quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Gente fora do mapa

Poluição na China (Kevin Fraye)


Nos tempos da cólera

Embora ainda faltem uns três meses para a revista Time e o Dicionário Oxford escolherem a palavra do ano, a minha já está escolhida. Contrariando a praxe recente, não é um neologismo ligado à informática, como tweet, hashtag, app (aplicativo), mas um sentimento – ou uma paixão como preferem psicólogos e filósofos, por sinal cada vez mais frequente na internet e no cotidiano de todos nós. Minha palavra do ano é: ódio.

Se os gringos propuserem “hater”, tudo bem: o espírito da coisa estará preservado. Raiva e ira, por motivos óbvios, também servem.

Filólogos e lexicógrafos fazem distinções sutis entre ódio, raiva e ira. Ódio e raiva são vocábulos mais corriqueiros. Apesar de corrompida pelo jargão da Geração X, que fez de irado sinônimo de bacana, legal, a ira tem mais lastro que os concorrentes. A ira é um ódio épico, de dimensão divina, como cólera e fúria. Você não diz “o ódio de Deus”, mas “a ira (ou a cólera) de Deus”; nem traduziria The Grapes of Wrath como As Vinhas do Ódio. 

Avião_ charge Bello
Por acaso desejamos viver num mundo no qual não nos enfurecemos com a escravidão, o racismo e outras injustiças globais?

Sinta-lhe a nobreza: cólera (ou ira) é a primeira palavra da Ilíada, poema épico de Homero, obra fundadora da literatura ocidental. Na tradução de Frederico Lourenço, editada pela Penguin-Cia das Letras, ela é a terceira do verso de abertura: “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles...”. Mas o texto original começa com ela: “Orgé”. Com a cólera do mais obstinado hater da mitologia grega.

As pessoas, em geral, associam a Ilíada ao rapto de Helena de Troia, ao proverbial presente de grego em forma de cavalo de madeira, e ao não menos proverbial calcanhar de Aquiles. A Ilíada relata histórias de míticos combates heroicos e conflitos entre superpoderes (sem mencionar o cavalo), introduz a mais polêmica e danosa chifrada de todos os tempos (Helena foi sequestrada ou corneou Menelau?), porém seu ponto de partida e dínamo narrativo é a cólera, o homérico piti de Aquiles, “que tantas dores trouxe aos aqueus (gregos) e tantas almas valentes de heróis lançou no Hades”.

O melhor guerreiro grego irrita-se com o que considera um ultraje pessoal (perder Briseida, seu butim de guerra, para Agamêmnon, irmão de Menelau e comandante dos invasores espartanos) e recusa-se a continuar lutando numa guerra que já durava quase dez anos. Conflito absurdo, reação desproporcional a um provável caso de adultério. Por mais bela que fosse, Helena não justificava tantos mortos e feridos na esteira de seu resgate. E por mais que Aquiles se julgasse senhor indisputável de Briseida, seu confisco não justificava o abandono das tropas sob seu comando.

“Nenhuma peste teve maior custo para o gênero humano”, avaliou Sêneca em seu diálogo sobre a ira. “De todas as paixões, a mais terrível e violenta”, reiterou o filósofo romano. A história nos ensina que sem ódio, raiva, ira ou equivalente não se combate a barbárie, não se arreda o pé do status quo, não se faz uma revolução, etc. A ira turrona de Aquiles é um desperdício de energia, como aquela fúria condenada por Sêneca: “Desenfreada, alheia ao decoro, esquecida de laços afetivos, persistente e afetada ao que começou, fechada à razão e aos conselhos, incitada aos motivos vãos, inábil em discernir o justo e o verdadeiro”. Ávida por uma vingança, termina por arrastar consigo o vingador.

A raiva domina e consome Aquiles, observa Emily Katz na introdução de seu ensaio sobre os efeitos destrutivos da iracúndia, Enraged (Enfurecido), recém-editado pela Yale University Press (288 págs., US$ 30, só menos 5 dólares no kindle), cujo subtítulo beira a autoajuda histórica: “Por que os tempos de violência necessitam dos antigos mitos gregos”. Se vieram da Grécia as noções básicas de democracia e sufrágio popular, por que não as mais eficazes armas de combate à autocracia, à usurpação do poder e à tirania?

Seus quatro primeiros capítulos abordam os desastrosos efeitos do furor de Aquiles e da violência vindicativa, os demais três tratam dos “perigos da decisão democrática” (pela tragédia de Ajax, de Sófocles) e do “abuso de poder e suas consequências” (à luz de Hécuba, de Eurípedes), acrescidos de uma conclusão sobre “os objetivos da autogovernança”. A tragédia de Sófocles lida, em última análise, com as sequelas de uma decisão moralmente equivocada (a armadura de Aquiles deveria ter ficado com Ajax, não com Odisseu), deliberada no voto.

