quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Temer e Lula, a mesma desculpa

A CUT — a central sindical do PT — descobriu a causa do desemprego: a Lava-Jato. Foi ao detalhe: cada preso da operação desempregou 22 mil pessoas. Não, eles não estão de gozação. A tese, digamos, foi defendida pelo secretário de comunicação da central, Roni Barbosa, em discurso de apoio a Lula, ontem em Curitiba.

No mesmo momento, em Brasília, no plenário do STF, o advogado Antônio Mariz sustentava que a Procuradoria-Geral da República “atrapalha o país” ao apresentar denúncias de corrupção contra o presidente. Isso porque, alegou, a PGR “impede Temer de trabalhar”. Chegou a pedir: “Deixem o presidente em paz”.

Um defende Lula, outro defende Temer, mas a tese, digamos, é exatamente a mesma — uma versão nova do clássico “rouba mas faz”.


O pessoal da CUT diz que a Lava-Jato paralisou grandes empreiteiras e outras empresas, especialmente do setor de óleo e gás, o que levou o país à recessão e ao desemprego. Quer dizer com isso que, se não houvesse a operação contra a corrupção, estaria tudo bem: o PIB crescendo, os brasileiros trabalhando, o PT no poder... e os ladrões roubando sossegadamente. (Esta última conclusão, claro, é nossa.)

Como Lula representa aquele momento de expansão, denunciá-lo e processá-lo é uma conspiração dos que não querem o crescimento do Brasil. Entre estes, certamente estão o presidente Temer e seus associados.

Na versão Mariz fica assim: o país está voltando a crescer depois da recessão do lulopetismo, essa recuperação se deve ao presidente Temer, de modo que não é hora de denunciá-lo. Quem faz isso, como o procurador Janot, só pode estar conspirando contra o Brasil.

Mas como não se pode defender publicamente a corrupção, cujas evidências são arrasadoras, os dois lados se desviam da mesma maneira: é coisa dos outros.

Um dos vice-presidentes do PT, o ex-ministro Alexandre Padilha, garantiu ontem que as malas e caixas de dinheiro encontradas no incrível apartamento de Salvador foram resultado de corrupção feita no governo Temer, e não quando Geddel Vieira Lima, o dono ou fiel depositário da dinheirama, foi ministro de Lula e diretor da Caixa Econômica na gestão Dilma. Como pode saber disso? Deu uma olhada nas fotos e “descobriu” que as notas eram novinhas.

Argumento mais do que duvidoso. Geddel ficou anos nas administrações petistas e, na Caixa, controlava financiamentos de bilhões. Foi dali que saiu o grosso da propina, dizem diversos delatores e testemunhas. O governo Temer tem pouco mais de um ano, tempo parcialmente aproveitado por Geddel, que está preso.

Mas isso não livra o PMDB, pois Geddel, membro histórico do partido, estava nos governos petistas como representante de Temer. O que fazer?

Tentar mostrar que Temer e o partido não têm nada com isso. Ontem, o PMDB formalizou o afastamento de Geddel Vieira Lima.

Do mesmíssimo modo, o pessoal de Lula está dizendo que Antonio Palocci — chefe de campanha de Lula e Dilma, ex-ministro dos dois, grande chefe do PT por anos — “nunca foi um verdadeiro petista”.

Tudo considerado, está na cara que há mesmo uma conspiração nacional: contra a Lava-Jato. Claro que os atores dos dois lados sabem perfeitamente que houve grossa roubalheira. Sabem também que não dá para enganar os eleitores por muito tempo.

Tanto sabem que já chegaram às teses mais ridículas. Essa de que cada preso da Lava-Jato gerou 22 mil desempregados é o máximo da estupidez. Mas o advogado Mariz, um homem culto, quase chegou a dizer que denunciar Temer traz de volta a recessão e a inflação.

Diante disso, a estratégia que une todos — de Lula a Temer, passando por Aécio — é barrar a Lava-Jato para minimizar os danos. Ser réu, acusado, é ruim, mas ainda é melhor que preso.

