segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Dorothy, Palocci, Lula e o planeta Clarion

Na década de 1950, três sociólogos americanos (Leon Festinger, Henry Riecken e Stanley Schachter) entraram para um culto que previa que o mundo iria acabar no dia 21 de dezembro de 1954. O culto se baseava (como de costume) nas palavras sagradas de um “profeta”. No caso, de Dorothy Martin, uma dona de casa nascida em Chicago.

Tal qual Chico Xavier, Dorothy recebia mensagens psicografadas. Só que as mensagens de Dorothy não vinham do além, mas, sim, do espaço. Mais precisamente, do planeta Clarion.

Em uma dessas mensagens, os alienígenas de Clarion informaram para Dorothy que um disco voador viria à Terra à meia-noite do dia 20 de dezembro de 1954, e que salvaria as pessoas que estivessem prontas para serem salvas. A dizer: as pessoas que acreditassem nela. Quem ficasse para trás seria vítima de uma grande inundação.

Eu sei, isso é absurdo. No entanto, pessoas abandonaram empregos e cursos universitários. Teve até gente que deixou a família para se juntar a Dorothy. Foi assim que, no dia 20 de dezembro de 1954, um grupo seleto de indivíduos se reuniu na frente da casa de Dorothy Martin para esperar um ET que viria à Terra especialmente para guiá-los a um disco voador.


Em um brilhante livro, intitulado “When Prophecy Fails”, os três sociólogos americanos descreveram o que testemunharam naquela noite fatídica. Vai aqui um resumo dramático, adaptado livremente a partir da Wikipédia:
"A tensão era palpável. Quando o relógio bateu à meia-noite e cinco e nenhum alienígena apareceu, o grupo concordou que o relógio estava adiantado. Arrumaram outro relógio, que marcava 23h55m. À meia-noite e cinco desse segundo relógio — dez minutos depois do fim do mundo, portanto — o grupo se entreolhou estarrecido: será que os alienígenas os haviam esquecido? E a inundação que se aproximava? Todos encaram Dorothy, à espera de uma resposta. E Dorothy os encarou de volta, enigmática e silenciosa. Quatro horas depois, pressionada por tantos olhares, a profeta finalmente teve um acesso de choro. As lágrimas de Dorothy rolaram por 45 minutos. Finda a choradeira, ela constatou que os seus seguidores ainda estavam ali, à espera de um sinal. Foi então que Dorothy ergueu as mãos aos céus e apelou para a boa vontade divina... E os deuses astronautas, evidentemente, não a decepcionaram. Tomada por poderes sobrenaturais, Dorothy perdeu o controle sobre seu braço direito. A sua mão, em franca desobediência ao seu sistema nervoso central, rascunhou uma mensagem para lá de urgente. Finalmente, notícias de Clarion. Os seguidores de Dorothy se entreolharam, estarrecidos e aliviados. É que, desta feita, as notícias eram boas. Para espanto de todos, a mensagem recebida por Dorothy dava testemunho de que a fé dos ali presentes havia salvo a humanidade. Os deuses, impressionados com o fervor e a dedicação do grupo, haviam decidido cancelar o juízo final. E, sem juízo final, por que diabos os ETs enviariam um disco voador à Terra? Chegando a esta brilhante conclusão, os seguidores de Dorothy puderam dormir tranquilos, sem temer o apocalipse e sem perder a confiança que tinham na sua guia."

Em seu pequeno livro, os três sociólogos americanos atribuíram a relutância dos seguidores de Dorothy em aceitar a realidade a um fenômeno psicológico denominado de dissonância cognitiva. Quando confrontados por fatos inegáveis que contradizem visões de mundo que defenderam publicamente, a esmagadora maioria dos grupos sociais prefere negar a verdade desses fatos a sofrer a vergonha de ter que reconhecer o erro que cometeram, mesmo que, para isso, precisem criar explicações alternativas absurdas.