O livro é bom, didático (certas decisões tomadas democraticamente podem servir mais aos objetivos da tirania e da ignorância do que à justiça e à igualdade), aqui e ali rebarbativo, e bastante oportuno. Se não tivesse qualidades, a grande historiadora britânica Mary Beard não teria aceitado resenhá-lo para o suplemento literário do New York Times. Beard vê com reservas a excessiva fé da autora no “truísmo liberal” de que discutir é sempre melhor do que brigar. Para Anhalt, o incentivo ao debate de ideias foi uma das lições que ao Ocidente legaram os antigos mitos gregos, que, além de guerreiros, tinham de dominar a oratória persuasiva.

Beard duvida que Homero estivesse advogando que vivêssemos sem raiva, estoicamente, pois a ira às vezes não só era, como continua sendo, justificável mas também necessária. “Por acaso desejamos viver num mundo no qual não nos enfurecemos com a escravidão, o racismo e outras injustiças globais?”, indaga a historiadora, vítima de haters desde quando os odientos digitais nem tinham esse nome ainda.

Horror verde e amarelo


(Há uma ) Quase total desgovernança, com sinais visíveis como violência, desordem, populismo e corrupção
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central

Ofensa de Faustão ao Anjo da Guarda não é pecado, é falta de cultura

A piada que Faustão fez com o Anjo da Guarda no domingo passado, durante seu famoso programa na TV Globo que alcança milhões de pessoas, indignou crentes e agnósticos. Entre eles Vera Schettino de Azevedo, que registrou em seu Facebook a afirmação do apresentador: “Amanhã é o dia do Anjo da Guarda. Nem sabia que existia essa porra. Serve para nada isso.”

Não se tratou, na verdade, de nenhum pecado, mas de falta de cultura, já que a figura dos anjos é sobretudo um emblema, o símbolo do amigo fiel que estará a seu lado quando você precisar, não para te julgar, mas para que você não tropece. Tanto é assim que essa figura já se encontrava nas filosofias mais antigas e impregnou todas as artes e a literatura, assim como as teologias, a ciência quântica e até a medicina e a psicologia por seu poder terapêutico e como antídoto contra a solidão.

cemetary angels - Bing Images

Pintores como Michelangelo, Giotto, Guido Reni, Rembrandt e Rafael, autores das grandes obras literárias, desde Dante na Divina Comédia a Jonh Milton em Paraíso Perdido, às obras de Jung, poetas, cineastas, grandes músicos e até astrônomos se interessaram pelos anjos que se infiltraram em todos os estilos arquitetônicos.

Esses seres misteriosos acabaram fascinando criadores como Homero, Rimbaud, Kafka, Dostoiévski, Rilke, Benjamin, Goethe, lorde Byron, Shakespearee tantos outros. Até a internet acabou tocada pelos anjos. Segundo o filósofo Michel Serres, as milhões de mensagens que hoje cruzam as vias da comunicação instantânea são uma metáfora dos novos anjos em busca de pessoas para compartilhar a solidão moderna.

Em meu livro, La Seducción de los Ángeles (A Sedução dos Anjos), da editora Espasa, 2009, depois de investigar todos os códices antigos, laicos e religiosos, para entender melhor a figura do anjo que aparece em todas as religiões, das monoteístas às orientais e africanas, quis encerrar com versos do poeta espanhol Rafel Alberti em sua obra Sobre los Ángeles (Sobre os Anjos). Diz o poeta agnóstico:
Vino el que yo quería…
Para, sin lastimarme,
cavar una ribera de luz en mi pecho
y hacerme el alma navegable.
Os anjos são o reverso do mal. Hoje o mundo está se povoando novamente de demônios disfarçados de intolerância que envenenam nossa convivência, levantam muros e despertam velhos pesadelos de separatismos e falsos nacionalismos. Estamos todos necessitados de um plus de anjos que nos devolvam o gosto da amizade e nos exorcizem da satanidade da discórdia.

Se o grande Faustão conhecesse melhor a literatura mundial sobre os anjos jamais haveria dito que são uma “porra”, ferindo a sensibilidade não só dos simples crentes, mas também do mundo da arte e das letras. Que tal se, no próximo domingo, em seu programa, reivindicasse a figura do Anjo da Guarda que aparece até na obra Enrique VI de Shakespeare? E, cuidado!, porque por trás de uma brincadeira com os anjos pode se esconder a careta perigosa dos demônios.

Renovar é preciso

Que melhorar muito a representatividade na política brasileira é a prioridade zero de qualquer reforma que mereça esse nome, não resta dúvida. Em um Congresso cuja renovação a cada quatro anos é a de prenomes (ou a adição de “Jr.”, “Neto” e “Bisneto” ao sobrenome), urgem mecanismos para eleger deputados que não sejam só herdeiros do poder. Será o “Fundo Cívico RenovaBR” o caminho?

Multimilionários do mercado financeiro e da publicidade parecem crer que sim. Prometem investir R$ 30 milhões do próprio bolso para selecionar, treinar e subsidiar 150 candidatos às eleições de 2018 – e, com sorte, eleger uns 50 deles. Deixando a questão legal para os parágrafos à frente, analisemos sua praticidade. A começar pelo que mais importa numa eleição: o dinheiro.