A decisão do STF de ontem — de manter Janot e ressaltar a prerrogativa da PGR de investigar e denunciar o presidente quando julgar necessário — e as sucessivas ações recentes da Lava-Jato indicam que não será fácil acabar com a maior operação contra a corrupção.

Uma última palavra: dizer que o país só avança no “rouba mas faz” e que é preciso ser tolerante com a corrupção para preservar o progresso é como acreditar que todo mundo aqui é ladrão e que este país não tem futuro.

Carlos Alberto Sardenberg

Nos processos, Lula e Temer esperneiam igual

Atire um esquerdista e um direitista dentro de um processo por corrupção e os dois deslocarão suas massas em meio às denúncias pegajosas de forma semelhante, esperneando da mesma maneira. Do ponto de vista penal, não há nenhuma diferença estatisticamente relevante entre Lula e Michel Temer. Os dois reagem aos estímulos acusatórios de forma idêntica: negam o roubo e alegam ser perseguidos.

Até bem pouco, Lula e Temer eram aliados. Deve-se a Lula a escolha de Temer para ser o vice de Dilma. Passaram a se atacar mutuamente depois que Dilma foi deposta. Mas, apesar das acusações recíprocas, está provado que Lula e Temer se lambuzam quando comem manga ou quando precisam se defender em processos criminais.


Em Curitiba, Lula prestou novo depoimento a Sergio Moro, um juiz que considera suspeito. Já recorreu até à ONU para afastá-lo. E nada. Em Brasília, Temer arguiu a suspeição do procurador-geral Rodrigo Janot no STF. Queria afastá-lo para, depois, anular o processo. Não deu.

Dedurado até pelo companheiro Antonio Palocci, Lula manteve a pose de perseguido diante de Moro. No Supremo, o advogado de Temer disse que ele não pode responder pela mala com a propina de R$ 500 mil que seu amigo Rodrigo Rocha Loures recebeu.

Em termos criminais, é impossível distinguir PT e PMDB. Um teste de DNA talvez revele que, diante de um cofre público, os dois partidos têm a mesma mão grande.

Imagem do Dia

Dizem que esse lugar na Bósnia pode ter até 200 dias de sol por ano. Seja ou não verdade, o que parece inegável é que é um dos segredos mais bonitos e escondidos do país. Facilmente acessível de carro a partir de Mostar –a ponte medieval dessa cidade é muito conhecida–, é possível estacionar a menos de um quilômetro e descer andando até a nascente do rio Buna, sob uma gruta (que se pode visitar de barco) em um penhasco do qual emerge um mosteiro construído pelos otomanos no século XVI (na foto).
Blagaj (Bósnia) 

Eleitor não é idiota

“É um bosta, é um merda”. Estádio de futebol? Longe disso. Após a gourmetização das arenas futebolísticas, é mais comum ouvir frases do tipo em palácios brasilienses. Os impropérios foram dirigidos ontem pelo vice-presidente da Câmara dos Deputados justamente ao responsável por zelar pelas boas relações do governo Temer com… os deputados. O ministro fez que não ouviu e deixou o deputado xingando sozinho, o que só aumentou sua ira.

Nada de muito anormal para uma turma que, a cada legislatura, bate recorde de processos, investigações, prisões e cassações. O único risco de chamar o atual Congresso brasileiro de o pior da história é ser desmentido pelo próximo Congresso. Risco alto.

Mas cusparadas e palavrões parlamentares são incômodo – se são – apenas para os próprios. Para quem não frequenta o Congresso, o problema não é o que eles dizem, mas o que eles fazem. Em especial, o que eles votam. Esta legislatura está caprichando.

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Em uma sessão esvaziada, na terça-feira à noite, a comissão que urde a impropriamente chamada reforma política aprovou a proibição da divulgação de pesquisas eleitorais na semana anterior à eleição. Isso mesmo: você, eleitor, não poderá saber quem está na frente e quem está atrás, se seu candidato tem chances de chegar ao segundo turno ou não, nem se há uma onda de votos nulos e brancos se aproximando. Você não pode saber.