Se a tese de “When Prophecy Fails” estiver correta, logo logo estaremos lendo em algumas seletas colunas de jornal e em textos divulgados em nossa melhores universidades que os depoimentos de Antonio Palocci, de Marcelo Odebrecht e de todas as demais testemunhas e delatores que relatam supostos crimes de Lula e do PT desde o mensalão não só foram obtidos sob tortura, como também foram induzidos telepaticamente pelos juízes Joaquim Barbosa e Sergio Moro. E que, obviamente, a mídia golpista retransmitiu as telepatias desses juízes nefastos por todo o país, o que explica a perda de popularidade do líder petista. É ou não é, camaradas?

Estranho, agora !?



É no mínimo estranho que o PT tenha abandonado a bandeira da ética na política e não punido, até agora, seus militantes comprovadamente envolvidos em falcatruas
Frei Betto, um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores

Temer pede 'serenidade' e 'maturidade'! Hummmmm... Que tal honestidade?

O medo dos panelaços baniu Michel Temer das redes nacionais de tevê. Mas a informalidade das redes sociais oferece ao presidente um refúgio para a divulgação dos seus vídeos. Sem hora marcada para as vaias, Temer exibe uma peça atrás da outra. Na penúltima, levada ao ar nesta sexta-feira, ele se vangloria das estatísticas econômicas. No final, pede “serenidade” e “maturidade” à plateia.

Celebrada por Temer, a inflação baixa se deve mais à recessão do que à ação do governo. Quanto aos juros, numa economia que hesita em tirar o pé do freio, eles caem por gravidade. Em meio aos fogos, o presidente soltou um rojão pela aprovação no Congresso da nova meta fiscal do governo. O rombo de R$ 139 bilhões virou uma cratera de R$ 159 bilhões. Por que gargalha Sua Alteza?

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Encantado consigo mesmo, Temer celebra os seus ''feitos'' num instante em que o ex-ministro Geddel Vieira Lima, seu amigo de três décadas, volta para a cadeia. Foi preso nas pegadas da apreensão dos R$ 51 milhões entesourados em Salvador, num apartamento de Ali-Babá. Simultaneamente, vem à luz a delação do operador de propinas Lúcio Funaro, que acusa Temer de receber e intermediar propinas. Vai às manchetes também a denúncia da Procuradoria contra a banda ladra do PMDB do Senado.

Num cenário assim, em que o dinheiro público continua saindo pelo ladrão porque os ladrões continuam entrando no Orçamento, Temer se surpreenderia se pudesse assistir à reação dos mais de 80% de brasileiros que querem vê-lo pelas costas. Se pudesse se pronunciar ao mesmo tempo, a plateia talvez gritasse para Temer: “Fale-me de economia, que eu puxo logo um ronco. Fale-me de 'serenidade', que eu puxo logo a carteira. Fale-me de 'maturidade', que eu puxo logo um coro: Que tal uma dose de honestidade?”

Imagem do Dia

Alentejo
Alentejo (Portugal)

2018?

Dom Sebastião, rei de Portugal, foi sequestrado ou morto na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, no norte da Africa. Séculos depois, ainda havia quem depositasse esperanças em sua volta para redimir Portugal.

Mensalão, Lava-Jato e a incontornável constatação de que o Brasil não é uma sociedade emergente rumo ao desenvolvimento, e sim um capitalismo de Estado, selvagem e de compadrio, com uma desigualdade intolerável e instituições porosas e permeadas pelo crime.

Tudo isso movido pelo patrimonialismo, personalismo e prevalência das lealdades de grupo sobre as leis que deveriam ser iguais para todos, como mestre DaMatta insistentemente explica nesta página de jornal que orgulhosamente compartilho periodicamente.

E qual é a solução que estamos todos a ansiar? A volta de Dom Sebastião nas eleições de 2018.