R$ 30 milhões para 150 candidatos é pouco, muito pouco, pouco mesmo. Na média, os 513 deputados eleitos em 2014 declararam (ou seja, Caixa 1) ter arrecadado R$ 1,4 milhão. É sete vezes mais do que os candidatos do RenovaBR receberiam, a princípio. Essa diferença não é o único problema dos novatos.

A cada denúncia contra Temer, o presidente abre as portas do palácio (do Planalto, de dia; do Jaburu, à noite) para receber dezenas de deputados. E dos cofres, para os que provam lealdade e votam pela permanência de Temer no cargo. São bilhões de reais para executar emendas dos parlamentares ao Orçamento que viram obras e, logo, publicidade para suas campanhas à reeleição.


Somem-se as outras verbas públicas a que os incumbentes poderão ter acesso: o dinheiro do Fundo Partidário e o do tão sonhado por eles Fundo Eleitoral, a verba de gabinete da Câmara e funcionários pagos pelo Congresso mas que trabalham nos Estados.

Sem contar o apoio dos vereadores, deputados estaduais, prefeitos e governadores de seus partidos. Não é à toa que haja deputados no 10º mandato consecutivo e que são pais, irmãos, filhos, netos, bisnetos e tataranetos de deputados. São dinastias com cadeira cativa no Parlamento, umas desde Pedro 1º.

Contra essa máquina do continuísmo os escolhidos pelo RenovaBR terão direito a treinamento em “campanha política, comunicação e autoconhecimento”, além de uma bolsa-candidato para se sustentarem. Uma estrutura comum de “inteligência política”, mídias sociais e assessoria de imprensa lhes prestará serviços. Basta? Obviamente, não.

Os apadrinhados precisarão fazer a sua parte. Devem representar a sociedade civil. Leia-se, vir de movimentos nascidos na esteira das manifestações de 2013 e 2015, como “RAPS”, “Renove”, “Onda Azul”, “Brasil 21”, “Agora!”, “Bancada Ativista” entre outros. Diferentemente do MBL, cujo objetivo principal era sacar o PT do poder, esses movimentos não têm milhões de seguidores no Facebook nem costumam viralizar suas mensagens com facilidade.

Do que eles vão precisar, então? Dinheiro. De sete a dez vezes mais do que os R$ 30 milhões cogitados inicialmente pelo RenovaBR – se quiserem eleger uma bancada capaz de influenciar a próxima legislatura como Eduardo Cunha ou a JBS influenciaram a formação da atual. É dinheiro demais para ser arrecadado só com contribuições de pessoas físicas. Empresas doarão para o fundo? Ou vale a proibição de pessoas jurídicas financiarem candidatos?

Se renovar é preciso, o modo de fazê-lo é ainda impreciso. Se fosse nos EUA, o Fundo Cívico se chamaria Super PAC (literalmente, Comitê de Ação Política). Os PACs revolucionaram as eleições gringas: consagram e destróem candidaturas. Aqui, um deputado do PT antecipou-se ao lançamento do fundo e pediu que a Procuradoria Geral da República investigue o RenovaBR. Os pais do PAC serão colocados à prova antes de seus candidatos.

Imagem do Dia

Camel Canyon, Chad
Camel Canyon (Chad)

O medo como aliado

A impopularidade do presidente Michel Temer, sem dúvida, sobe a patamares inéditos e inusitados, confirmados agora pela contestada, mas ainda assim bastante convincente pesquisa do Instituto DataFolha, cujos índices foram divulgados pela Folha de S.Paulo de ontem e anteontem. Da constatação, já adiantada por outros institutos em pesquisas feitas em outras datas, é possível fazer duas previsões capazes de provocar humores muito diferentes, até díspares, sem forçar muito a barra. A primeira é de que os 5% acachapantes de aprovação a Temer, a mais baixa desde o fim da ditadura militar, em nada alterarão a disposição da Câmara dos Deputados de negar os dois terços dos votos de seus membros para autorizar a remessa da segunda denúncia preparada pelo ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot para ter sequência no âmbito decisório definitivo do Supremo Tribunal Federal (STF). A outra é que todos os esforços anunciados ou prometidos pela equipe de comunicação do Palácio do Planalto resultarão em tiros n’água e em nada alterarão a péssima conta em que a opinião pública tem o presidente e sua equipe de governo.