Não pode saber porque os deputados pressupõem que você é um idiota. Que você é incapaz de pensar por si mesmo. Que você é um ser manipulável como um peão. Não se trata de julgarem os outros por si próprios, mas de projetarem nos adversários o que eles mesmos possam fazer. Sim, porque a proibição da divulgação de pesquisas não vai afetar as picaretagens nem os picaretas.

Em tempos de mídias sociais universais, abundarão mais pesquisas apócrifas, falsas e fictícias tanto menos pesquisas registradas, científicas e de institutos conhecidos puderem circular. A proibição pretendida pelos deputados não vai produzir um deserto informativo. Vai, sim, plantar um canavial de desinformação.

Acabar com a oferta de pesquisas cuja metodologia é verificável, que se sabe quem pagou por elas e qual foi o questionário aplicado não suprimirá a demanda do eleitor por informação. Vai criar um mercado paralelo de produtos sem fiscalização, com a mesma qualidade e confiabilidade de quem aprovar essa lei.

A cada eleição a decisão do voto é mais tardia. Proibir a divulgação de pesquisas a uma semana do pleito é proibir as pesquisas mais importantes e determinantes para o eleitor. Submeter a medição das preferências do eleitorado a uma espécie de Lei Seca justamente quando o eleitor mais precisa de informação terá os efeitos da proibição de bebidas alcóolicas nos EUA de um século atrás: reservará mercado para mafiosos.

“Ah, mas as pesquisas influenciam o resultado da eleição”. Claro que influenciam, assim como o noticiário sobre as campanhas e a propaganda eleitoral dos candidatos na TV influem no que sai das urnas. Por essa lógica, o jornalismo devia ser proibido. Foram notícias da investigação do FBI sobre os e-mails de Hillary Clinton que ajudaram a eleger Donald Trump nos EUA.

Felizmente, o Supremo vem derrubando todas as tentativas de censura das pesquisas eleitorais no Brasil. A última foi em 2006, como lembra nota da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) contra a mais recente tentativa do Congresso de cercear o direito à informação.

O eleitor não é idiota. Ele tem o direito de saber o que quiser – e fazer o que bem entender com essa informação. Inclusive eleger deputados que xingam e escarram uns nos outros.

Pau que dá em Chico...

 Castiga-se embaixo o que se recompensa em cima. O roubo pequeno é delito contra a propriedade, o roubo grande é direito dos proprietários.

 
Os políticos sem escrúpulos não fazem outra coisa senão agir de acordo com as regra do jogo de um sistema onde o êxito justifica os meios que o tornam possível por mais sujos que sejam: as trampas contra o fisco e contra o próximo, a falsificação de balanços, a evasão de capitais, a quebra de empresas, a invenção de sociedades anônimas de fachada, os subfaturamentos, os superfaturamentos, as comissões fraudulentas
Eduardo Galeano, "De pernas pro ar"

O Brasil explicado em galinhas!

Pegaram o cara em flagrante roubando galinhas de um galinheiro e levaram para a delegacia.

- Que vida mansa, heim, vagabundo? Roubando galinha pra ter o que comer sem precisar trabalhar. Vai pra cadeia!

- Não era pra mim não. Era pra vender.

- Pior. Venda de artigo roubado. Concorrência desleal com o comércio estabelecido. Sem-vergonha!

- Mas eu vendia mais caro.

- Mais caro?

- Espalhei o boato que as galinhas do galinheiro eram bichadas e as minhas não. E que as do galinheiro botavam ovos brancos enquanto as minhas botavam ovos marrons.

- Mas eram as mesmas galinhas, safado.

- Os ovos das minhas eu pintava.

- Que grande pilantra.

... Mas já havia um certo respeito no tom do delegado. 

- Ainda bem que tu vai preso. Se o dono do galinheiro te pega... 

- Já me pegou. Fiz um acerto com ele. Me comprometi a não espalhar mais boato sobre as galinhas dele, e ele se comprometeu a aumentar os preços dos produtos dele para ficarem iguais aos meus. Convidamos outros donos de galinheiro a entrar no nosso esquema. Formamos um oligopólio. Ou, no caso, um ovigopólio.

