segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Ouça, Temer

Tenho discretas razões para supor que Temer compreenderá o equívoco de abrir para a mineração, na Amazônia, uma área do tamanho da Dinamarca. No passado, ele se tornou dono de terras em Alto Paraíso, e a comunidade que trabalhava há anos ali foi a Brasília pedir ajuda. Terras em Goiás foram distribuídas a políticos do PMDB. Temer nem sabia exatamente como eram e o que produziam. Pressionado pelos agricultores alternativos que trabalhavam ali, Temer resolveu abrir mão de suas terras e as doou à cidade de Alto Paraíso. Agora, não se trata apenas de alguns, mas de 47 mil hectares. As terras não são de Temer, mas do Brasil e, de uma forma indireta, de toda a Humanidade. Quando os militares criaram a reserva, a ideia era pesquisar e explorar os recursos de uma forma estratégica. Não creio que pensaram nisso como um momentâneo desafogo a uma crise econômica provocada pela incompetência e corrupção.

Não quero raciocinar em termos de estatal ou privado, ou mesmo de nacional ou estrangeiro. Depois que os militares criaram a reserva, muita água passou por baixo da ponte, ou mesmo por cima, com os eventos climáticos extremos.

No fim da década dos 1980, o Brasil ainda era um vilão internacional porque desmatava a Amazônia. Lembro-me de uma reunião de cúpula na Holanda em que Sarney não foi porque tinha medo de uma reação negativa. Na época, além das queimadas e de outros fatores, houve ainda o episódio de negarem passaporte a Juruna.

Com a realização da Rio-92, o maior encontro de estadistas no pós-guerra, o papel do Brasil começou a se alterar. De vilão ambiental, tornou-se um interlocutor importante e passou a ser visto como ator decisivo nos acordos sobre o aquecimento global. A Amazônia tornou-se para o mundo um espaço a ser preservado, respeitada a autonomia nacional sobre suas terras. Países como a Noruega acharam que se a Amazônia era importante para a sobrevivência de todos, deveriam investir nela em projetos sustentáveis. E fizeram isso.
Você mesmo esteve na Noruega, embora a tenha confundido com a Suécia.

A grande crise iniciada em 2008 e fatos posteriores, como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, enfraqueceram mas não destruíram a disposição planetária de contribuir com a Amazônia.


Sua decisão coloca em risco grande parte do trabalho feito por todos nós para recolocar o Brasil no âmbito dos países comprometidos com a preservação do planeta. E de uma certa maneira, despreza os potenciais investimentos em projetos sustentáveis em nome de uma saída que me parece anacrônica e predatória.

Tudo bem, Temer, você dirá que serão respeitadas as regras ambientais para a mineração. Mas quem percorre Minas Gerais e outros pontos do país constata rapidamente que elas não são respeitadas no Sudeste, onde teoricamente, concentrase o grosso da fiscalização.

No segundo decreto, você criou um comitê ligado à chefia da Casa Civil para monitorar as atividades de mineração nessa faixa que engloba parte do Amapá e do Pará. Não consigo me convencer disso. O chefe da Civil, Eliseu Padilha, é investigado por crimes ambientais no Mato Grosso e no Rio Grande do Sul. E as acusações são amplas, vão de desmatamento a construção de pistas de pouso clandestinas. Pouca gente sabe disso. Mas está disponível na internet e no próprio Supremo.

Além de arruinar o trabalho de construção da imagem nacional, o governo nos propõe uma fórmula de controle na qual a raposa toma conta do galinheiro. O namoro do PMDB com as riquezas naturais da Amazônia vem de longe. Romero Jucá é o mais destacado parlamentar buscando fórmulas para regulamentar a mineração nas terras indígenas.

Nesse momento, Temer, você está cedendo às piores influências no manejo da Amazônia. Se fosse simplesmente um opositor, talvez pudesse me alegrar com essa decisão. Antes de ser opositor, sou brasileiro e lamento ver o Brasil caindo de novo naquele desprezo internacional que sentimos em Haia, no fim da década de 1980. É uma ilusão você pensar que tudo dará certo. Até mesmo Padilha e Jucá, que devem estar comemorando, não percebem que estão atraindo um furacão contra eles. Deveriam ser mais discretos, mas a aposta é de levar tudo porque aqui não se pune ninguém.