Poder-se-ia concluir, e haveria boas razões para tanto, que a decisão de pelo menos um terço dos deputados impedir, em discussão já aberta na Casa. que o STF investigue Temer (e não se trata de denunciar, o que o ex-PGR já fez, nem de processar, decisão a ser tomada depois pelo mesmo colegiado) tem uma razão acaciana. A denúncia de Janot é inepta, a ponto de incluir no caudaloso papelório de acusação atos que teriam sido cometidos por Temer antes de assumir a Presidência, o que é uma óbvia tentativa de driblar a Constituição. Esta é uma particularidade tupiniquim injustificável: não há por que blindar o chefe do governo de decisões judiciais sobre crimes que não dizem respeito a ações políticas ou administrativas. Mas dura lex sed lex, no cabelo só Gumex, como se dizia na minha adolescência em Campina Grande. Fato é que, jabuticaba ou não, o vice de Dilma, que lhe tomou o posto após o impeachment, não pode ser incriminado, agora que está no comando da nau dos insensatos, por nada que lhe tenha sido imputado antes da posse. E só poderá a voltar a ser um cidadão qualquer, que pode ser investigado, processado e apenado, após entregar o cargo ao sucessor, seja quem for. Essa poderia ser uma boa razão, mas não é a única nem a mais importante. Nem mesmo se partirmos do pressuposto de que a primeira denúncia de Janot – que dizia respeito a delito atribuído a Temer no exercício da Presidência e ele nunca o negou, de vez que só se defende tentando incriminar o delator que o denunciou em troca de impunidade já fora jogada no lixo pelo mesmo colegiado decisório que o fará agora.

Os militantes do “Fora Temer” também poderão alegar que o perdão liminar que a Câmara na certa dará ao chefe do Executivo será obtido por dois caminhos escusos. O primeiro é o chamado efeito Orloff – você poderá ser eu amanhã –, apontado como principal motivo do fervor temerista dos nada nobres legisladores de plantão. Afinal, imputa-se a um terço dos jurados que decidirão o destino do mandato de Temer estarem à sombra do mesmo alfanje que ameaça o pescoço presidencial, investigações nada honrosas no âmbito da Lava Jato ou em muitos outros processos e escândalos de corrupção na Justiça pelo Brasil afora.

Outra justificativa comum é a de que o número um está agindo como um zero à esquerda em matéria de pudor e moral pública ao comprar a integridade do próprio pescoço recorrendo a prerrogativas injustificáveis do ponto de vista do espírito público. Isso, aliás, está sendo feito de forma pública e notória. Alguns votos de perdão foram comprados com verbas de emendas orçamentárias. E outros nada insignes parlamentares estão sendo seduzidos pelo “perdoai as nossas dívidas assim como nós nos dispomos a perdoar os vossos malfeitos”. O escambo é notoriamente asqueroso, mas nada indica que isso tenha feito algum dito representante do povo seguir o caminho que parece óbvio de que o presidente deve ser investigado até mesmo se for para provar sua inocência. O lamentável episódio do Refis é o exemplo menos refinado desse mercado de pulgas morais. O governo mandou para a Câmara um projeto perdoando dívidas de contribuintes em atraso com o Fisco para amealhar R$ 9 bilhões para os cofres públicos. O bolo é aparentemente modesto se comparado com o tamanho do déficit público. Mas de bilhão em bilhão é que o buraco terá de ser indevidamente tapado. Como uma Sena acumulada, a relatoria do projeto caiu nas mãos do deputado do tradicional PMDB mineiro Newton Cardoso Júnior e ele se encarregou de promover um perdão generalizado a empresas de parlamentares, começando pelas próprias. A Câmara, como se sabe, reproduz hoje em escala sórdida velhos preceitos bíblicos, a alguns dos quais já me referi antes. O filho do ex-governador Newtão adotou o “venha a nós e ao vosso reino nada” do mesmo Pai Nosso, empregando a vertente que se diz ter sido parodiada de uma oração de São Francisco por um ilustre peemedebista dos tempos do dr. Ulysses, Robertão Cardoso Alves: “É dando que se recebe”. Ou seja, Temer manda a equipe econômica deixar de criar problemas para a aprovação do Refis e permite o perdão generalizado à patuleia. Esta, agradecida, manda a denúncia do dr. Janot para o gabinete do dr. Caligari, ou seja, o quinto dos infernos.

Para tornar o episódio do Refis ainda mais sórdido, Newtinho, o filho pródigo de Newtão, incluiu entre os perdoados notórios corruptos, que, afinal, já que estamos nos referindo à Bíblia, também são filhos de Deus. No governo, na equipe econômica, no Parlamento, na oposição e pelo País afora, muita gente se fingiu de surpreendida. E alguns mais hipócritas fizeram o papel de indignados de fancaria. Mas só se saberá se os coitados dos corruptos serão excluídos do lado direito do pai dos devedores depois que for votado o último destaque do texto legal do tal do Refis.

Toda essa descrição já parece bastante completa para explicar, embora não justifique, o perdão liminar que os velhos amigos de Temer na Câmara – que Sua Excelência, aliás, já presidiu – na certa concederão ao bom companheiro. Mas ainda há mais. Preste atenção num pormenor da notícia da pesquisa da DataFolha para verificar que há uma razão ainda mais forte do que todas. De acordo com o levantamento, em julho do ano passado, dois anos após o dr. Michel ter assumido o posto máximo, sua rejeição era de 31%. E daí para cá nunca parou de crescer: foi para 61% em abril, 69% em julho e agora, os inusitados 73%, Os que consideram o governo regular são 20%. Numa escala de 0 a 10, a média do governo hoje é 2,5. Dilma, em abril, antes do impeachment, tinha 63% de reprovação e 13% de aprovação.