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Para uns, ele é o Lula. Monarcas e líderes religiosos têm, afinal, o poder de se autoperdoar. Para outros, é o Bolsonaro, patética afirmação da carência das palmadas de um pai ignorante. Para outros, qualquer coisa entre esses extremos, mas ainda assim vestido com o manto sebastianista (de acordo com o figurino de mais agrado do cliente).

O diálogo e o debate verdadeiros estão interditos. De um lado, a narrativa de um golpe de Estado feito pelo Parlamento e confirmado como dentro das leis pela corte suprema assegura antolhos defensivos ao exército vermelho-corporativo, mas bloqueia qualquer reflexão mais elaborada.

De outro lado, a emergência do reequilíbrio das contas fiscais e a de sinalizar a inversão da trajetória insolvente da dívida pública parecem justificar a interdição do debate da triste realidade institucional do país. Dão a impressão de justificar também excluir da discussão o problema de prazo mais longo, mas ainda maior, de que já estamos com os dois pés no brejo da armadilha da renda média — e isso numa sociedade com desigualdade aviltante.

Só que, como todos sabemos, Dom Sebastião não virá. O que poderia vir seria subir um ou dois degraus na evolução da qualidade de nossa democracia. Mudar o modelo de governança. Sem isso, com Lava-Jato ou sem, em pouco tempo tudo será como antes, ainda que, felizmente, não no quartel de Abrantes.

Para isso de nada servem sebastianismos. O que poderia ajudar seria um debate político mais profundo e cujas principais ideias fossem bem compreendidas pela população. Que conjugação de forças poderia avançar um pouco nessa caminhada? Muito curiosamente, as forças cujas antenas estão sintonizadas com o século XXI, com uma sociedade aberta e global, sejam elas de centro, esquerda ou direita.

E quem se opõe vigorosamente são as forças da falsa esquerda, corporativista, anacrônica e territorialista, e as forças da elite pantanosa e com ojeriza à competição, que preferem tudo como sempre foi no Brasil.

A esperança não precisa vencer o medo. A história não é nós contra eles. A esperança precisa vencer o vazio de ideias.

O novo Brasil sem Lula

Os países são maiores e mais importantes do que seus governantes. E mais ricos, humana e culturalmente. O Brasil também é, e não pode ficar estagnado no “Lula sim” ou “Lula não”. Se ficar preso à disputa política e às redes de corrupção, o país corre o risco de atrasar a mudança que a sociedade está pedindo.

Já são poucos os analistas que confiam que o Brasil possa voltar a ser presidido por Lula e seu partido, que foi uma peça importante da história recente. Seu ciclo político termina, como indica a chuva de denúncias e acusações que caíram sobre o ex-presidente mais carismático e de maior projeção internacional, esta semana da boca de Antonio Palocci, que foi seu principal ministro, amigo e conselheiro, e, agora, o primeiro líder de seu partido a romper o pacto de silêncio. O Brasil está saindo, ferido e desconcertado, de um período de incerteza política e de medos de voltar ao pior de seu passado. Pode ser que sejam feridas que deixem marcas difíceis de curar ou talvez, como escreveu em uma nota no Facebook minha colega Carla Jiménez, podem ser “os problemas de crescimento da democracia”.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Nessa gangorra entre pessimismo e otimismo, também prefiro pensar como minha colega que, desta tormenta, o Brasil poderá sair mais maduro, com instituições saneadas e fortalecidas, e sem que a democracia tenha sofrido perdas irreparáveis.

Se a etapa histórica do lulismo deu seus frutos e representou um momento importante para o progresso do país, o pós-Lula não tem por que ser um passo atrás na consolidação do processo democrático de um país chave no continente.

Os pessimistas podem ver no pós-Lula e pós-PT uma derrota da democracia e das conquistas sociais. No entanto, se já sabemos como foi o passado, com suas luzes e sombras, o futuro, que começará com as eleições de 2018, ainda está aberto e todos os caminhos são possíveis.