No momento em que publico este artigo, estou tentando entrar na reserva, que não tem acesso fácil. O argumento de que garimpeiros clandestinos estão por lá não justifica esta abertura às grandes empresas. Aliás, Temer, existe uma possibilidade de você estar se deixando execrar inutilmente. As empresas que você quer atrair também estão no mundo e devem sofrer pesadas campanhas em seus países de origem.

Não me importa que você confunda Noruega com Suécia, Paraguai com Portugal, ou mesmo reviva a União Soviética. O essencial é não confundir a Amazônia com Goiás, onde tantas terras foram passadas a líderes do PMDB. É um lugar tão complexo, capaz de sepultar não apenas os sonhos pioneiros como o de Henry Ford, mas também as grandes trapaças.

Sucuri de silício

Tudo se perverteu. A política, a democracia, o conceito de verdade (acrescida do prefixo pós), o debate público, a própria ideia de mercado foi alterada pela nova tecnologia (“máquinas engolfando a humanidade feito uma sucuri de silício”, na imagem forte de Eugênio Bucci), que também pôs em questão os partidos políticos, os sindicatos e a imprensa como mediadores entre o cidadão e a política.
O próprio homem moldado pelos ideais da Ilustração e pela crença no progresso sofreu espantosas alterações regressivas depois que o espírito científico rompeu os laços entre sujeito e objeto, corpo e espírito, os laços que criam os valores humanos

Os 513 partidos

Estamos no início de 2019. Após uma acirrada disputa eleitoral, o presidente eleito começa a se movimentar para construir maioria na Câmara dos Deputados. Pouco mais de um ano antes, o Congresso havia aprovado a reforma política instituindo, entre outras mudanças, o distritão. Pela nova regra, foram eleitos os deputados mais votados em cada estado. São agora mais do que nunca, 513 “reis do voto”.

E começam os problemas. O presidente eleito tem uma agenda de reformas, mas precisa do Congresso para conseguir levar adiante o seu projeto de governo. Na solidão do seu gabinete, ele se lembra do tempo de como era “mais fácil” a relação Executivo-Legislativo.

O sistema eleitoral era o proporcional, aquele no qual os “famigerados partidos políticos” eram atores importantes na coordenação do jogo eleitoral, bem como do processo de construção de maiorias no Congresso. Era um paraíso? Longe disso.

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Com 28 agremiações com representação na Câmara, uma das mais altas fragmentações do planeta, o presidente e sua equipe tinham que fazer um enorme esforço de coordenação, para entender e atender às demandas das lideranças. Estas, por sua vez, tinham outro grande esforço de negociar a fidelidade dos deputados.

Ao Executivo cabia negociar. Uma ponte aqui, um cargo acolá, emendas para o setor de atuação do deputado, ou mesmo conversas em que se identificavam parlamentares que, por afinidade com o projeto, tendiam a votar com o governo; enfim, havia de tudo.

Entre trocas e barganhas legitimamente esperadas na negociação política até o escancarado fisiologismo, os presidentes, desde 1988, tocaram o barco, num percurso de grandes e tortuosas turbulências, como sabemos.

Mas e em 2019? A reforma vendida como possibilidade de salvação do sistema político, lá em 2017, cobra o seu preço. Com voto centrado no candidato, agora praticamente o único responsável por sua eleição nos distritos, cada parlamentar eleito tenderá a agir como um partido.

Qual incentivo um deputado com um milhão ou mais de votos, por exemplo, terá para seguir a orientação partidária, numa votação qualquer, quando o partido não lhe deu um voto sequer nas ruas?

O sistema proporcional, que dava incentivos à coordenação dos partidos na arena política, foi substituído por um modelo que pavimenta a ação individual dos deputados. Resumo, trocamos a desgastada e complexa relação Executivo versus 28 partidos pelo modelo Executivo versos 513 cabeças.

Na solidão do seu gabinete, o presidente eleito terá que direcionar recursos, cargos e mais o que tiver pela frente para negociar quase que individualmente com cada parlamentar. Não esqueçamos, o sistema presidencialista pressupõe construção de maiorias no Congresso para o governo funcionar.