Há, contudo, um índice que favorece o vice que assumiu a cadeira dela. O número dos que concordam com o “Fora Temer” era de 65% em julho, mantém-se amplamente majoritário, mas caiu para 59%. Os que preferem sua permanência passaram de 30% em abril para 37% agora. Os seis pontos porcentuais a menos da rejeição e os sete a mais da aprovação apontam para uma evidência. Os brasileiros rejeitam Temer porque sabem que ele é uma sequência natural de Lula e de Dilma, principalmente desta, que ele ajudou a eleger e reeleger. No entanto, sentem no bolso os efeitos positivos do trabalho da equipe econômica, que não produz milagre nenhum, mas já deixou claro que não se dispõe a continuar a trilha rumo ao inferno contábil que Dilma e seus asseclas seguiram sem medo de serem infelizes. A manutenção por Temer dos Moreira, Padilha e Geddel da vida empurram para baixo seus índices de prestígio popular. A manutenção de Meirelles e seu time de bambas evita que o coro por sua expulsão engrosse e ganhe volume.

Quanto a isso, só há uma conclusão inteligente: se quer manter essa dicotomia de reprovação crescente, mas sem desejo de expulsão iminente, Temer tem de dar cada vez mais força a seus economistas e manter, se isso for possível, seus cavaleiros do apocalipse político longe dos molhos de chaves dos cofres da víúva, que não aguenta mais tanta penúria. A queda do “Fora Temer” não depende de agenda positiva, mas do medo de que seu sucessor seja pior do que ele na economia. O resto é marola maligna.

Em busca do centro perdido

A um ano da eleição presidencial, as pesquisas já causam frisson. Petistas soltam fogos com a resiliência de Lula. No extremo oposto os seguidores de Jair Messias Bolsonaro dão cambalhotas de felicidade, como se a polarização esquerda-direita já fosse coisa decidida.

Deixando de lado o dado não desprezível se Lula será candidato ou não, pesquisas, nesta etapa, são pouco mais do que recall. Nelas, importam as pistas que fornecem sobre como anda a cabeça dos brasileiros e como ela evoluirá até 2018.

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Para além do ranking entre os quatorze nomes pesquisados em oito simulações diferentes, o Datafolha faz uma revelação aparentemente contraditória com a performance dos dois pré-candidatos mais bem situados: 87% dos eleitores estão em busca de candidatos com passado limpo, que não é bem o caso de Lula.

E 79% valorizam em muito a experiência administrativa do candidato, requisito do qual Bolsonaro está a quilômetros e quilômetros de distância.

De fato, as águas parecem correr para os moinhos do centro democrático.

A recuperação, ainda que lenta, da economia e do emprego, cujo ritmo tende a ser mais forte no próximo ano, jogam a favor do centro, enquanto a deterioração dos indicadores econômico-sociais, fortaleceriam saídas regressistas e salvacionistas, à direita e a esquerda.

Mas este centro democrático corre na direção contrária à das águas, razão pela qual ainda não se firmou como alternativa à polarização arcaica esquerda-direita, traduzida nas candidaturas Lula-Bolsonaro. Primeiro por atomizar-se em várias candidaturas. Mas não apenas por isso.

Diferentemente da França de Emmanuel Macron ou da Argentina de Mauricio Macri, não surgiu no Brasil uma formação política de centro, capaz de unificar seu espectro. O que assistimos foi sua dispersão e enfraquecimento pois seus principais partidos e lideranças foram atingidos pela crise ética, nivelando-se, aos olhos dos eleitores, na vala comum da corrupção. A mesma que dizimou o PT no pleito de 2016.

Em outras palavras: o campo democrático foi atingido pelos raios das denúncias contra nomes como os de Aécio Neves e Michel Temer, embora seus efeitos arrasadores venham sendo subestimados por uma visão economicista que acredita na assunção do centro por meio exclusivo da recuperação da economia. Sérgio Fausto, executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso alertou, com propriedade, quanto aos riscos dessa ilusão.

É viável atrelar o futuro do centro democrático ao sucesso econômico do governo Temer, passando ao largo das questões éticas que o afetam? Que chances de sucesso terá uma candidatura com essa mancha?

Sem desvencilhar-se desse fardo, o centro tateia quanto a estratégia a ser adotada, com cada candidato atirando para um lado. O faro do governador Geraldo Alckmin o induz a adotar o discurso da conciliação, da experiência. E o prefeito de São Paulo, João Doria, opta pelo belicismo por considerar que Lula será o grande candidato a ser batido, mesmo se estiver impedido de disputar a presidência.

Quanto a Marina Silva, faz falta gestos de sua parte capazes de evidenciar sua identificação com o centro e com a conciliação nacional. Ou seja, esclarecer se sua disposição é aglutinar o vasto campo democrático ou disputar o espólio da esquerda pós-Lula.