A responsabilidade, neste momento, já não está nas mãos de uma classe política, de esquerda ou de direita, que aparece despida de sua dignidade, maculada pelo descaramento das malas de dinheiro da corrupção de Geddel Vieira de Lima, aliado do presidente Michel Temer, e pela gravidade dos “pactos de sangue” como o selado, ao que parece, entre Lula e o capital para se perpetuar no poder. Essa classe política está agonizando e seu destino estará dentro de um ano nas mãos da sociedade que poderá expressar nas urnas seu poder democrático de mudar as coisas.

Dessa vez, graças sobretudo às redes sociais e à liberdade de expressão dos meios de comunicação que nenhum governo, nem os corruptos, eliminou, a sociedade, até a menos ilustrada, conhece muito bem o resultado da política de corrupção e do enriquecimento fácil. Esta é a hora da verdade. É a hora de um verdadeiro pacto, não de caráter mafioso com o velho, mas de compromisso com a ética e a democracia.

Não será uma mudança fácil, mas nada novo nasce sem dor. Não há na História humana uma única criança que nasça rindo. Nascem todas com medo do novo.

Os pactos de sangue da história da política levam, em sua ambiguidade, à impossibilidade de que apareça sangue novo e renovador. São a gangrena dos processos de liberdade.

Os brasileiros, nas próximas eleições presidenciais, deverão fazer um pacto de esperança de encontrar caminhos novos para demonstrar ao mundo que foram mais fortes que a corrupção e a falta de ética de seus políticos.

É isso, aliás, o que esperam, fora do Brasil, aqueles que gostam e invejam este país, mescla de sabores e culturas, alegre caleidoscópio de felicidade.

O jogo

Nada de pessoal. Ao bater o desespero, cada um que tente salvar-se mesmo que à custa de entregar a própria mãe, quanto mais um amigo de fé, companheiro, camarada.

Palocci entregou Lula, seu ex-chefe de governo e de gang, em troca de menos anos de cadeia e de preservar parte da fortuna que amealhou por meios nefastos. Lula está furioso? Paciência. É do jogo. Embora para ele o jogo tenha terminado.

O jogo para o empresário Joesley Batista, que gravou Temer no porão do Palácio do Jaburu, ainda não acabou com a sua prisão decretada na última sexta-feira à noite pelo ministro Edson Fachin, um dos relatores da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal.

A prisão é de cinco dias. Poderá tornar-se provisória e renovada quantas vezes a lei permitir. A Joesley, porém, ainda restam fichas na mesa.

O jogo (Foto: Arte: Antonio Lucena)

Segue o jogo para Rodrigo Janot, Procurador-Geral da República. Ele já teve mais sorte. Parecia pronto para ganhar quando denunciou Temer por corrupção passiva.

O governo balançou, balançou, mas não caiu. Ninguém quer vê-lo no chão. Pagou caro aos deputados que votaram contra o pedido de licença para processar Temer. Sua popularidade despencou. Está perto da casa do zero. Um assombro!

Janot imagina sair do jogo apenas com fortes escoriações devido à lambança de ter se deixado enganar por Joesley que lhe sonegou informações. Não para de disparar flechadas enquanto isso.

A última será novamente em Temer, a quem acusará por corrupção e obstrução da justiça. Lula jamais disse quem o traiu no caso do mensalão. Na certa porque não foi traído. Sabia de tudo. Janot foi traído por vaidade e onipotência.

Joesley guarda gravações inéditas para oferecer quando negociar outra vez os benefícios agora suspensos da delação. Sabe-se lá o que seu advogado combinou com Janot no último sábado à mesa de um boteco de Brasília sob a proteção de grades de cerveja.

Uma vez preso, preso deveria Joesley permanecer porque debochou do Ministério Público, de ministros togados e do distinto público. É um criminoso contumaz e debochado.

