quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Já não dá para desancar político e poupar eleitor

A política brasileira vive uma realidade de ópera-bufa. Mas o desfecho pode ser de tragédia. O país assiste a três atos da ópera-bufa: o nariz de palhaço que o Lula aplicou em si mesmo ao desqualificar as revelações devastadoras de Antonio Palocci, a indignação do Senado com o recolhimento domiciliar noturno que o STF impôs a Aécio Neves e o desinteresse da Câmara pela investigação de Michel Temer e a organização criminosa que a Procuradoria vê ao seu redor.

O excesso de imoralidade parece ter anestesiado a sociedade. E o sistema político aproveita para cultivar o insolúvel como uma flor do lodo. Num instante em que o Brasil vai a pique, a Câmara aprovou a medida provisória que garantiu foro privilegiado a Moreira Franco, um dos ministros denunciados junto com Temer. E o Senado gasta suas melhores energias para aprovar o fundo que derramará verbas públicas nas campanhas eleitorais sem cortar gastos.

A tragédia que pode surgir no fim de tantos atos burlescos é o descaso do eleitor brasileiro. A essa altura, seria uma irresponsabilidade desancar os políticos e poupar os eleitores. Chegou a hora de parar de tratar a política como um conto do vigário no qual o país cai a cada quatro anos. O trágico só será evitado se você tratar a eleição de 2018 como oportunidade para um acerto de contas. No foro privilegiado da urna, o juiz é você. É a hora em que o brasileiro de bem pode impedir que o político pilhado com os bens continue se dando bem.

O strike que atingiu Temer, Aécio e Lula

Numa mesma tarde, quis a sorte que a ironia fizesse um strike. No boliche da política nacional, os três caciques dos principais partidos foram atropelados de modo tão contundente que, fosse outro o país, eles se retirariam da pista. Seria o bastante para que se afastassem da vida pública ou dela fossem afastados pelos mecanismos da democracia e da cidadania. Fosse outro o país, Congresso e partidos iniciariam processo de profunda revisão.

Vexame por vexame, cumpre recuperar os fatos:

No Plenário da Câmara dos Deputados, foi lida a segunda denúncia que pede o afastamento do atual presidente da República; a primeira turma do STF, decidiu afastar do Senado o presidente, já afastado, do PSDB que, de certa forma, cumprirá uma espécie de prisão domiciliar; em carta, Antônio Palocci expressou a mais profunda denúncia contra o ex-presidente Lula, numa demolidora crítica a seu partido.


Michel Temer, Aécio Neves e Luiz Inácio Lula da Silva, novamente, estão na berlinda e isto nem mais é novidade. Mas, é irônico que numa única tarde o constrangimento os tenha abraçado simultaneamente. No calendário da crise nacional, já não há mais folhinhas para agendar um escândalo por vez.

Por mais que dê voltas, Michel Temer não consegue explicar sua estupenda vocação para se cercar de gente enrolada por fortunas em malas; esquemas à luz do dia e encontros na calada da noite. É necessário demasiada vontade de ser cego para não enxergar que, mais que perigosas, as ligações do presidente levantam suspeitas e denunciam posturas que pedem investigação urgente, para o bem do cargo e da democracia.

O constrangimento é tanto que indigna gente séria e já leva as tais cassandras, que pareciam extintas, aos quartéis. Só mesmo o Centrão e seus satélites, num espetáculo de cinismo e desfaçatez, para colocar peneira sobre esse sol.

Em relação a Aécio Neves, o STF apenas restituiu sentido à realidade, recolocando o escândalo — que a distância já relegava ao esquecimento — no lugar que merece. Não há como explicar a conexão de um senador da República com um empresário que seus próprios aliados hoje chamam de canalha. Difícil engolir que prepostos seus sejam pegos por aí com malas de dinheiro vivo advindas de Joesley Batista e isto signifique nada.

Já Antônio Palocci fala por si, dada a importância e o papel que um dia teve no governo e no PT; é mais nocivo que Sérgio Moro. O ex-ministro privou, sim, da confiança e da intimidade de Lula e sua carta é, antes, um apelo à racionalidade. Qualificá-lo como traidor é resposta burra: menos que vitupério, confissão de culpa. Já tratá-lo como mentiroso é abusar da fé até mesmo dos ignorantes e assumir de vez a pecha de ''seita guiada por uma pretensa divindade'' que, como diz Palocci, o PT se transformou.

Mais valeria admitir os erros e abrir as janelas. Como já se disse, a luz do sol é o melhor desinfetante. A vida pede para continuar.