Dada à soma zero das candidaturas do centro, onde uma anula a outra, a superação da inércia deste campo teria de vir de fora para dentro – da sociedade para os partidos, forçando sua aglutinação.

Primeiro, em torno de um programa capaz de reconciliar os brasileiros na reconstrução do Estado e no desbloqueio da democracia. E, como consequência natural, de uma candidatura agregadora.

Sem esses dois requisitos a tendência será a dispersão, algo semelhante ao acontecido no pleito de 1989, que elegeu Fernando Collor com seus trágicos desdobramentos.

O sal da terra

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As massas nunca se revoltarão espontaneamente apenas por serem oprimidas. Sem padrões de comparação não se darão conta de que são oprimidas
George Orwell

Refis beneficia velhaco e sacrifica cidadão honesto

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O Refis do Temer é uma calhordice. Enquanto os menos afortunados penam para tirar seus nomes da Serasa, impedidos de fazer créditos quando estão com suas dívidas penduradas, empresários, políticos e executivos milionários são beneficiados pelo Refis e dão calote na União. É difícil ser honesto e permanecer honesto neste país de velhacos, coberto pelo lamaçal da Lava Jato. Aqui, ficar devendo impostos e não cumprir com as suas obrigações é o correto no conceito da malandragem. O empresário acumula dívidas, senta nela durante anos, até que é perdoado pelo governo com a anistia dos débitos ou descontos bondosos. Na inversão de valores, quem paga seus impostos em dia no Brasil sustenta os trapaceiros desonestos.

Esse novo Refis, que passou pela Câmara dos Deputados, é uma imoralidade, uma afronta ao contribuinte honrado. Só em um país governado por uma organização criminosa ocorre tamanha desfaçatez como a do assessor jurídico do Palácio do Planalto, o advogado Gustavo do Vale Rocha, beneficiado pelo Refis que ele mesmo ajudou a preparar. Que o próprio relator da matéria, o deputado Newton Cardoso Jr, também esteja na esteira daqueles que serão beneficiados com o desconto milionário das dívidas das suas empresas em Minas Gerais.

Não existem adjetivos suficientes para qualificar esse governo indecente, que transforma o país num regime anárquico. Com a nova proposta do Refis, o assessor jurídico do Planalto vai ter sua dívida reduzida de R$ 287 mil para R$ 147 mil. Gustavo Rocha herdou essa dívida de uma sociedade que manteve na empresa Gesatel Telecomunicações. No caso desse senhor ainda existe um agravante: como ele não foi detectado pela ABIN que rastreia os antecedentes do servidor convidado a trabalhar no governo? Ora, entre outras atribuições, a agência levanta a vida do novato e veta o nome dele se existirem pendencias financeiras com a União. Se nem isso o órgão consegue identificar então é melhor fechar a bodega para balanço.

O certo é que Gustavo Rocha conseguiu driblar o radar da agência e foi se aboletar no Palácio do Planalto como chefe jurídico da Casa Civil. Saiu da cabecinha dele as ideias da flexibilização mais ainda o Refis, uma espécie de crime de lesa pátria, já que a União vai deixar de botar nos cofres bilhões de reais de trambiqueiros que não cumprem com as suas obrigações de cidadãos, ao contrário do que acontece com os inadimplentes pendurados na Serasa e órgãos diversos de cobrança do governo.

O pior de tudo é que a imoralidade desse governo é acatada por seus vassalos dentro do Congresso Nacional. Ali, um monte de mercenários, que diz falar em nome do povo, vive mendigando emendas parlamentares como aves de rapina para completar os seus salários e ajudar as empreiteiras amigas em obras regionais. Como urubu na carniça fazem fila na porta do gabinete do ministro Eliseu Padilha para receber suas quotas. Nessa altura do campeonato, esses áulicos não discutem se os projetos do governo no parlamento vão ou não ajudar a população. Eles querem, na verdade, é se locupletar das benesses como vem ocorrendo nos últimos dias quando o governo compra cada deputado para se safar das denúncias da PGR.

Sabe-se que Gustavo do Vale Rocha foi um entusiasta da proposta de novas concessões ao programa de parcelamento das dívidas do fisco, contrariando o Ministério da Fazenda que resistia em flexibilizar os pagamentos dos débitos. Mas como ele e o deputado Newton Cardoso Jr. trabalhavam em causa própria, nada pode ser feito.

Tudo no Refis é imoral, a começar pelo reescalonamento generoso dos débitos. Agora, o inadimplente pode reprogramar sua dívida com apenas 5% de entrada e não mais com 7,5%, como era a proposta inicial da Fazenda para dívidas de até R$ 15 milhões que abrange o universo maior de devedores do fisco. O deputado Ivan Valente, uma das vozes discordantes, ainda tentou impedir que Newton Cardoso continuasse na relatoria da matéria, mas foi voto vencido. Ele alegava, com razão, que o deputado mineiro era parte envolvida e, portanto, não poderia ser o relator.