- E o que você faz com o lucro do seu negócio?

- Especulo com dólar. Invisto alguma coisa no tráfico de drogas. Comprei alguns deputados. Dois ou três ministros. Consegui a exclusividade no suprimento de galinhas e ovos para os programas de alimentação do governo e superfaturo os preços. 

O delegado mandou pedir um cafezinho para o preso e perguntou se a cadeira estava confortável, se ele não queria uma almofada. Depois perguntou:

- Doutor, não me leve a mal, mas com tudo isso, o senhor não está milionário?

- Trilionário. Sem contar o que eu sonego do Imposto de Renda e o que tenho depositado ilegalmente no exterior.

- E, com tudo isso, o senhor continua roubando galinhas?

- Às vezes. Sabe como é. 

- Não sei não, excelência. Me explique.

- É que, em todas essas minhas atividades, eu sinto falta de uma coisa. Do risco, entende? Daquela sensação de perigo, de estar fazendo uma coisa proibida, da iminência do castigo. Só roubando galinhas eu me sinto realmente um ladrão, e isso é excitante. Como agora. Fui pego, finalmente. Vou para a cadeia. É uma experiência nova. 

- O que é isso, excelência? O senhor não vai ser preso não.

- Mas fui pego em flagrante pulando a cerca do galinheiro!

- Sim. Mas primário, e com esses antecedentes...

Luis Fernando Verissimo

Censuras pós-modernas

“O que a gente pode fazer por você hoje?”
Bordão publicitário do Banco Santander
“Vale a pena observar que os próprios órgãos sexuais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários” 
Sigmund Freud, em "O mal-estar na civilização"

Existiria um ponto de encontro entre o capital financeiro, a arte e o sexo? Uma pista inicial talvez resida na conexão entre dinheiro e cultura. Outra pista poderia vir das tensões estruturais entre o poder e, de novo ela, a cultura. De todo modo, é uma discussão intrincada, labiríntica.

Quando se fala disso, invariavelmente alguém aparece com aquela velha e batida frase “quando ouço falar em cultura, logo puxo meu revólver”, que era atribuída ao nazista Göring (mas parece ter sido criada por Hanns Jost, exatamente para criticar o nazismo). Logo em seguida vem aquela outra, que se credita a um magnata do show business americano: “Quando ouço falar em cultura, saco meu talão de cheques”. São chavões no debate cultural, mas são pertinentes.

O revólver e o talão de cheques se revezam como signos de poder que espreitam a arte, assim como o monopólio da violência (Estado) e a concentração de riqueza (capital) se revezam no comando – no direcionamento explícito – dos processos culturais. Mandam fazer e desfazer. O nazismo mandava fazer os filmes de Leni Riefenstahl, que, mesmo sendo nazistas, emulavam certa beleza. Com a outra mão, mandava desfazer acervos, tornando proscritas as obras classificadas como “arte degenerada”. A grana também manda fazer e desfazer. Manda fazer, digamos, celebrações como o Rock in Rio. E manda desfazer a exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira.


A exposição, que estava aberta havia quase um mês no Santander Cultural em Porto Alegre, foi abruptamente encerrada depois que surgiram protestos na internet alegando que as imagens ofenderiam as tradições da família brasileira, etc. O banco comprou (em sentido figurado) a tese de defesa dos bons costumes etc. e acabou com a coisa. Defendeu-se: “Isso não faz parte de nossa visão de mundo nem dos valores que pregamos”.

Acerca da declaração do banco, duas contextualizações semânticas são necessárias. Primeira: o termo “isso” se refere às imagens mais controversas da exposição, com alusões a universos eróticos e léxicos pornográficos. Logo, “isso” é “aquilo”. Segunda contextualização: o termo “valores” não designa valores pecuniários, ainda que o enunciador seja um banco, mas “valores morais”. E o adjetivo “morais” decorre diretamente da categoria “moral e bons costumes”, que carrega uma nostalgia do puritanismo, de um ideal de abstinência santa, de combate carnal contra o desejo.