Se nos tribunais o pior réu é o confesso, na política existem fatos que não há como negar. O julgamento se dá por dinâmica própria: lenta, silenciosa, mas inexorável. Um dia tudo se revela. Há momentos em que a intransigência deixa de expressar lealdade para se denunciar como cumplicidade. A negação do óbvio não esconde a indulgência; a fidelidade canina leva ao apequenamento moral e à contaminação espontânea.

O strike não se resume aos três caciques. Expressa, antes, a ruína de um corpo que, ulcerado, se decompõe; um todo que definhou e agoniza. Um sistema político que carece se reinventar. A demora em assumir a realidade dos fatos não apenas arrasta a agonia, como alastra o mal. Gera demagogos populistas, salvadores da pátria; candidatos a Bonaparte. O que resta de saudável no sistema precisa compreender o sentido desse strike como destruição criativa.

Carlos Melo 

Gente fora do mapa

Rio Amarelo, na Mongólia, fede

Ninguém ora pelo povo

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Há uma coisa que se esquece muito no Brasil - é a sorte do povo; do povo que não é grande proprietário, o capitalista riquíssimo, o nobre improvisado, o bacharel, o homem de posição. Fala-se todo o dia de política, canta-se a liberdade, faz-se de mil modos a história contemporânea, maldiz-se dos ministérios e evoca-se a Constituição do seu túmulo de pedra. Ora-se a propósito de tudo, menos a propósito do povo
Aureliano Tavares Bastos (1839- 1875)

Ministros do STF estimulam o Senado a afrontar decisão do... STF

Zorra quer dizer desordem, bagunça, zona, segundo o Dicionário do Aurélio. Pensando bem, haverá expressão melhor para definir o que tem se passado no Supremo Tribunal Federal (STF) de algum tempo para cá?

A Primeira Turma do STF, formada por cinco ministros, decidiu suspender o mandato de senador Aécio Neves (PSDB-MG), obrigando-o a recolher-se todas as noites à sua casa sem direito a sair dali.


Menos de 24 horas depois, dois ministros do STF, se apressaram a criticar a decisão, estimulando indiretamente o Senado a desautorizá-la. Como se isso fosse possível sem deflagrar uma crise.

Como de costume, Gilmar Mendes foi o mais cáustico. Chamou a decisão de “populismo institucional”. Disse que a Primeira Turma estava reescrevendo a Constituição, e que seu comportamento era suspeito.

Suspeito de quê? Não explicou. Mas aduziu: “Certamente seria bom que a matéria viesse ao plenário. Matérias controvertidas devem vir a plenário”. Esqueceu que a Primeira Turma poderia decidir sozinha, como o fez.

Voto vencido na Primeira Turma, o ministro Marco Aurélio Mello comentou assim a decisão: “O que nós tivemos foi a decretação de uma prisão preventiva em regime aberto. Vamos usar o português”.

E acrescentou: “Como o Senado pode rever uma prisão determinada pelo Supremo, ele pode rever uma medida acauteladora, a suspensão do exercício do mandato”.

Causa espécie ver ministros togados discutirem em público decisões tomadas por alguns dos seus pares. Se não se respeitam, se não respeitam decisões do tribunal, quem haverá de respeitá-los, e às decisões?

Em maio último, o ministro Edson Fachin, um dos relatores da Lava Jato no STF, suspendeu o mandato de Aécio e decretou sua prisão preventiva. O Senado sequer assanhou-se a rever a decisão de Fachin, por incabível.

A decisão de Fachin foi revogada por outra tomada por Marco Aurélio. Desta vez, o Senado está nos cascos para rever a decisão da Primeira Turma. Poderá fazê-lo ainda esta tarde. Se o fizer, cometerá grave erro.

A reclusão noturna obrigatória é diferente de uma prisão preventiva domiciliar. Trata-se de uma medida cautelar prevista no Código de Processo Penal. Foi aprovada pelo Congresso em 2011.

Somente o STF pode dar por não dito o que ele mesmo disse. O Senado tanto não pode que nada ousou fazer no ano passado quando o senador Delcídio Amaral (PT-MS) foi preso por ordem do ministro Teori Zavaski.

Cachorro vivo

É muito provável que não haja em nenhum outro episódio da história recente do Brasil nada que se compare, em matéria de estupidez terminal, ao conjunto de decisões que o PT tem tomado sobre o ex-companheiro Antonio Palocci. O que está acontecendo com essa gente? Sabe-se, há muito tempo, que todas as suas altas esferas, e principalmente a esfera mais alta de todas, vêm vivendo um processo acelerado de decomposição mental – desde que todos caíram em desgraça pela corrupção sem limites que patrocinaram durante treze anos e meio e começaram a viagem do céu da máquina pública ao inferno da justiça penal. Mas o que fizeram com esse Palocci desafia qualquer imaginação.