Jorge Oliveira

Paisagem brasileira

Teresópolis (RJ), Henrique Bernardelli (1895)

Multa pesada para quem mata aula... em Berlim

Quem na adolescência nunca pensou, pelo menos uma vez, em trocar aquela aula chata por uma conversa com amigos ou uma sessão de televisão em casa? Essa sensação atinge não só jovens brasileiros, mas também alemães.

Enquanto para alguns as consequências deste ato podem ser sentidas apenas no boletim escolar ou enfrentadas dentro do próprio lar, em Berlim o gazeador pode acabar recebendo uma punição que pode pesar no bolso.

O que parecia uma diversão para o aluno berlinense que deixou de comparecer a 157 dias de aula do ano letivo 2016/2017 revelou-se um pesadelo. Pelas faltas, o estudante recebeu uma bela multa de 884,50 euros. Essa foi a maior punição financeira aplicada pelas autoridades berlinenses pelo "delito" de gazear aulas. A menor, de 128,50 euros, foi para um aluno que se ausentou do colégio por 16 dias.

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A multa para matadores de aula é uma opção prevista por lei na Alemanha, pois a ida à escola é obrigatória no país. A lei escolar berlinense destaca ainda os alunos matriculados em escolas públicas, além de frequentarem as aulas, têm a obrigação de participar ativamente em sala, fazer lição de casa e as provas.

Diante do grande número de alunos que estavam deixando de cumprir essa obrigação, Berlim adotou regras mais rígidas em 2014. Entre as medidas estão avisar os pais e ir até a casa do aluno. Porém, somente isso não estava resolvendo o problema. O número de faltas continuou relativamente alto: cerca de 20% dos alunos perderam aulas por até duas semanas no segundo semestre de 2016 sem apresentar justificativa.

Como pouco mudou desde a alteração nas regras, mais escolas passaram a entrar com processos contra os alunos que batem recorde na modalidade de gazear. No ano letivo de 2016/2017, cerca de 90 multas foram aplicadas na cidade.

Só os levantamentos dos próximos anos irão mostrar se funciona atacar os bolsos de alunos e pais – que possivelmente terão de pagar a conta – para trazer os gazeadores de volta às salas de aula.

Supremo retrocesso

A semana que passou trouxe uma carrada de idas e vindas na confusão institucional em que o país vive mergulhado e, se não bastasse isso, um retrocesso na área da educação de fazer corar um monge (ou seria uma freira?).

Ninguém poderia imaginar que o voto da presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, fosse nos fazer regressar ao que há de mais obscurantista num Estado laico: permitir o ensino confessional de religião em estabelecimentos públicos!

Ao mesmo tempo em que não são poucas as pessoas que, aos berros ou urros – como quiserem –, se insurgem contra a discussão sobre orientação sexual nas escolas, voltamos a tempos de antanho, quando ou se liberava a criança do horário da aula de religião, ou ela tinha que ficar perambulando pela escola, à espera da próxima disciplina a que deveria comparecer. A decisão do STF reinaugura uma escandalosa maneira de se patrocinar ou promover o “bullying”: contra os estudantes que comparecem às aulas de religião e/ou contra os que dela não fazem parte. Onde andam as cabeças coroadas de nossos mais altos magistrados? Interpretar a Constituição Federal, e nela os direitos individuais e/ou sociais, significa apenas confrontar textos legais, e não atentar para o que a vida ao redor requer? Deve prevalecer a consciência religiosa do magistrado sobre a tolerância que tanto se deseja ver inscrita nas consciências dos que integram uma sociedade?

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Quem quiser conhecer o inferno dos que são perseguidos por professores que fazem exigências descabidas ou que humilham as criança de outras crenças religiosas, sobretudo os adeptos do candomblé no Brasil, só precisa ter olhos para ver e ouvidos para ouvir.

E o que mais impressiona: os professores são pagos com dinheiro público – nada diferente da velha côngrua de antes da Proclamação da República! Quem quiser ler um depoimento corajoso e comovente veja a mensagem de dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, bispo auxiliar de Belo Horizonte e reitor da PUC Minas (IHU, 28.9.2017). E quem define se o professor está ou não bem preparado para ministrar aquelas aulas?

Toda essa confusão nasceu lá atrás, sob as bênçãos do papa Bento XVI, quando Lula assinou um acordo com a Santa Sé sobre o Estatuto da Igreja Católica no Brasil, da qual derivou o Decreto 7.107/2010 com um anexo cujo artigo 11 se choca com os dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996).

Recordo-me com detalhes das pressões que sofremos para não aprovar o caráter estritamente laico da educação no Brasil à época. Eu fazia parte da Câmara dos Deputados.

E quem quiser ter detalhes da discriminação e do preconceito contra quem professa outra crença, que leia “Educação nos Terreiros e como a Escola se relaciona com o Candomblé”, de Stela Guedes Caputo, editado pela Saraiva.