Tão cedo Palocci abandonará o jogo. Tem cartas nas mangas para baixar e chances de obter da Lava Jato o prêmio pela delação que ainda não fez .

Como exímio jogador e conhecedor profundo dos mais cabeludos segredos das altas rodas do poder nos últimos 15 anos, ainda causará severos estragos à reputação alheia, especialmente à de Lula a quem pouco ou nada deve mais. Antes pelo contrário.

Às vésperas do estouro do mensalão, depois de ter-se reunido com uma vidente no seu apartamento de São Bernardo do Campo, Lula contou a um amigo que o visitava sobre o furacão que estava por vir.

Profetizou: “Todo mundo vai achar que o governo não mais se sustentará e que talvez nem chegue ao fim. Pois acredite: a montanha vai parir um rato. Pensam que vão me destruir. Vou me reeleger e fazer o meu sucessor”. Na mosca!

Lula não disse como sobreviveria. Mas adiantou: “Vou aproveitar para me livrar de Zé Dirceu e até de Palocci”.

De José Dirceu, então chefe da Casa Civil do governo, Lula se livraria dali a um mês. Entregou a cabeça dele para salvar a sua.

No ano seguinte, livrou-se de Palocci, escapando ao escândalo da quebra do sigilo fiscal do caseiro que flagrou o então ministro da Fazenda na companhia de mocinhas alegres e lobistas famintos.

Pressionado pela família e o horror ao cárcere, chegou a hora da desforra para Palocci. Ela será maligna.

Paisagem brasileira

Rua das Mercês, Diamantina, Batista Gariglio

Napoleões

Napoleão Bonaparte era um escritor frustrado. Tinha escrito contos e poemas na juventude, escreveu muito sobre política e estratégia militar e sonhava em escrever um grande romance. Acreditava-se, mesmo, que Napoleão considerava a literatura sua verdadeira vocação, e que fora a sua incapacidade de escrever um grande romance e conquistar uma reputação literária que o levara a escolher uma alternativa menor, conquistar o mundo.

Estive pensando no que isso significa para os escritores de hoje e daqui. Em primeiro lugar, deve levá-los a pensar na enorme importância que tinha a literatura nos séculos 18 e 19, e não apenas na França, onde, anos depois de Napoleão Bonaparte, um Vitor Hugo empolgaria multidões e faria História não com batalhões e canhões, mas com a força da palavra escrita, e não em conclamações e discursos, mas, muitas vezes, na forma de ficção.

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Não sei se devemos invejar uma época em que reputações literárias e reputações guerreiras se equivaliam dessa maneira, e em que até a imaginação tinha tanto poder. Mas acho que podemos invejar, pelo menos um pouco, o que a literatura tinha então e parece ter perdido: relevância. Se Napoleão pensava que podia ser tão relevante escrevendo romances quanto comandando exércitos, e se um Vitor Hugo podia morrer como um dos homens mais relevantes do seu tempo sem nunca ter trocado a palavra e a imaginação por armas, então uma pergunta que nenhum escritor daquele tempo se fazia é essa que hoje fazem o tempo todo: para o que serve a literatura, de que adiantam as palavras, onde está a nossa relevância?

*

Depois que a literatura deixou de ser uma opção tão respeitável e vigorosa para um homem de ação quanto a conquista militar ou política – ou seja, depois que virou uma opção para generais e políticos aposentados, mais um consolo para a perda de poder do que poder – ela nunca mais recuperou o seu pé de igualdade. Ou, digamos assim, sua respeitabilidade, na medida em que qualquer poder, por armas ou por palavras, pode ser respeitável. Hoje, a literatura só participa da política, do poder e da História como subalterna e como instrumento. Ou como cúmplice.
*