Era um escândalo aberto e agressivo que o PT se mantivesse em silêncio absoluto durante um ano inteirinho, desde que o ex-vice-Deus dos governos Lula foi para a cadeia acusado de roubar somas monstruosas de dinheiro – nenhuma palavra, nenhuma crítica, nenhum pedido de desculpas. Como 100% dos outros membros do partido processados e condenados por corrupção, Palocci tinha direito ao tratamento de vítima – vítima “deles”, como diz Lula, os que não toleram as suas “reformas sociais” e não aceitam sua volta à “presidência” deste país. De repente, o mesmíssimo Palocci, o trotskysta de Ribeirão Preto que dividiu mesa, sala e ante-sala com Lula, como o mais poderoso agente de seu governo, diz à justiça o que sabe sobre o ex-presidente – aliás, uma parte do que sabe; os detalhes virão logo mais. Pronto: o mundo caiu. Depois de um ano de boca fechada, o PT descobriu, de um minuto para o outro, que Palocci era um homem mau. Manifestou o seu horror. Decidiu, com aquela valentia em chutar cachorro morto que resume tão admiravelmente o mundo moral dos seus dirigentes, punir o companheiro. Mesmo nesse fundo de poço, não tiveram coragem suficiente para expulsar o homem: decidiram-se por uma “suspensão de 60 dias”. Que diabo quer dizer isso? Alguém seria capaz de dizer quais atividades Palocci vinha exercendo no PT dentro da cadeia? Foi proibido de fazer o que, exatamente? O Judas vai continuar convivendo com os Doze Apóstolos e com o próprio Cristo? Parece que sim: afinal, quem não é posto para fora continua do lado de dentro.

Mas parecia que sim, apenas. Logo se viu que a catástrofe era muito pior – e que cachorro morto às vezes pode morder. Não só o companheiroPalocci recusou a advertência, e mandou para o PT um aviso de que era ele, Palocci, quem estava saindo – uma maneira mais ou menos educada de dizer onde, exatamente, o partido podia enfiar o seu decreto de suspensão. Muito pior que isso, o homem de confiança número 1 de Lula escreveu uma carta aberta fazendo um resumo, sem disfarces, do que sabe sobre a Divindade Superior do PT. É um documento absolutamente devastador . Não se trata de provas, que ficarão para depois. Trata-se simplesmente da verdade, o que é muito pior. Sabe-se muito bem, e há muito tempo, que a reputação moral do ex-presidente está em ruínas, e não precisa de mais nada para dissolver-se ainda mais. Mas a carta de Palocci tem o efeito-bomba de ser um documento, por escrito, para a História – seu texto, muito simplesmente, não poderá ser ignorado por nenhum historiador sério, entre todos os que vão escrever sobre nossa época. Há desânimo, até mesmo, entre a gente de boa fé que ainda optava por “relativizar” as depredações que Lula faz há anos na vida pública do Brasil. Também eles começam a se cansar.

Paisagem brasileira

Paisagem do Rio Grande do Sul (1920), Pedro Weingärtner

Os jumentos do padre

O Padre Antônio Vieira, não o dos Sermões, em nome de quem sacrilégios infindos tem se perpetrado em discursos e escritos, mas um modesto vigário que viveu ou ainda vive no interior do Ceará, chamou para si a causa dos jumentos sem donos.

Jumento que fosse encontrado só, pastando ou mesmo parado, sem fazer nada, com aquele ar de filósofo de entardecer em beira de estrada, como se esquecido de si, era apanhado e embarcado num caminhão para ser, adiante, exterminado.

Quando soube disso, o Padre Vieira começou a mobilizar seus paroquianos, chamando-lhes a atenção para se acabar com aquele absurdo. Jumento é o animal mais abençoado!


Em Várzea Alegre, sua cidade natal, há uma estátua do Padre Vieira ao lado de um Jumento. (Foto: divulgação)
Em Várzea Alegre, sua cidade natal, estátua do Padre Vieira ao lado do jumento 
Quando Herodes, o rei perverso, inspirador de governantes que não estão nem aí para as estatísticas de mortalidade infantil, mandou matar todos os recém nascidos para ter a certeza que, dentre eles, não sobreviveria o Messias, o casal José e Maria só fugiu a tempo, salvando o menino, porque tinha, ou alguém lhe emprestou, um jumento.

A primeira mijada do Menino Jesus teria sido mesmo no lombo daquele jumento. Daí, dizem também, aquela pinta escorrendo de um lado ao outro pouco antes do pescoço, seria prova de que o jumento foi o único animal pessoalmente abençoado pelo Filho do Homem.