Pergunta: como se desenha a compatibilidade axiológica entre essa moral estrita e as manobras radicais da ciranda financeira? Não há respostas à vista.

De todo modo, como as criações de Bia Leite e Adriana Varejão estariam se chocando com os tais “valores”, o banco, proprietário do espaço em que as obras se abriam ao público, mandou fechar a exposição. Net takeaway: fecha!

Pergunta: esse tipo de critério moral pode ser considerado válido e efetivo para dar os parâmetros de fruição da arte? A resposta é não. Mas por quê?

O discurso moralista faz parte da rotina. Há moralismos de esquerda, há moralismos de direita (como no caso presente). Há moralismos católicos, há moralismos islâmicos, há moralismos protestantes, há moralismos ateus. O problema, aqui, é a “validação” (para usar um vocábulo caro, sem trocadilho, ao linguajar dos estrategistas a serviço dos conglomerados bancários) do discurso moralista por uma casa de cultura. O problema é dar força de lei ao discurso moralista.

Fazia tempo que o argumento moralista não aparecia com tamanha explicitude. É um argumento feio quando velado; tornado explícito, é uma escatologia vulcânica, uma mula sem cabeça desferindo coices nos olhos das crianças. O argumento moralista é o quinto cavaleiro do apocalipse.

Embora a palavra cultura, multívoca, seja avessa a simplificações, podemos afirmar que a função da cultura nos domínios da arte não é outra que não a de abrir um espaço de liberdade entre a imaginação e as tiranias moralistas. A arte a serviço de uma moral não é arte (não é nem mesmo decoração de parede). Moralismos de todas as religiões já queimaram livros, já levaram artistas ao suicídio, já quiseram reescrever fábulas infantis (inclusive as de Monteiro Lobato), já execraram o modernismo, já impuseram filtros ou pedágios entre o olhar do público e a expressão da beleza, já satanizaram as traduções mais ou menos estéticas das sexualidades, acusando-as de vulgaridade. O moralismo adora desqualificar a arte que não lhe agrada dizendo que ela não é expressão do “belo”, mas apenas do pornográfico. Acusa de pornografia a excitação para a qual não sabe dar resposta e se refugia na desculpa de que a pornografia, quando assim chamada, é uma expressão estética passível de censura.

Mas nem a pornografia é censurável nem a exposição Queermuseu era pornográfica. Ora essa. O moralismo se excita em brios violentos: “Crianças de escolas públicas vão ver isso! Manda fechar! É o fim dos tempos!”. O que eles fariam com as estátuas em mármore representando o hermafrodita (Hermes e Afrodite num só corpo), que a cultura grega nos legou? Esconderiam dos alunos das escolas públicas? O que fariam com o mito de Leda e o cisne? Acusariam de zoofilia? O que fariam com Xenofonte, quando ele comenta a imprudência de Critóbulo por ter roubado um beijo ao filho de Alcebíades, que era um jovem de “tamanha beleza e frescor”?

A censura moral é a face menos pudica de uma tara autoritária que se perdeu do objeto. É de mau gosto, é inaceitável.

E o que o Santander pode fazer por você hoje? Vejamos: que tal voltar atrás?

Paisagem brasileira

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Centro histórico de \João Pessoa (PB)

Je suis Geddel

De quem será a paternidade do ex-ministro, ex-deputado e ex-político “influente” Geddel Vieira Lima, que saiu da Bahia para a história do Brasil como o artista que conseguiu amontoar 51 milhões de reais em dinheiro vivo, e sem o menor vestígio de origem, num apartamento de Salvador? Naturalmente, com o ritmo alucinante que a corrupção alcançou atualmente neste país, Geddel pode ser superado a qualquer momento por algum concorrente e cair várias posições na tabela nacional da ladroagem; deixará então de aparecer como estrela do noticiário, ao lado de potências como Joesley Batista ou Rodrigo Janot, e corre o risco de acabar um dia como um tremendo gente fina. Mas enquanto isso não acontece, ele é hoje a própria fotografia de como se faz política no Brasil – roubando e escondendo malas e caixas com notas de 100 e 50 reais. A imagem do seu tesouro secreto, que correu o Brasil e o mundo, vale mais do que uma tonelada de editoriais da imprensa, discursos e manifestos de analistas políticos: corrupção é isso, como se vê na foto, e não é preciso explicar mais nada. Explicar o que? Político brasileiro vive assim. Está na fotografia.

