quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A negação como método

É necessário ignorar e negar para viver. Mas alguns estudos revelam que, em muitas sociedades, ignorar é uma arte e negar, um método.

No Brasil, a negação é um método de demonstrar superioridade. “O que vem de baixo não me atinge”, falamos diante de um desafeto. As pedras (ou flechas) atiradas pelos inimigos não nos afetam. Pelo contrário, podem — como bumerangues — cair nos que ousaram nos atacar. Descobrir que isso tem mudado é um dos trabalhos da crise.

Anular o outro distingue sistemas aristocráticos imobilizados por posições sociais fixas das democracias marcadas pela mobilidade. O privilégio marca certos cargos e categorias sociais nas aristocracias. Nelas, uma mesma ação é crime se for feita por um indivíduo sem “eira ou beira” (sem relações), mas vira crise política se o seu praticante for “gente grande”.

A resistência extremada à igualdade perante a lei é o cerne da crise. Nela, as chamadas imunidades atreladas a certos cargos impedem qualquer processo. Seria absurdo sugerir que esse oceano de privilégios seria uma projeção da matriz aristocrática e escravocrata que vigorou de 1500 até 1889, no contexto republicano?
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Na monarquia, nobres, clero e povo tinham os seus códigos. Numa República proclamada a partir deste contexto (sem esquecer a escravidão), capitulou-se cuidadosamente os privilégios dos seus funcionários. Altas patentes, hoje chamados de assessores ou aspones — esses recebedores de mochilas, malas e caixas cheias de dinheiro sujo — são muito mais do que governantes. Eles passaram a ter foro privilegiado e, mais obsceno que isso, prescrição para seus crimes que têm o colarinho mais branco do que o de suas camisas.

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O viés aristocrático da burocracia republicana é um brasileirismo. A surpresa de Pedro II diante da maluquice republicana é significativa. Pois a maluquice é imaginar que se pode sair de uma monarquia para uma república sem crises e tumultos. As perenes crises republicanas — todas, aliás, muito semelhantes — resultam de uma revolução: a de tentar governar por meio do mérito individual uma sociedade de credo escravocrata e patriarcal. Republicanismo num contexto sócio-histórico patriarcal e escravocrata é muito mais revolucionário do que se pode imaginar. E as crises são o testemunho disso. Elas são chamadas de políticas mas, de fato, são crises sociais e de valores promovidas na sua totalidade por racionalidades opostas ou muito diferenciadas. Imaginar que a transição seria sem crise ou que a crise é defeito nosso é tão absurdo quanto pensar que os responsáveis por empresas estatais sejam indicados por suas capacidades e trabalhem para o bem do país, e não para os seus partidos e famílias.
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A passagem por golpe de uma monarquia a uma república não é algo trivial. Esse é o ponto.
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Somente no Brasil se pode imaginar que o trânsito de uma reciprocidade maussiana do dar para receber para os labirintos contratuais hobbesianos seria como tomar um sorvete ou ir ao cinema. Não é de graça que se substitui a mão visível do amigo preocupado em providenciar a propina, pela mão invisível de Mr. Adam Smith. Tal transformação é profunda, e a ausência dessa percepção engendra todo tipo de mal-entendidos. Um deles é fantasiar que o Estado deve “corrigir” ou “curar” a sociedade.

Não se pode negar o papel de impulsionar do Estado, mas isso não é igual a ele atribuir uma onipotência que em todo lugar resultou em totalitarismo e, no Brasil hodierno, nesta vasta roubalheira.
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Estou dizendo que a República foi um erro ou que ela é historicamente impossível no Brasil? De modo algum. Só os imbecis negam o que foi feito. Mas como não apontar que a crise brasileira é sistêmica e que ela tem um elo profundo com a tentativa largamente inconsciente de operar com valores opostos sem discuti-los.
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O que espanta na construção da democracia à brasileira é a inocência cultural relativa ao seu funcionamento. Inocência da qual os malandros se aproveitam.
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A “corrupção” é o resultado na intrusão do passado no presente. Um anacronismo que reproduz no novo regime as práticas recorrentes dos tempos do rei e dos déspotas porque sua força simbólica sempre foi subestimada. E o poder da política como uma engenharia sem consequências sociais sempre foi superestimada.
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A negação como narrativa — ninguém cometeu nenhum crime, tudo foi inventado, MAS... ninguém é de ferro — nada mais é do que a consequência da descoberta da democracia. Hoje sabemos que ela não é uma utopia; que ela é alérgica a privilégios e tem como ideal a igualdade. Essa igualdade que é, de longe, o maior problema brasileiro.
Roberto DaMatta