A sua entrada triunfal em Jerusalém, 33 anos depois, no domingo de ramos, sendo aclamado Rei dos Judeus, não foi num cavalo de puro - sangue árabe, preferidos dos Césares, mas num jumento simples, um jegue pé duro.

Assim como a pomba branca simboliza a paz, a serpente o mal, o cordeiro o sacrifício, o jumento em si é o emblema da perseverança, da capacidade de sobrevivência em qualquer lugar do mundo, nas condições mais difíceis. É um bicho solidário, é ele que tem mais a ver com cada um de nós.

Portanto, não apenas para o Povo do interior o jumento é um amigo solidário e um companheiro de trabalho, para qualquer trabalho a qualquer hora. O jumento é um motor de força, um meio de transporte, um cúmplice, é o trator dos pobres.

Dispensa cuidados de veterinário, come até sola de sapato velho, pano de chão, folha de urtiga, dorme em pé, também serve como relógio porque só relincha, e muito sonoramente, nas mesmas horas do dia. E se tem uma jumentinha por perto, reproduz adoidado.

Os cearenses da paróquia do Padre Vieira fizeram um assanhaço tão danado contra os nazistas dos jumentos que até o Rei do Baião, o grande Luiz Gonzaga, se engajou no movimento em defesa da vida dos jumentos. O Padre até publicou um livro, “O Jumento Nosso Irmão”.

Em todo lugar do mundo, o Povo é força imbatível se motivado às grandes causas. A mobilização do Padre Vieira contra a matança dos jumentos resgatou os deveres gerais para com a defesa dos direitos dos animais.

Caminhando domingo pela Avenida Paulista vi uma fila enorme adentrando um casarão antigo. À entrada, uma placa sugeria, adote um cão. Muitas pessoas saiam dali levando para casa um cachorro, desses que, antes, viviam soltos sem donos pelas ruas.

O padre de Peritoró, contra quem assacaram as infâmias de, quando Prefeito, ter mandado matar mais de duzentos jumentos, bem que poderia ter se mirado no exemplo do Padre Vieira cearense e, como os voluntários da Avenida Paulista, instalar na uma Central de Adoção de Jumentos.

Edson Vidigal

Desigualdade Brasil

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O Brasil permanece com um dos piores países do mundo em matéria de desigualdade de rendimento e tem mais de 16 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza
ONG Oxfam Brasil, no estudo "A distância que nos une", que alerta para as projeções de se ter mais 3,6 milhões de pobres até ao final deste ano

República magistral

O Supremo Tribunal Federal cansou de ver juízes de primeira instância monopolizarem os holofotes. Em dois dias, autorizou ensino religioso em escola pública, desafiou o Senado e rachou em público. Só não se manifestou sobre conflito de interesse evolvendo seus integrantes. Chega de perder manchetes para juízos de primeira, como o que decidiu mandar a julgamento um adolescente que ousou levar câmera fotográfica a protesto.

Tucanaram a prisão do senador? A blague é óbvia, mas imprecisa. A decisão de três ministros da Primeira Turma do Supremo de afastar Aécio Neves (PSDB) do Senado e mandá-lo não sair de casa à noite é – pelo Código do Processo Penal (CPP) – medida cautelar diversa da prisão. Segundo juiz de carreira consultado pela coluna, é sentença “meio sem sentido para o caso em questão, mas não é invenção”. Está tudo lá no CPP.

No inciso 2º do artigo 319: “proibição de acesso ou frequência a determinados lugares (...) para evitar o risco de novas infrações”. No caso, o local de onde Aécio deve permanecer distante não é um estádio de futebol, mas aquele para o qual foi eleito, o Congresso. Afinal, também é prevista a “suspensão de função pública quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais” (inciso 6º).


Parlamentares – e os ministros mais loquazes do próprio tribunal – veem nisso uma usurpação de prerrogativas do Legislativo. Qual seria, então, a alternativa? O Supremo decretar a prisão do tucano? Mesmo irritados, os senadores devem levar o precedente em conta, não só pensando no destino de Aécio, mas na dúzia de colegas alvo de investigações por procuradores da República. Cutucar o STF e descumprir sua decisão pode iniciar uma batalha de represálias da qual muito senador haverá de se arrepender.

Ficar proibido de falar com outros acusados ou suspeitos – para assim não atrapalhar as investigações – também está previsto no artigo 319, inciso 3º (“proibição de manter contato com pessoa determinada”). Bem como entregar o passaporte (artigo 320).