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É muito curioso, nessas condições de temperatura e pressão, que não tenha ficado claro até agora quem são os pais políticos de Geddel. Um colosso como ele, ameaçado de entrar no Livro de Recordes da roubalheira mundial, parece, aos 58 anos de idade, não ter tido uma biografia até um ano atrás – é como se tivesse caído do céu direto no Palácio do presidente Michel Temer, como ministro de Governo. Tudo o que se sabe dele pela mídia, salvo uma ou outra exceção, é que Geddel é um “ex-ministro de Temer”, ou que é “envolvido com Temer”. É claro que sim. Foi nomeado ministro há cerca de um ano, quando Temer assumiu a presidência, e ali não durou mais do que seis meses – teve de ser demitido, depois de uma história confusa com apartamentos de luxo em Salvador. Também é envolvido com Temer – e como. Quem não é envolvido com Temer, aliás? O homem está na política há quarenta anos, falando com todo o mundo, todos os dias, em todos os governos.

Mas é rigorosamente claro, também, que o dono os 51 milhões não começou a vida em 2016. Não é preciso fazer nenhum teste de DNA para constatar que, na política brasileira atual, Geddel tem pai, sim, e até mãe. Raramente se fala, mas isso não muda o fato de que Geddel foi não só ministro do ex-presidente Lula, como vice-presidente da Caixa Econômica no governo Dilma – um dos mais notórios antros de ladroagem na história da República. Na ponta do lápis, por sinal, foi muito mais de Lula e de Dilma do que de Temer: contra os seis meses que passou no governo atual, ficou três anos inteirinhos como ministro da Integração Nacional de Lula e dois anos e nove meses como mandarim na Caixa de Dilma. Obviamente não nomeou a si próprio, sem que Lula e Dilma soubessem de nada – se bem que o ex-presidente, caso perguntado, não iria surpreender ninguém se dissesse que não, nunca conheceu esse Geddel. É tudo uma trama para impedir que ele ganhe as eleições de 2018. Tripla paternidade, então? Outro problemão é saber quanto do dinheiro foi roubado em qual época. Será que os 51 milhões vieram só no governo Temer – ou é resultado de toda uma obra?

De tudo isso sobra o seguinte: você pode achar que Temer é ladrão porque Geddel foi ministro dele, mas aí também precisaria achar que Lula é tão ladrão – e Dilma é tão ladra – quanto o mesmo Temer que tanto acusam. Que raio de presidente é esse Lula – capaz de deixar um criminoso agir livremente como ministro durante três anos seguidos e não perceber nada de errado com ele? Ou é cúmplice, ativo ou passivo, ou é um idiota – a menos, é claro, que Geddel tenha agido corretamente esse tempo todo, e os três – Lula, Dilma ou Temer – sejam perfeitamente inocentes. Enquanto essas dúvidas não se esclarecem, a conclusão mais coerente é que todos eles, e 90% dos políticos brasileiros, são extraordinariamente parecidos. O que mais gostariam de dizer hoje, no fundo, é a mesma frase – Je Suis Charlie – que os franceses utilizaram anos atrás para afirmar sua solidariedade com os jornalistas da revista Charlie Hebdo assassinados pelo terrorismo islâmico. Só teriam de traduzir: ”Je Suis Geddel”.

Atual crise nos dá a sensação de que não há saída visível para o país

Depois de citar alguns versos de um dos poemas mais conhecidos de Carlos Drummond de Andrade, terminei meu último artigo com esta pergunta: “Que seria do mundo sem sonhadores e poetas?”