Simples e complexo

Em que pese o desgosto com o momento, percebe-se relativo aumento do interesse pela política. Não se trata ainda de mobilização; como uma onda, o envolvimento começa pequeno, ainda que no seio das elites. Aqui e acolá, grupos se reúnem com preocupações que raramente se expressavam no passado: mais profundamente, quer-se compreender o que se passa; lentamente, se entende que não basta trocar as moscas.

O país, de fato, tem carecido de discussão de melhor nível; reflexões, que não se alimentem de rancor, podem gerar mobilização de melhor qualidade, libertada do senso comum e do preconceito. A participação da elite, em qualquer país, é sempre importante — se souber se abrir para o mundo que a cerca e se desvencilhar do senso comum. Fugir do simplismo, conciliar o simples e o complexo.

O discurso a respeito da ''gestão'', por exemplo, precisa de urgente qualificação. Gestão (de qualidade) é, obviamente, necessária. A política sem gestão é voluntarismo; ineficiência que resultará no caos. Contudo, os problemas da sociedade são sempre mais complexos do que dizem os manuais e os gerentes e nem tudo se limita a estabelecer uma boa rotina operacional.

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Há uma infinidade de questões impossíveis de serem quantificadas; idiossincrasias, choque de valores, disputas de poder, manutenção de privilégios. Nem a meritocracia é capaz de se sustentar quando não há, antes, igualdade de condições. As regras e normas ajudam, princípios também. Mas nem sempre dão conta da amplitude do mundo real. Gerir a política não é tão simples quanto gerir uma empresa.

A começar pelo fato de o governante não ser um patrão e, tampouco, os agentes políticos e cidadãos são seus funcionários. Há que distinguir a natureza das coisas: gestão é técnica, conhecimento é ciência; política é arte. É necessário casar os três elementos.

Um governante pode dar ordens, é claro. Mas, nada garante que serão atendidas. Numa sociedade democrática, pouco depende apenas de vontade ou hierarquia. A obediência reside, antes, na lei. E, ainda assim, a lei só será assimilada pela íntima adesão individual e pelos pactos sociais. Apenas em última instância, pela força.

Winston Churchill teria, evidentemente, algo a aprender com Akio Morita ou Jack Welch, mas muito mais haveria o que pudesse lhes ensinar. A visão de futuro é essencial, a capacidade de comunicar, persuadir e envolver são valiosas. O estatuto, o regulamento e a possibilidade de coerção, a partir do salário, contam muito pouco.

Um governante pode ter o controle de uma máquina pública, mas dará à sociedade o que ela quer e necessita? Saberá convencer a maioria os porquês de sua ação e o sentido de suas prioridades? Conseguirá juntar vontades e formar consensos, consolidar crenças e mobilizar?

Difícil acreditar na gestão sem política. Grandes CEOs, de verdade, compreendem isso e, num âmbito menor, percebem que desempenham habilidades políticas. Não se trata apenas de foco, mas também de sensibilidade; não se trata apenas de carisma, mas também de justificativas racionais aceitas por todos ou, pelo menos, pela maioria.

Esta é a primeira questão para a elite econômica que pretende se voltar para a política: entender que algumas ideias são palavras soltas; às vezes, palavras gastas. Uma ideia de todo tola, se estiver solteira do mundo real. Como uma imagem de Picasso, a realidade é, ao mesmo tempo, simples e complexa. Democracia não é força; é jeito. O poder nem sempre pode tudo.

Carlos Melo

Gente fora do mapa

Rohingya
Campo de refugiados de Balukhali (Bangladesh), Allison HJoyce

Para que a existência valha a pena

Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade, embora pareça que ainda estamos vivos.

Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.

Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.

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Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: “Parar pra pensar, nem pensar!”

O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.

Sem ter programado, a gente pára pra pensar.

Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.

Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.

Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.

Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.

Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.

Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos. Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.

Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.

Parece fácil: “escrever a respeito das coisas é fácil”, já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.

Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.

Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.

E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

Desonestidade diplomada

O sistema partidário hoje no Brasil, triste como seja, é a institucionalização da desonestidade
Ministro Luís Roberto Barroso, do STF

O paradoxo Temer

Estranho país, este. Estranhíssimo. Contrariando as leis universais da política, à medida que Michel Temer perde apoio popular crescem suas chances de completar o mandato que herdou da ex-presidente Dilma Rousseff. Por suposto, deveria ser o contrário. Mas não aqui.

O governo Temer tem a pior avaliação da série histórica da pesquisa feita pelo Instituto MDA e divulgada desde 1998. Na mais recente, que ouviu 2.002 pessoas de todas as regiões do país entre os últimos dias 13 e 16, a aprovação do governo reduziu-se a 3,4%. Era de 10% em fevereiro.


O que houve de fevereiro para cá? A delação dos executivos do Grupo JBS. O presidente do grupo, o empresário Joesley Batista, hoje preso, gravou Temer no porão do Palácio do Jaburu. Em seguida, a Procuradoria Geral da República denunciou Temer por corrupção passiva.

A desaprovação do governo passou de 44% em fevereiro para os atuais 75%. Os que consideram o desempenho do governo apenas regular são 18% contra 39% em fevereiro. A avaliação negativa do desempenho pessoal de Temer subiu de 62% para 84%. É um desastre!

Nem por isso a situação de Temer inspira maiores cuidados. Quase 70% dos entrevistados disseram que não pretendem ir às ruas pedir a saída dele do cargo. A razão? Para 50% dos entrevistados, as pessoas perderam a esperança nos políticos que temos.

Quer dizer: à falta de quem preste, fica Temer. Vida que segue. É por faltarem 12 meses e poucos dias para a eleição do novo residente que a Câmara dos Deputados rejeitará a segunda denúncia contra Temer por obstrução de justiça e organização criminosa.

A agenda de reformas do governo foi para o espaço. A economia dá sinais de recuperação simplesmente porque havia batido no fundo do poço. O mercado financeiro não quer saber de marolas. Uma eventual queda de Temer provocaria um tsunami nos negócios. Bola pra frente.

Vestal em casa de tolerância

Nenhum texto alternativo automático disponível.
Lula nunca soube o que se passava na Petrobras do Petrolão ou no Congresso do Mensalão, tampouco tomou conhecimento de atos de corrupção realizados por membros graduados do partido do qual é criador, presidente de honra – título que embute certa ironia – e mandatário perpétuo. Sequer foi informado do que ocorria nos gabinetes e corredores de estatais e ministérios comandados por gente de sua confiança, nomeada por ele e que, supostamente, estava ali para cumprir suas diretrizes e lhe prestar contas.

Trata-se de uma vestal em casa de tolerância, a donzela recém-chegada dos grotões que vai parar em um bordel acreditando estar em uma inocente casa de shows. Lula, fundador da agremiação que usa o número 13 e prestou depoimento no último dia 13, esteve no poder por 13 anos – outra ironia involuntária do destino –, pessoalmente ou por meio do poste avançado Dilma Rousseff, mas nunca participou da roubalheira que corria solta sob sua barba. Comporta-se como a mocinha que resistiu ao bordel sem ter a inocência subtraída e nem mesmo percebeu que aquelas mulheres excessivamente maquiadas protagonizavam ações capazes de ruborizar a mais experiente cafetina.

O assombroso, longevo e desmedido assalto aos cofres públicos transformou o Brasil num imenso lupanar explorado por incontáveis corruptos. Agora, para se livrarem de uma cana mais dura, eles acusam a mocinha do interior de tê-los comandado, enquanto ela continua acreditando que aquela era apenas uma casa de shows.