O que os parlamentares estão prestes a votar, voltemos a setembro de 2017, aumentará o preço da barganha política do Congresso, ou melhor, de cada parlamentar eleito em 2018. Se já estava difícil governar com o presidencialismo de coalizão, tão mal compreendido, imagina governar num modelo com 513 indivíduos no comando do barco?

Gente fora do mapa

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A verdade é 'fake'

Alarmam-se as redes com os processos que se avizinham a partir das notícias falsas, dos perfis inventados, das injúrias e das calúnias, dos conteúdos perigosos e mentirosos, que se espalham feito epidemia no universo virtual. Cálculos falam que 73% do conteúdo internáutico é fake! Facebook convoca legiões de caçadores de mentiras e falsos conteúdos, Google investe fortunas para tentar filtrar o esgoto de imagens, textos e aplicativos, que poluem inocentes smartphones nas mãos de crianças, idosos com nudes arrepiantes, esquartejamento ao vivo. Alarmes soam com ameaças nucleares, e golpes desviam bilhões de dólares de transações online. Prostituem-se crianças, ensina-se a suicidar ou a fazerem-se bombas.

O presidente americano chama todos os meios de comunicação de "fake news". Confusos, americanos desconfiam de que Alzheimer é contagioso e perguntam se Trump é uma torre ou um cone, se ele é alaranjado ou se tudo é fake.

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Acreditar em quem ou no que é o grande desafio. Abrir um e-mail, entrar no grupo de whats do trabalho, ficar quietinho, responder ou deletar? Tudo virou um risco, uma ameaça.

Cheio de likes e haters, prós e antis, o equilíbrio está tonto. Não se pode discordar ou frustrar sob o risco de perder seguidores. Amigos? Bem, a falta de tempo anda separando, e não há conexão que compense.

Verdade seja dita: a própria verdade está em desuso. Precisamos checar primeiramente se não é pegadinha, zoação ou sacanagem. Fala sério! E lá vem gozação.

Meme pra cá e pra lá, trolação. Apita o whats, é um fulano esquiando; depois, convite para velório da tia da ex, a turma do trabalho no happy, o parça no estádio com uma gata. Tudo ao mesmo tempo, correndo o risco de dar pêsames ao chefe no boteco, um like para ex no velório.

Sentimento? Fake. Importância de tudo isso: nenhuma! Na verdade, vai tudo ser deletado, lixo. Melhorar a memória para sacanear alguém.

A vida tem sido uma grande mentira. Políticos mentem; novelas são mentiras; séries, ficções, amores jurados um dia serão esquecidos, substituídos ou eternizados em ódios doentios. Somos fakes. Fingimos, representamos, traímos, chantageamos, falamos o que querem ouvir.

Verdade é igual a CPF: cada um tem o seu, que é sempre diferente do dos outros. É pessoal, intransferível, pode ser falsificado, ficar sujo, negativado, mas é pessoal. Conta sua história, seus dramas, seus valores e suas conquistas. Pode falir, orgulhar, resgatar. O problema é que precisamos viver em CNPJ. Diferentes verdades para se chegar a uma só verdade. Diferentes histórias buscando uma em comum. Muitas versões, mas somente um fato. Aí nós perdemos: cada qual buscando suas diferenças, distanciando-se do aconchego, da paz, do milagre, que é a semente que nos faz "comuns"!

Foro privilegiado completará 100 dias na gaveta

O Brasil sempre lidou de forma engenhosa com o problema do foro privilegiado. A questão é discutida exaustivamente há anos. Exausto, o país nunca resolve nada. De repente, surgiu no Supremo Tribunal Federal o esboço de uma saída. Mas o ministro Alexandre de Moraes encarcerou numa gaveta o processo que pode limitar o direito ao foro, restringindo o privilégio aos crimes cometidos por congressistas e autoridades durante e em razão do exercício da função pública. Na próxima sexta-feira, em plena Semana da Pátria, o aprisionamento dos autos completará 100 dias.