No mesmo dia da publicação, recebi e-mail do velho colega e amigo Luiz Carlos Abritta (que honra tê-lo como leitor!), notável trovador e poeta, além de advogado, dizendo-me que meu modesto texto o remeteu ao grande romancista argentino Ernesto Sábato, que um dia desabafou assim: “Que seria da humanidade sofredora se não fossem os santos, heróis e poetas, que nos trazem pedaços do absoluto?”

Mas ainda me valho, por incrível que lhe pareça, leitor, nestes dias de espantosas revelações e de forte indignação, desta legítima pérola do poeta Fernando Pessoa: “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. São, pois, os sonhos que ainda me mantêm vivo.

Deixemos de lado, porém, pelo menos por enquanto, os poetas e intelectuais. Fixemos-nos num ou noutro aspecto da gravíssima crise que tomou conta do país há muitos anos, mas que hoje nos dá a sensação amarga de que não há mesmo nenhuma saída visível à frente.

O resultado dessa breve concentração/reflexão nos fará concluir que nossas instituições, embora demonstrem resistência, nunca passaram por instante tão delicado. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e, agora, a Procuradoria Geral da República, aos olhos atentos de boa parte do enganado, sofrido e exausto povo brasileiro, têm sido importantíssimos no agravamento da atual crise. Seus atores, em vez de cuidarem das instituições que representam, têm preferido a ribalta.

A reviravolta, na delação premiada dos executivos da J&F, provocou estupefação não só na comunidade jurídica, aqui e no mundo, mas, profundamente, na sociedade brasileira como um todo. Não se trata de levar em conta ou não o que possa ter sido feito de positivo, na operação Lava Jato, pela Polícia Federal e/ou pelo Ministério Público. Salta aos olhos que o trabalho feito por eles, incluindo-se a adoção da colaboração premiada para solucionar casos intricados, merece aplauso.

A questão é esta: pode um agente público (trata-se, no caso em tela, do procurador da República Marcelo Miller), durante a apuração de graves crimes de corrupção, na qual vinha atuando ao lado de seu chefe maior, aceitar oferta de emprego de advogado daquele que está sendo investigado pela instituição à qual está intimamente ligado?

Em meu parco entendimento, não pode, nem do ponto de vista legal (não se caracterizaria aí o crime de corrupção passiva?), nem, muito menos, do ponto de vista ético. E esse convite não despertou no procurador geral Rodrigo Janot nenhuma suspeita? Janot achou isso normal? Ou, na realidade, nunca soube dessas tratativas de seu colega? E o pior de tudo é que Marcelo Miller, meses depois, foi demitido do escritório ao qual aceitou filiar-se ainda como procurador da República – uma demissão, aliás, com a qual, até agora, ninguém se preocupou...

É claro que o que fizeram até aqui (ou deixaram de fazer) Miller, Janot e os empresários Joesley Batista e Ricardo Saud (estes, tidos como bandidos) levantou desconfianças em cabeças até mesmo laureadas.

E o papo de Janot com o advogado dos delatores?

O melhor é esperar pelo livro prometido por Palocci. Pelo capítulo revelado em seu depoimento ao juiz Sergio Moro, Lula se lascou.

Mordendo o próprio rabo

O legado mais trágico da institucionalização da corrupção no Estado brasileiro – em todos os poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), em todos os níveis (federal, estadual e municipal) e abrangendo todas as cores ideológicas, sem exceção – é a descrença da população em geral no regime democrático. Assistimos, impotentes, a defesa de governos autoritários e o fortalecimento do discurso da intolerância. E, apáticos, vemos, um a um, desabarem os pilares que sustentavam nossos sonhos de justiça, harmonia e liberdade.
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Vladimir Herzog, morto na cela
O cantor e compositor sertanejo Zezé Di Camargo, que junto com seu irmão Luciano, com quem faz dupla, detém uma das maiores fortunas do meio musical brasileiro, calculada em R$ 500 milhões, declarou ao canal de Youtube da jornalista Leda Nagle que o Brasil nunca teve uma ditadura. Segundo ele, nós vivíamos um “militarismo vigiado”. E, após relativizar as torturas e as mortes sob o regime dos generais – “não chegou a ser tão sangrento assim” –, ele defendeu a volta do “militarismo” para “reorganizar a coisa” e “entregar de novo” o poder aos civis.