Paisagem brasileira

Postes na pista em trecho da rodovia MA-272 entre Barra do Corda e Fernando Falcão (MA)

Temer na ONU é a insustentável leveza do nada

O Nada escalou a tribuna da Assembleia Geral da ONU na manhã desta terça-feira. Chama-se Michel Temer. Alguns dos presentes talvez tenham tentado enxergá-lo. Perceberam que era inútil. O olhar atravessava o Nada e ia bater no mármore ao fundo. Discursos como o que foi lido pelo presidente são redigidos no Itamaraty. O ghost writer escalado pela diplomacia esforçou-se para dar a Temer a aparência de um orador invisível, que não causasse problemas a si mesmo. Exagerou.

Cenho imponente, o Nada soou taxativo sobre temas em relação aos quais sua opinião não tem a mais remota relevância: “Os recentes testes nucleares e missilísticos na Península Coreana constituem grave ameaça…”. E silenciou sobre uma questão que, por intrigante, os brasileiros e os líderes mundiais gostariam de ver respondida: por que diabos o Brasil abdicou do progresso para se consolidar como uma cleptocracia clássica?

Desdobando-se para realçar a inutilidade da fala que o redator-fantasma do Itamaraty acomodou-lhe nos lábios, Temer discorreu sobre armas nucleares —“Reiteramos nosso chamado a que as potências assumam compromissos adicionais de desarmamento”—, falou sobre Oriente Médio —“Amigo de palestinos e israelenses, o Brasil segue favorecendo a solução de dois Estados convivendo em paz e segurança”—, realçou a encrenca da Síria —“A solução que se deve buscar é essencialmente política” —, sem esquecer todos os demais conflitos que inquietam o planeta —“No Afeganistão, na Líbia, no Iêmen, no Mali ou na República Centro-Africana, as guerras causam sofrimentos intoleráveis.”

O Nada sugeriu à plateia um passeio incômodo: “Percorramos os campos de refugiados e deslocados no Iraque, na Jordânia, no Líbano, no Quênia. Ouçamos as histórias dos que perderam pais, mães, filhos, filhas. São famílias que foram tragadas pela irracionalidade de disputas que não parecem conhecer limites. De disputas que, com frequência inaceitável, se materializam ao arrepio do direito humanitário.”

O “mal do terrorismo”, o “crime transnacional”, as “violações dos direitos humanos em todo o mundo”, o “racismo, a xenofobia e todas as formas de discriminação”, os “refugiados da Venezuela”… O redator do Itamaraty fez do Nada um personagem capaz de falar de tudo, exceto da moralidade e da ética que seu governo sonega aos brasileiros. Sobre o Brasil, a propósito, Temer realçou dois temas: ecologia e economia. Disse meias-verdades sobre ambos, privilegiando a metade que é mentirosa.

“O Brasil orgulha-se de ter a maior cobertura de florestas tropicais do planeta”, realçou o redator do Itamaraty, antes de anunciar “a boa notícia de que os primeiros dados disponíveis para o último ano já indicam diminuição de mais de 20% do desmatamento naquela região.” Nenhuma palavra sobre o decreto que Temer editou, reescreveu, revogou e planeja reeditar para assegurar a exploração mineral numa área de reserva na Amazônia, a Renca. O vaivém sobre a matéria provocou gritaria local e internacional. Só por isso o lero-lero ambiental frequentou as preocupações do redator do Itamaraty.

“O Brasil atravessa momento de transformações decisivas”, declarou, de repente, o Nada. “Com reformas estruturais, estamos superando uma crise econômica sem precedentes. Estamos resgatando o equilíbrio fiscal”, acrescentou, alheio à recentíssima conversão da meta fiscal brasileira de rombo em cratera. “O novo Brasil que está surgindo das reformas é um país mais aberto ao mundo”, prosseguiu o Nada, sem se dar conta de que, voltando a Brasília, terá de negligenciar novamente a reforma da Previdência para priorizar a recompra na Câmara dos votos que garantirão o enterro da nova denúncia da Procuradoria.