Enfim, prevaleceu, como disse Luiz Antônio Cunha em entrevista à Deutsche Welle, “a ideia de que o cidadão precisa ser religioso, e quem não é vai ter uma educação parcial ou errada”.

Isso tem de acabar.

Playboy

Com 81 anos e sem ter inventado coisa alguma, eu mal acredito que fui tachado de “playboy de Icaraí” por um tio da minha namorada. Se toda donzela tem um pai que é uma fera, ela também conta com “tios” e “irmãos” fascistoides cujo gosto é liquidar seus romances.

Antes da Playboy, o “playboy” era um “aproveitador” de moças inocentes. Um título absurdo porque, como os meninos de minha geração, eu fui muito mais virgem do que as moças supostamente virgens que namorei. Pelos valores da família brasileira de então, elas eram obrigadas (algumas a ferro e força...) a serem virgens, mas, mesmo quando não virgens, reproduziam um compulsivo pudor; ao passo que nós tínhamos que personificar escolados “comedores”. Para as meninas, a não virgindade era um escândalo, para nós, uma vergonha...

No início dos anos 1950, a revista Playboy começou a desmontar esses modelos, ao mesmo tempo em que deslocava os quadrinhos de Carlos Zéfiro e a revista Copacabana, que o Celso me emprestava com a advertência de que eu não a esquecesse no banheiro.

Numa época em que “mulher nua” era sinônimo de raridade, todos tinham fotografias e revistas de “sacanagem” escondidas em gavetas que nossas mães conheciam muito bem. Muitas vezes, essas preciosidades promovedoras de intenso trabalho manual eram subtraídas por uma silenciosa e não prevista mão invisível. “Fui arrumar o guarda-roupa dos meninos e encontrei revistas de patifarias, um exagero...”, diziam as guardiãs de nossas castidades.
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Os mais jovens podem esboçar um riso condescendente. Afinal, eles têm mais do que podem dar conta na internet. Mas os da minha geração lembram como era duro viver entre as desmedidas fantasias de comer a mãe do amigo e amar sem culpa as nossas namoradas. A mulher como uma impossibilidade figurava naquela paisagem. Vale recordar Manuel Bandeira: Um dia eu vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei com o coração batendo/ Ela riu/ foi o meu primeiro alumbramento.

Minha geração foi de Zéfiro e revistas suecas – com aquelas mulheres esguias de púbis assustadoramente avermelhados – à suprema legitimidade da revista Playboy. Seu surgimento na sociedade brasileira foi além do escândalo e do sintoma de mudança.

Se Freud foi o messias, Hugh Hefner foi aquele que liberou almas paralisadas pela culpa. Freud nos fez conhecer as afecções neuróticas; Hefner nos levou a imaginar gozosas formas de cura.

Com uma Playboy nas mãos e envoltos na paz de um azulejado banheiro, (único local da casa onde se podia ficar isolado) tornava-se possível examinar ao vivo e em cores o proibido do proibido – aquilo que só os mais velhos e os nossos pais conheciam – a mulher nua. Pecado dos pecados, beleza das belezas.

A Playboy tirou o nu do armário, deslocando o seu eixo das hipocrisias do “nu artístico”, para emoldurá-lo na retórica do erotismo à americana. Agora, não víamos mais mulheres revelando uma nudez com traços de perversão, mas enxergávamos uma jovem com um corpo impecavelmente saudável – branca, loura com um perturbador riso angelical. Por meio da Playboy, a cultura americana nos apresentava o erotismo sem o ranço do escuso, sem as compulsões das neuroses vienenses e sem o peso da culpa imposta pelo credo judaico-cristão. Se o rei Davi fosse um leitor da Playboy, ele finalmente poderia ver o banho da bela Betsabá sem culpa nenhuma.

Hugh Hefner foi acusado de imoralidade e de machismo. Mas como um demiurgo vindo de dentro da terra americana – Illinois –, ele soube sublimar sua libido reprimida por pais metodistas (Hefner casou virgem) e pelos valores puritanos de sua cultura. Ele certamente sabia que sua vida e sua invenção eram panfletos contra o escondido e o encoberto. Sua contribuição não foi pelo escândalo ou crime, que reforçam o nosso lado reacionário em nome do revolucionarismo confortável e chique que – entrementes – vende “Cultura”. Muito pelo contrário, foi revelado pelo instrumento mais essencial da vida democrática: o jornalismo.

Hefner mudou o lugar do feminino e, assim fazendo, mudou também o lugar do masculino que o tratava como objeto. Ironicamente, a revista destinada a ser um manual de donjuanismo moderno acabou sendo uma importante semente do feminismo e do antirracismo segregacionista. O primeiro movimento virou o jogo dos gêneros e das sexualidades; o segundo tem transtornado as congeladas relações entre negros e brancos. Se boas intenções não fazem boa literatura, vícios podem virar virtudes.

Em tempo: Hefner chegou a morar com 7 mulheres ao mesmo tempo, depois morou com 4, com 3 e finalmente morreu monogamicamente, conforme havia começado.