A sessão em que Moraes pediu mais tempo para analisar o processo foi interrompida quando o placar estava 4 a zero a favor da limitação do foro. Rosa Weber, Marco Aurélio Mello e Cármen Lúcia acompanharam a posição do relator Luís Roberto Barroso, favorável à regra restritiva. Num colegiado de 11 ministros, faltavam dois votos para atingir a maioria que remeteria para a primeira instância do Judiciário o grosso dos processos criminais que tramitam no Supremo à espera de julgamentos que nunca chegam.

Não há ilegalidade na atitude de Moraes. Pedidos de vista estão previstos no regimento do Supremo. Mas as circunstâncias sujeitam o ministro à maledicência. Indicado por Michel Temer para ocupar a cadeira que foi de Teori Zavaschi no Supremo, Moraes protege com seu gesto pelo menos oito ministros do atual governo que respondem a inquéritos na Lava Jato. Entre eles Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência), os dois auxiliares mais próximos do presidente.

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De acordo com estatísticas mencionadas pelo relator Luís Barroso, há na Suprema Corte cerca de 500 processos criminais contra detentores de foro especial. ''O prazo médio para recebimento de uma denúncia pelo STF é de 565 dias”, disse o ministro. No caso de Fernando Collor, a demora foi de 732 dias. “Um juiz de 1º grau recebe uma denúncia, como regra, em menos de uma semana, porque o procedimento é muito mais simples”, acrescentou Barroso. Num processo contra Aldemir Bendini, ex-presidente do Banco do Brasil e da Petrobas, Sergio Moro recebeu a denúncia em dois dias.

Nas palavras de Barroso, o atual sistema ''é feito para não funcionar'' e se tornou uma ''perversão da Justiça''. O ministro realçou a necessidade de revisão da encrenca. “Há problemas associados à morosidade, à impunidade e à impropriedade de uma Suprema Corte ocupar-se como primeira instância de centenas de processos criminais. Não é assim em parte alguma do mundo democrático.''

Suprema ironia: na semana passada, o próprio Barroso autorizou a abertura de mais um inquérito contra o pluri-investigado senador Renan Calheiros (PMDB-AL). Com isso, ajudou a consolidar a migração de Renan da categoria de anomalia para o estágio de aberração jurídica. Além de ser réu numa ação penal, o senador ocupa o topo do ranking dos encrencados no Supremo. Coleciona 18 inquéritos, 13 dos quais relacionados à Lava Jato.

Afora Renan e os ministros de Temer, a investigação do maior escândalo de corrupção já varejado no Brasil empurrou para os escaninhos do Supremo, por enquanto, 64 deputados e 28 senadores. A maioria compõe o bloco que dá sustentação legislativa ao governo que Alexandre de Moraes já serviu como ministro da Justiça. A coincidência dá asas à tese de que o processo sobre o foro se encontra preso numa gaveta para livrar os políticos sob suspeição dos rigores das sentenças de juízes como Sergio Moro, de Curitiba, e Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro. O falatório decerto é injusto.

Os tristes decaminhos

Quanto tempo, meu Deus, vai-se passar ainda até que um homem, rodando por essas estradas brasileiras de conservação tão precária, mas assim mesmo tão lindas, possa-se dizer, como se diz um americano, um alemão, um russo, um holandês, um canadense, um sueco – e pelo menos isto: não há fome? Até quando essas faces terrosas, esses olhos opacos, esses braços finos, essa pasmaceira filha de uma longa indigência sem remédio? Quando virá o dia em que, ao se parar num botequim para um café, não nos chegará de mão estendida uma criança imunda e endefluxada a nos exigir uma esmola com um duro olhar adulto? Ou um idiota de boca torta, os braços ainda saudosos da posição fetal, para nos dizer de sua angústia em sons afásicos, fazendo-nos olhar para outro lado como se não o estivéssemos vendo? Sim, porque o que é que adianta ver?