Acho que todos nós que escrevemos no Brasil, principalmente os que têm um espaço na imprensa para fazer sua pequena literatura ou simplesmente dar seus palpites, temos essa preocupação. Nunca sabemos exatamente do que estamos sendo cúmplices. Podemos estar servindo de instrumentos de alguma agenda de poder sem saber, podemos estar contribuindo, com nossa indignação ou nossa gozação, para legitimar alguma estratégia secreta, sem querer. Ou podemos simplesmente estar colaborando com a grande desconversa nacional, a que distrai a atenção enquanto a verdadeira história do País acontece em outra parte, longe dos nossos olhos e indiferente à nossa crítica. Não somos relevantes, ou só somos relevantes quando somos cúmplices, conscientes ou inconscientes.
*

Mas comecei falando da frustração literária de Napoleão Bonaparte e não toquei nas implicações mais importantes do fato, pelo menos para o nosso amor-próprio. Se Napoleão só foi Napoleão porque não conseguiu ser escritor, então temos esta justificativa pronta para o nosso estranho ofício: cada escritor a mais no mundo corresponde a um Napoleão a menos. A literatura serve, ao menos, para isso: poupar o mundo de mais Napoleões. Mas existe a contrapartida: muitos Napoleões soltos pelo mundo, hoje, fariam melhor se tivessem escrito os romances que queriam. O mundo, e certamente o Brasil, seria outro se alguns Napoleões tivessem ficado com a literatura e esquecido o poder. Não me peçam para citar nomes.

Gravando!

Sorria. Ele está sendo filmado. Se há um lado bom nisso tudo que vem acontecendo é que agora a gente está vendo e ouvindo no original. Ninguém precisa contar. Se quiser ver tudo ou ouvir tudo é só ter tempo e procurar. Pá, tã, tã, como disse o cara que pensou em fazer strike com o Brasil, nos encaçapar. Talvez seja isso que esteja nos deixando abestalhados: é igual a olhar pela janela os vizinhos, melhor do que usar copo para ouvir na parede

Como jornalista, repórter, sempre gostei e tentei descrever detalhes especiais da cena que registrava. As cores, as roupas, as expressões, os fatos e dramas paralelos. O tempo no grande ex- Jornal da Tardeesmerou isso ainda mais, aprendendo com os grandes mestres. Não tinha nada disso que temos hoje, e dos jornais dependia toda a informação. Hoje os textos dos jornais estão mais duros. É isso, aconteceu isso, o cara acusou; o outro lado. Difícil ler detalhes mais suaves, a não ser em algumas notas esparsas em colunas. De vez em quando uma foto genial também aparece para quebrar esses tempos duros que vivemos. Isso dá uma diferenciada.

Mas agora você não precisa mais de ninguém. Tá lá. Você escuta as frases, sofre com a língua portuguesa sendo estraçalhada na língua de boiboys, bêbados, sim, mas da própria luxúria e poder. Conhece a realidade pura, como se estivesse sentado ao lado deles na mesa do restaurante e quase nem quisesse comer, tão interessante a conversa alheia. Na hora do jantar, assistindo ao Jornal Nacional nos últimos dias, é capaz de você ter ficado com o garfo no ar e a boca aberta várias vezes.
Com aquelas malas e caixas recheadas de dinheiro que moravam sozinhas num belo apartamento em Salvador.

Com o depoimento de Antonio Palocci botando fogo, para não dizer outra coisa, no chefe, na chefa, no pessoal do PT, e admitindo o modelo espúrio do projeto de poder deles, construído a partir de 2002. Projeto que da boca pra fora vinha das bases; a verdade é que sempre veio é das bases empresariais e de poder e dominação econômica. Um rio que correu tão sujo quanto o Tietê.

Você – se jantava assistindo ao noticiário – deve até ter mastigado mais a comida enquanto via passar uma a uma as fotos de mais uma série de denunciados, desta vez os 7 do PMDB. “O País dos Sete Ladrões” – daria título e filme para conquistar o Oscar. Por recorde de corrupção já devem estar concorrendo. No começo da semana outra lista dessas – aí em cima do PT – também era melhor que lista de supermercado: dois ex-presidentes, não sei quantos senadores, um quilo de deputados. Surreal. Foi flecha pra tudo quanto é lado.