Tomado pela densidade, o discurso de Temer na ONU pode ser definido como a insustentável leveza do nada. Observada pela utilidade, a fala do presidente brasileiro foi dinheiro do contribuinte desperdiçado numa viagem dispensável. Considerando-se a importância que o mundo atribuiu às palavras do redator do Itamaraty, o Nada conseguiu, finalmente, unir os brasileiros. Ateou em todos o mais profundo sentimento de vergonha. O vexame só não é insuperável porque Temer deve retornar à ONU em 2018.

Às vezes acontece...

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Não é muita gente que nasce com essa incômoda glândula chamada consciência, que impede de dormir a sono solto e sem outra atrapalhação que não os mosquitos de verão, mas às vezes acontece
Eduardo Galeano

Quem disse que a esperança deve acabar?

“Há dias em que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, cantava Chico Buarque nos idos de setembro de 1967. Já se vão 50 anos desde que ele retratava a angústia em que vivíamos e tão bem expressava o travamento das liberdades e das possibilidades emancipatórias. No ano seguinte, o mundo passaria pelas maiores agitações desde o fim da Segunda Guerra. Em Praga, Paris, Berlim, Chicago e Rio de Janeiro, era “proibido proibir”.

Senti-me, na semana que passou, arrebatada por esse sentimento de impotência de quem “já partiu ou morreu”, que torna cada vez mais distante de nós o “espírito da utopia” de que falava o filósofo alemão Ernst Bloch, um dos ícones daquele ano “que não acabou”, como diz Zuenir Ventura. E me pergunto: o que nos aguarda no próximo ano?

O último petardo norte-coreano a sobrevoar a ilha japonesa de Hokaido indica que podemos estar no limiar de uma catástrofe nuclear de dimensões indizíveis. O inexplicável silêncio da ministra das Relações Exteriores birmanesa, Aung San Suu Kyi, notável militante dos direitos humanos e, por isso, laureada com o prêmio Nobel da Paz de 1991, hoje omissa frente à limpeza étnica dos rohingyas, promovida pelas Forças Armadas de seu país, nos leva a não acreditar que pessoas de bem possam se tornar bons governantes. Na Itália, o Ministério Público (que, um dia, promoveu a operação Mãos Limpas) propõe criminalizar ativistas que, à revelia das autoridades, buscam socorrer refugiados africanos nas costas da Líbia. O furacão Irma passa pelo Caribe e pela Flórida, deixando um rastro de destruição, e estúpidos ainda desdenham de pesquisadores que nos advertem sobre os desastres climáticos provocados pelo aquecimento global. O desemprego estrutural e a precarização do trabalho campeiam mundo afora, no mesmo ritmo de suas óbvias e inevitáveis consequências: violência social, terrorismo e fascismo. É incrível que palavras como “racismo”, “estupro” e “escravidão” ainda estejam em nossas agendas.

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Quanto ao Brasil, dá até preguiça comentar. O máximo de nossa revolta parece ser gritar “Fora Temer” em meio à algaravia do Rock in Rio... Acompanho as manifestações de intolerância em torno da exposição promovida pelo Santander em Porto Alegre e me recordo de que, há 80 anos, Hitler visitava, em Munique, a Exposição de Arte Degenerada, organizada pelo presidente da Câmara de Artes Plásticas do Reich, na qual eram exibidas obras que não eram “sadias” e que iam de encontro aos “nobres” valores do povo alemão.

Mas, apesar de tudo, leio algo que ainda alimenta em mim o “princípio esperança” de Ernst Bloch. Em meio ao espírito de reconciliação promovido pelo papa Francisco em sua recente viagem à Colômbia, um filho de Pablo Escobar e outro, de uma das vítimas do mais temível narcotraficante de que se tem notícia, se abraçam e se irmanam em nome do perdão, da paz e da concórdia.

E me lembro, então, do saudoso Adoniran Barbosa: “Se assoprarem, debaixo desta cinza tem muita lenha pra queimar”...