O deputado federal Jair Bolsonaro, ex-capitão do Exército e pré-candidato à Presidência da República, encarnando esse ideário de “valores” da ditadura, vem contabilizando um impressionante crescimento de intenção de voto. Conforme pesquisa do instituto DataPoder360, realizada nos dias 9 e 10 de julho, Bolsonaro já conta com 21% das intenções de voto, contra 26% do pré-candidato petista, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A nostalgia por um regime de forças, algo impensável há algum tempo, vem se tornando raciocínio bastante comum nos mais diversos meios sociais.

Bolsonaro ocupou recentemente o microfone da Câmara dos Deputados para criticar o seriado da TV Globo, “Os dias eram assim”, cujo enredo passa-se nos anos 1970, chamando-o de “farsa” e “mentira”. Ele só faltou pedir a suspensão do programa, em nome da “verdade” e da “pátria”, passo, no entanto, dado pelo Movimento Brasil Livre (MBL), seção do Rio Grande do Sul, que conseguiu fechar a mostra “Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira”, que estava em exposição no Santander Cultural, em Porto Alegre, em nome da moral e dos bons costumes.

A coordenadora do MBL no Estado, Paula Cassol, condenou a exposição por, segundo ela, fazer apologia à pedofilia, zoofilia e pornografia. A mostra, que propunha uma reflexão sobre gênero e diversidade sexual, reunia 273 obras de 90 artistas brasileiros, entre os quais Ligia Clark, Candido Portinari, Alfredo Volpi e Adriana Varejão. Embora não tenha visitado a exposição, Paula Cassol afirmou que “isso não é arte”, e liderou a pressão contra o banco, que acabou cancelando a mostra. Também a Arquidiocese de Porto Alegre se manifestou, em nota oficial, denunciando a exposição por utilizar “de forma desrespeitosa símbolos, elementos e imagens, caricaturando a fé católica e a concepção de moral que enleva o corpo humano e a sexualidade como dom de Deus”...

No dia 19 de março de 1964, dia de São José, padroeiro das famílias, um grupo estimado entre 300 e 500 mil pessoas, lideradas pela Igreja Católica, realizou em São Paulo a chamada Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Replicadas em várias partes do Brasil, essas marchas, que contavam com apoio de diversas organizações civis e classistas, e que visavam combater “o ateísmo comunista”, restaurar a ordem e restabelecer a moral, encorajaram o golpe militar que nos sentenciou a 21 anos de obscurantismo.

Ao contrário do que advogam os entusiastas do autoritarismo, o período militar não conheceu estabilidade política. A cada sucessão brigavam entre si os vários setores das Forças Armadas para fazer prevalecer seus interesses: golpe de 1969 que guindou o general Garrastazu Médici ao poder; rebelião de militares linha dura contra o general Ernesto Geisel; pacote de Abril de 1977 que sufocou a oposição; rebelião de militares linha dura contra o general João Figueiredo. Também não foi um tempo de estabilidade econômica: a inflação média era de 20% ao ano (contra 7,5% ao ano no período democrático, não contando o governo de transição de José Sarney), e ultrapassava os 200% ao ano quando devolveram o poder aos civis. Além disso, a corrupção grassava nas mais de 500 empresas estatais existentes, que incluíam siderúrgicas, bancos, rádios, refinarias, etc.

Durante o período militar, censores profissionais definiam o que era ou não era arte, o que podia ou não podia ser publicado, visto ou ouvido. Durante o período militar, qualquer um podia parar na cadeia e ser torturado ou até morto por manifestar opinião divergente. Durante o período militar estavam proibidas manifestações de rua. Os militares destruíram os sistemas de educação e saúde e ampliaram o fosso entre ricos e pobres. Mas, principalmente, os militares forjaram a geração que manda hoje no país, contra a qual se insurgem aqueles que defendem... a volta da ditadura militar...