Até a medida que mais provocou piadas na internet – “o que será dos bares do Leblon?” – consta no inciso 5º: “recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos”. E se ele foi afastado do trabalho pela mesma decisão e está, portanto, de folga? Deve ficar recolhido durante o dia também?

Todo comentarista de Facebook tem seu parecer sobre direito constitucional, todo tuiteiro tem sentença a respeito – agora, com o dobro de caracteres. Na magistral república brasileira, todo cidadão foi promovido de técnico de futebol a juiz. As mídias sociais se transformaram em um tribunal permanente – do que não escapam nem os próprios magistrados.

Pode um juiz ser avalista de empresa da qual é sócio em um empréstimo bancário? A questão é pertinente porque a lei da magistratura proíbe quem julga de exercer o comércio – pelas óbvias chances de ele se meter em um conflito de interesses. Por exemplo: cometeria o banco – que, por acaso, é parte em ações na corte onde o avalista atua – a imprudência de executar o aval?

Ou ainda: deve um juiz julgar réu que patrocinou empresa da qual o togado é potencial beneficiário de lucros e dividendos?

Tais questões provocam rebuliço apenas na corte digital. É mais fácil o Supremo comprar uma briga com outro Poder da República do que se debruçar sobre o próprio umbigo. Ministros intrigam-se na imprensa, trocam pescoções verbais em plenário, mas raramente julgam-se uns aos outros. E a condenação do Judiciário pela opinião pública? É pena genérica e coletiva. Não estão nem aí.

A favela não é um zoológico

Muitos europeus que chegam ao Rio sentem uma espécie de atração fatal pela miséria. Uma vez um amigo espanhol me disse: “Tenho uma curiosidade especial em saber como são os pobres das favelas”. Para a da Rocinha, ocupada pelo exército, com a comunidade ainda atemorizada e transtornada com os tiroteios, a empresa Favela Tour levou ontem, dia 25, segunda-feira, 20 turistas franceses. Um morador, ainda traumatizado com a violência que está vivendo, comentou ao blog O Antagonista que aqueles turistas lhe causaram uma sensação estranha: “Parece que somos seres de uma espécie diferente. Nem com o clima em que estamos vivendo os turistas param de visitar a favela”.

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Talvez seja essa morbidez inconsciente de considerar as favelas como um zoológico no qual se visitam bichos humanos diferentes o que acabe perpetuando o mito dessas mais de mil comunidades, que são um terço da “cidade maravilhosa”, e que constituem uma reserva turística e de votos para os políticos na hora das eleições. Passam governos pelo Rio, de todos os matizes políticos, e as favelas se perpetuam em sua segregação, em sua pobreza e em seu cenário de violência. Só experiências generosas, pessoais ou de grupos, conseguem aplacar a dor de seus moradores condenados ao destino de diferentes.

Só quem nasceu e sofreu ali, viveiro de talentos e criatividade artística, é capaz de entender a complexidade e a riqueza daquelas comunidades condenadas ao mesmo tempo ao estigma da diferença. Um dos filhos ilustres das favelas, o carnavalesco Joãosinho Trinta, cunhou uma frase, já célebre, que define o paradoxo que a idiossincrasia da favela representa: “O povo gosta de luxo, quem gosta de pobreza é intelectual”. Dizia ser capaz de “transformar lixo em luxo”. Convertia restos de isopor em esculturas que pareciam de marfim.

Como já destacou o brilhante antropólogo Roberto DaMatta, os carnavais nascidos nas favelas são o resgate de séculos de escravidão e vida dura dos excluídos. Na metamorfose dos carnavais, cada um se disfarça por um dia no que sonharia ser e não consegue. Quebra tabus. Assim, Joãosinho explicava: “Peça a um jovem de favela que desfile de escravo no carnaval. Ele quer é ser rei. Escravo já é. Ele gosta é de luxo, não de miséria”. E sentenciava: “Ninguém tem o direito de dizer não ao absurdo”.

E ninguém tem o direito de transformar favelas em zoológicos aos quais se vai para ver “como são os pobres”, como sonhava meu amigo espanhol. A melhor forma de ajudar essas comunidades que acumulam anos de abandono e exploração é lutar para que deixem de ser guetos para o deleite dos turistas e possam se tornar bairros como os demais da cidade, aos quais ninguém precise visitar para saber que não trabalhadores como nós e que não têm chifres nem rabos. A verdadeira miséria não é a das favelas, mas a nossa, a incapacidade de entender que o que nos diferencia uns dos outros não é a pobreza ou a riqueza, mas a capacidade ou a incapacidade de empatia com tudo que é diferente. Todo o resto é morbidez burguesa.