Mas, enfim, como dizíamos, vendo e ouvindo tudo no original, dá para ver as caras deles, os modelinhos, as barriguinhas, os sorrisos irônicos, as lágrimas de crocodilo, o linguajar chulo com relação às mulheres, sentir a entonação e a ironia de como falam. Como se defendem, como acusam, como mentem.

Pior é que a indigestão, surpresa, preocupação e temor não estão limitados ao noticiário local. É bomba de hidrogênio voando sobre o Japão. É a natureza mostrando as manguinhas e rodopiando na passarela com Harvey, Irma, José e Kátia e arrasando áreas inteiras na sua passagem. Levantando plateias para fugir e a maré. Me digam se em apenas uma semana três furacões, um terremoto e o tempo seco que atrapalha até a respiração pode ser normal.

Tenho meditado muito sobre velocidade das mudanças nos últimos anos, e especialmente sobre as super populações. Quem as comandará? Como se alimentarão? Quanto tempo viverão? Ou sobreviverão?

Será que tem alguém gravando?

A botija

Nada passou despercebido na Civilização do Açúcar diante do olhar penetrante e da reflexão original de Gilberto Freyre.

Com habitual leveza poética, a Professora Fátima Quintas (Assombrações e Coisas do Além: a convivência entre vivos e mortos na Civilização do Açúcar) destaca a visão freyriana sobre o assunto: “A casa-grande é o ´consciente’ e o ‘inconsciente´ da nossa memória, a pureza e a impureza, a virtude e o pecado, a consagração e a derrota”. A confluência das memórias, diz o recifense de Apipucos: “É um passado que se estuda tocando com os nervos”.

Foi assim que chegaram aos nordestinos, em especial, aos pernambucanos, lendas, fábulas, crendices, superstições, um mundo povoado de vivos e mortos, movido por fantasmas e assombrações.

Durante gerações, nem sempre a história da carochinha era o soporífero eficaz para o sinhozinho. De vez em quando, a mucama usava repertório de lendas e personagens assustadores como papa-figo, mula-sem-cabeça, cumade fulozinha, lobisomem, curupira, bicho-papão. O aconchego da proteção servil abreviava o “pegar no sono”.

Do caldo moído do imaginário popular, aflorou um recipiente de barro vidrado, bojudo, com uma asa – a Botija – objeto que Câmara Cascudo, assim, transpôs do folclore como herança holandesa: “Dinheiro enterrado, o mesmo que botija para o sertão do Nordeste, ouro em moeda, barras de ouro ou de prata, deixados pelo holandês ou escondidos pelos ricos, no milenar e universal costume de evitar o furto ou ladrão de casa de quem ninguém se livra”. (Dicionário do Folclore Brasileiro. Ediouro, 1998).

Pois bem, o Brasil moderno (?) alargou ainda mais o conceito de botija. Com a escala e a velocidade empregadas no assalto ao patrimônio nacional, o mercado ofereceu aos delinquentes “botijas de aluguel”. Tá na foto. 51 milhões de reais armazenados sob o teto de um apartamento alugado. Não há engenharia financeira nem “gênios em derivativos” que atendam à necessidade da lavagem da grana.

Assim, o valor simbólico e real da velha botija não se limita ao espaço entre vivos e mortos que servia para proteger a opulência e alimentar o pecado da avareza. Agora, a botija serve aos vivíssimos! Cofre dos megaladrões. No Recife o boi já voou e cédulas, também. Aposto que tem dinheiro emparedado. Vi todas as temporadas de Narcos. Credo Cruz! É tempo de todos os tráficos. No Brasil, o mais sutil e resistente: o tráfico da influência política.

Gustavo Krause