Meu país é rico, mas eu não posso ir à escola

No início de setembro, cidades e vilarejos se enchem desde bem cedo de crianças sonolentas e nervosas que enfrentam seu primeiro dia de aula. Essa imagem tão habitual para alguns não é, de forma alguma, algo comum para muitos, muitíssimos outros. Recentemente, vem avançando a escolarização dos menores —entre 2000 e 2015 o acesso à escola primária chegou a 90% das crianças— mas ainda restam 264 milhões fora da escola em todo o mundo. E dois terços deles vivem em países ricos em recursos naturais, mas que paradoxalmente ocupam os últimos postos de desenvolvimento e têm orçamentos em educação inferiores a 3% de seu PIB.

Para chamar a atenção sobre esta realidade tão gritante, a ONG Entreculturas lançou a campanha Escolas em perigo de extinção e, com ela, um relatório intitulado Educação em zonas de conflito que analisa minuciosamente as relações entre o direito à educação, a exploração dos recursos naturais, a paz e o desenvolvimento sustentável.

“A forte pressão sobre os recursos minerais, fósseis, pesqueiros, florestais, agrícolas e hídricos e a luta por seu controle geram, além da degradação ambiental, tensão, conflitos, violência e deslocamentos forçados”, resume o estudo, que descreve como os civis que vivem nessas regiões exploradas veem seus direitos serem violados. Sobretudo o da educação. Os dados falam por si: 87% das pessoas desalojadas no mundo na última década vêm de regiões de exploração mineira e petrolífera.

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Hombeline Bahati, coordenadora de um projeto de melhoria de qualidade de vida do Serviço Jesuíta ao Refugiado, conhece o assunto. Trabalha em Masisi, na castigada região de Kivu norte, na República Democrática do Congo (RDC). Um país com abundantes recursos minerais que há 20 anos está mergulhado em um conflito sem perspectivas de acabar. A RDC é uma mina de tântalo, o minério que faz funcionar os telefones móveis, e todos querem se beneficiar dela.

“Há problemas tribais por conta do acesso por terra, porque com a crise de Ruanda nos anos noventa, os hutus se deslocaram para Masisi e continuam ali, e não há lugar para todos”, explica Bahati, em Madri, onde está para dar visibilidade a seu trabalho. “Então, desde que chegaram os brancos para ajudar e descobriram a riqueza de nossas montanhas, começaram a explorar a terra e não mais só para cultivá-la, mas para obter maiores benefícios. Aí entraram o Governo, as milícias, as grandes empresas extrativistas... já foi uma luta de todos contra todos”, descreve.

Só em Masisi estão 11 campos de refugiados e Bahati trabalha em sete. Estima-se que neles vivem —ou sobrevivem— cerca de 36.000 pessoas. “A partir da formação em diferentes ofícios, essas pessoas podem ser autônomas. São famílias que tiveram de ir para outras cidades ou campos de refugiados para ter o mínimo de tranquilidade, porque sofriam com os confrontos entre guerrilhas e entre estas e o exército regular”.

É um círculo vicioso: menos educação, mais conflitos, mais conflitos, menos educação. E a particularidade de que a briga tem a ver direta ou indiretamente com a exploração dos recursos de um país só piora as coisas. Segundo o relatório, é um agravante para as crianças em idade escolar: “Dez dos países com indicadores educacionais mais baixos são ricos em recursos naturais. Oito deles estão sendo ou foram assolados por conflitos. Dos 40 conflitos produzidos entre o ano de 1999 e o de 2013 foram feitos ataques recorrentes à educação, mais da metade vinculados direta ou indiretamente aos recursos naturais”, enumera. E além disso durante os últimos 60 anos, entre quatro e seis em cada 10 conflitos armados tiveram um vínculo com a exploração de recursos naturais. A maioria foi na África subsaariana, mas também na América Latina e Ásia.

A razão fundamental é que essas contendas se prolongam por mais tempo, estão associadas a maiores níveis de violência, especialmente contra as mulheres, e são mais difíceis de superar. O risco de ressurgimento é muito mais alto, em parte porque os processos de paz e reconciliação não costumam abordar a governança e a gestão dos recursos naturais.

