Se não conseguir concluir suas reformas econômicas, Temer chegará ao final do mandato dormindo numa caixa de fósforo. Ele dirá que está tudo normal. Mas estranhará o curioso fenômeno que transformará seu filho, Michelzinho, num gigante.

Quem é o dono, ou quais os donos, dos 51 milhões de reais no apartamento?

A pergunta era indispensável nos debates da Câmara Federal em torno da liberação do pedido para que o presidente Michel Temer fosse julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Não houve intensidade na indagação e muito menos surgimento de uma resposta lógica sobre a descoberta do tesouro de Salvador e tampouco a respeito de quem é o dono ou quais os donos da fortuna fixada pelas lentes dos jornais e das emissoras de televisão. Entretanto a verdade a cerca da existência de tão elevada quantia destrói o argumento falso de que faltaram provas para configurar a corrupção denunciada e objeto da votação.

Aqueles que sustentaram que a corrupção é uma peça fictícia evidentemente tiveram que romper com suas próprias consciências em face de tão forte evidência, incluída no longo panorama crítico que envolve o Brasil. A pergunta simplesmente até o momento encontra-se à espera de uma resposta.


Um caso profundamente singular, o de que os milhões de reais não possuem dono, estando seus proprietários perplexos com o montante do tesouro descoberto num apartamento da capital baiana, por coincidência, cedido por um amigo dos irmãos Geddel e Lúcio Vieira Lima para armazenar objetos pessoais.

Tudo leva a crer que o ex-ministro do governo Michel Temer, hoje prisioneiro à disposição da Justiça seja, um dos proprietários. Suas impressões digitais foram encontradas no estoque montado por pagamentos de fontes diversas, mas que culminavam convergindo para um só endereço. O endereço logicamente seria outro que não o do edifício no bairro nobre da capital da Baia. Da mesma forma, outra pergunta: “Qual seria o endereço da mala transportada na corrida de Rocha Loures numa noite paulista?

As indagações persistem. É de se supor inclusive que a Polícia Federal possa publicar – no Globo, na Folha de São Paulo e no Estado de São Paulo – um anúncio avisando que o proprietário ou proprietários da importância se apresentem em busca do que lhes pertencem.

Ironia à parte, o Diário Oficial de 25 de outubro, véspera da votação, publicou o novo Refis, a lei de regularização dos débitos ficais para com o Tesouro Nacional. As condições são as melhores possíveis uma vez que a lei prevê a redução de 90% dos juros de mora e das multas aplicadas aos devedores. Para as pessoas físicas, a primeira parcela mensal será de 200 reais. Para as empresas, a parcela mensal inicial será de 1.000 reais. E o valor das seguintes prestações mensais será corrigido pelos índices oficiais de inflação.

Quer dizer: um ótimo negócio deixar de pagar imposto e, por exemplo, aplicar a importância na compra de notas do Tesouro corrigidas pela taxa Selic.
Para se ter uma ideia da dimensão comparativa das dívidas, deve-se ler reportagem de Marta Beck, O Globo, e a matéria de Adriana Fernandes e Anne Warth, O Estado de São Paulo, nas edições desta quinta-feira.

Com a lei de parcelamento das dívidas, a receita esperada recuou de 13 para 7 bilhões de reais. Agora a comparação: a venda projetada da Eletrobrás deve render 15 bilhões de reais à União. Assim, praticamente a metade do valor da Eletrobrás é equivalente à redução das dívidas para com a Fazenda Nacional. Uma discrepância evidente. Um dimensionamento incrivelmente sem lógica.

Noite dos mascarados

Não eram como aquelas máscaras charmosas parecendo de louça de tão caprichado acabamento que nem aquelas máscaras dos carnavais de Veneza, a cidade aguada que ainda se mantém como se flutuasse sob suas histórias e lendas na geografia da Itália.

Máscara na origem, quero dizer no teatro grego, e também no teatro romano, servia para encobrir o rosto do ator que no enredo da peça em cartaz daria vida à personagem.

Com o tempo, o que se restringia ao teatro, no caso a máscara, ultrapassou as fronteiras dos palcos, ganhou os salões das festas, acobertou anonimatos nas alegrias das ruas e por que não, também, nos assaltos à mão armada.

A máscara dos assaltantes, é claro, dispensa sofisticação ou originalidade, sendo exemplo clássico a dos Irmãos Metralhas que, aliás, parecem trigêmeos, caras e focinhos iguais.



Na Ilha de São Luís houve um tempo em que as alegrias encabuladas ou extravasadas, dependentes de disfarces, sem outra saída, recorriam à máscara.

Eram muitos, nos carnavais, os bailes de mascarados nos subúrbios distantes. Anonimatos em segurança era por ali mesmo. Acontece que tem gente que se esconde atrás da máscara e como se diz sobre os bichanos acabam ficando com o rabo de fora. Ou seja, o que lhes delata é o rabo.

Gordo, magro, baixinho, altão, afinando ou engrossando a voz, por mais confiante que se mostre, o disfarce não convence.

Pelas tantas, os salões cheios, suor escorrendo e encharcando fofões, eis que num tom de voz afeminado um mascarado se dirige ao outro – eu te conheço, carnaval!

(Carnaval era o vocativo com o qual eles ou elas se tratavam entre si. No linguajar deles, equivalente, digamos assim, a vossa excelência, quem sabe?)

Como na marchinha do Chico, "seja você quem for, seja o que Deus quiser", rolavam lances inimagináveis para a moral vigente de então.

Foi quando um Prefeito, o primeiro saído de um parto de urna, vontade do povo, voto direto, achando que iria agradar às famílias em suas sacralidades às descobertas, editou portaria proibindo máscaras nos bailes das periferias.

E não deu outra, - o povão reagiu e se revoltou. Primeiras páginas todo dia, repórteres de rádio nas portas dos bailes entrevistando mascarados. Naquele tempo, como diriam os evangelhos, ainda não havia TV-delivery.

Lembrei-me dos bailes de mascarados na Ilha do Amor enquanto assistia ontem pela televisão o desfile das personas ao microfone no plenário da Câmara dos Deputados declarando voto, sim ou não, ao arquivamento ou seguimento das acusações para tirar dos cargos o atual Presidente da República e dois dos seus mais achegados Ministros, confirmando ou não denúncias do então Procurador Geral da República, aquele que se celebrizou não pelo deixasse de fazer, mas com aquela frase mais adequada hoje a beligerâncias selvagens bem antes da entrada em cena do Caramuru, – enquanto houver taboca, vai haver flecha!

Quando o a tarde cansada da seca parecia bêbada pelos cantos de tanto esperar pela noite com suas invariáveis, nunca se viu tanta raiva mal ensaiada tanto de um lado quanto do outro.

Muita indignação. Como se aqueles atores ou atrizes encenassem uma peça de autoria anônima, quiçá coletiva, mas com direitos autorais reservados a cada um deles, traduzíveis em votos eleitorais. Ledo engano. Diga de lá, Ledo Ivo, meu grande poeta!

Como os antigos carnavalescos da Ilha do Amor, guardei o meu segredo, mas liberando o riso, fazendo de conta que nem conhecia bem de perto muitos deles. Muitos mesmo, apesar das máscaras. Todas iguais.

Edson Vidigal