Em Masisi, Bahati é testemunha diariamente de como isso afeta a educação das crianças: “Quando há um conflito nada funciona, nem os colégios. Chegam famílias refugiadas com seus filhos para uma nova comunidade e as escolas da região não têm vagas para todos, estão lotadas, então as crianças não conseguem ter acesso à educação ou têm a uma de muito má qualidade”, descreve.

Há conflitos armados mais violentos à primeira vista, como o da República Democrática do Congo. Neles há ataques a escolas, assassinatos, deslocamentos forçados de comunidades inteiras e uma importante degradação do meio ambiente. Mas existem outros de menor escala que afetam milhões de pessoas de pequenas comunidades locais e têm sua origem na apropriação de enormes extensões de terras que depois serão exploradas por grandes empresas (cultivos de soja em grande escala, por exemplo, na América Latina) ou na luta por recursos decrescentes (água, terras, pastos, pesca...).

Calcula-se que há ativos mais de 2.000 conflitos ambientais, uma cifra que aumentou nos últimos anos em paralelo com os assassinatos de ecologistas, que com frequência também exercem a liderança educacional em suas comunidades. Um dos mais conhecidos foi o de Dorothy Stang, mas não o único. Estes crimes aumentaram 59% entre 2004 e 2015, com 185 assassinatos em 16 países, segundo o último relatório da Global Witness.

Nos conflitos armados relacionados com recursos naturais são frequentes os ataques à educação. Desde os ataques a escolas e professores, a destruição de salas de aula, o recrutamento de meninas e meninos como soldados até a violência contra mulheres e meninas, estudantes e docentes. No caso da República Democrática do Congo, desde 2013 foram destruídas mais de 500 escolas e prejudicados mais de 200.000 alunos.

Nos conflitos ambientais os impactos não são tão visíveis, em parte porque os ataques diretos a escolas, professores e estudantes são menos frequentes, mas também são muito danosos e violam o direito à educação de milhões de menores. A apropriação de terras por parte de empresas desloca a população que nelas habitava ou trabalhava, com a consequente perda de oportunidades educacionais para os afetados. No Quênia há 30.000 escolas em risco de desaparecimento por causa deste fenômeno. Um total de 83% não conta com um título jurídico de propriedade, por isso seus efetivos donos não podem defender-se.

Dentre todos os prejudicados por esse tipo de disputa, as mulheres e meninas têm um problema adicional. A educação lhes dá poder para enfrentar diversas discriminações. Mas se não têm a oportunidade de se formar, serão mais propensas a sofrer outros abusos. É o caso do casamento infantil ou do acesso à saúde e ao emprego. Sem esquecer que nos lugares onde existem conflitos pelos recursos naturais há com frequência violações em massa de mulheres, como arma de guerra. Além das sequelas físicas e psicológicas, elas ficam estigmatizadas por toda a vida e marginalizadas, por isso o tecido social das comunidades acaba destroçado.

Bahati descreve sua experiência com essa situação. Explica que os deslocados perdem o acesso à terra, já não têm onde cultivar e, portanto, deixam de ganhar dinheiro. “Quando muito podem realizar alguma atividade econômica informal, mas se lhes sobra algo do pouco dinheiro que ganham para destinar à educação, vão privilegiar os filhos homens”, conta Bahati. “O fato de as meninas ficarem nos campos sem fazer nada as leva à escravidão sexual: nos meus campos acontece muito”, afirma a congolesa. “Por menos de meio dólar, os pais as prostituem.”

Como se mencionava antes, uma boa parte das pessoas mais pobres do mundo vive em países ricos em recursos naturais. E também boa parte das que passam fome. Essa combinação de pobreza e fome dificulta o acesso à educação e a aprendizagem efetiva: uma criança com fome ou com carências nutricionais não vai render adequadamente na escola. No entanto, a educação é fundamental para sair do círculo da pobreza.

O mesmo ocorre com os problemas de saúde: afetam o direito à educação porque favorecem o absenteísmo, o abandono e as dificuldades de aprendizagem. Outras consequências sobre a saúde são a poluição gerada pelas indústrias da mineração ou dos hidrocarbonetos, a destruição da infraestrutura sanitária e a propagação de doenças.