São seres humanos, patrícios nossos, que tiveram a desgraça de ser concebidos na miséria, de semente já enfraquecida por endemias e carências – e isto numa terra vasta e generosa, em que se plantando, tudo dá. Ficam parados à porta dos casebres e das tendinhas, ou estão sempre em marcha ao longo das rodovias, transportando suas avitaminoses, seus vermes intestinais, sua dor de dentes crônica, para ir trabalhar num roçado cinco léguas adiante. E à noitinha voltam, silenciosos e apressados, pelas mesmas estradas, para o prato sem proteínas que lhes serve urna velha mulher jovem, a quem faltam os incisivos, enquanto no chão de terra batida choraminga sobre os próprios excrementos o último fruto de sua triste condição. Porque, sim! Constituem, em sua sórdida pobreza, um casal: a célula da criação; um casal que, um amparado no outro, segue em frente, na direção onde o levam a vida e a necessidade, repartindo o trabalho, a comida, o sonho. Sonho? – que sonho? Um casal capaz de criar, produzir, vender, ganhar, ter uma casinha com uma cama, uma mesa, um fogão a lenha e uma privada. Capaz de comprar uma merendeira para a filhinha que vai à escola. Escola? – que esperança!

Não, não são seres humanos. São bichos. É um verme humano, uma lombriga de calça e suspensórios, um ascarídeo que leva outro dentro. Cobrem o teto e a cabeça com palha, fumam palha, dormem sobre palha, são palha eles próprios – palha seca que se desfaz à simples fricção dos dedos.

Por que me apiedo deles? O que posso eu fazer por eles quando acima, muito acima de mim, muito acima do meu país, erguem-se forças cujo fragílimo equilíbrio reside em sua própria capacidade de destruição; forças cuja agressividade já independe, porque ultrapassaram todos os limites do cognoscível, forças que se podem desencadear num átimo por excesso de tensão?

No entanto, corta-me o peito vê-los em exposição como figuras de barro de um mau artista folclórico, acocorados onde os larga sua imemorial fadiga, pitando e cuspindo a saliva grossa do fumo de rolo, portadores, quase sempre, de conjuntivite crônica, às vezes rindo um riso matreiro com as gengivas desdentadas. Matreiro, por quê? Que espécie de inteligência podem ter senão a do instinto aguçado pela necessidade de sobrevivência, que lhes faz preciso o machado, rápida a foice, fulminante a faca que mata para não morrer?

São patrícios nossos, que não têm voz e não têm vez. Em suas vísceras carcomidas se gera lentamente o câncer, alimentado, também, por uma progressiva indiferença. Que adianta lutar? A única coisa a fazer é o gesto de cortar ou ceifar, levar a mão à boca e virar de um golpe a pinga ruim, onde fermenta a cólera assassina, deslocar os ossos da companheira esquálida num breve ato de prazer animal. Prazer? – que prazer? E conformar-se ao ver-lhe o ventre, já inchado de farinha, inchar mais, inchar mais, até, numa primeira lua nova, expelir um feto natimorto, ou destinado a morrer no primeiro ano de vida, quando não vinga por milagre para repetir, anos mais tarde, aquela mesma miserável mímica.

Que tristeza! E aí estão eles, pelas estradas do Brasil adentro, pobres imagens de cerâmica barata toscamente esculpidas. Às vezes, à porta do barraco, ponteiam sem emoção sons de viola e cantam toadas trêmulas, que falam da mesmice de sua vida, ou amores trágicos e valentias justiceiras, tendo como únicos ouvintes uma lua, no céu, um mocho num galho, uma aranha em sua teia, um vira-lata amigo, com as costelas à mostra.

Um dia, amanhecem mortos. Morreram de nó na tripa, transnominação eufemística para o câncer, a ruptura de hérnia, o vôlvulo, a úlcera gástrica, a cirrose hepática. E são enterrados em cova rasa, no cemiteriozinho mais próximo: primeira e última generosidade do dono de terra para quem trabalham; senão, é abrir um buraco por ali mesmo e jogar o defunto dentro. Deixam para trás uma nova meretriz, que vende a pele frouxa e os seios deflatados para sustentar a prole. São gente sem história.

Meu amor, acorda, não me deixes, só, nesta sala noturna, a escrever estas tristezas. Não me deixes mais recordar esses casebres pobres de beira-estrada onde dormem e morrem irmãos meus em quem se descoloriu o sangue. Eu os estou vendo agora, dentro da noite negra a mugir inaudivelmente sua indiferença, os magros corpos magoados pela tábua dura das enxergas. Eles não sabem por que vieram, não sabem por que permanecem, não sabem para onde vão. Eles só sabem de uma coisa: ninguém se lembra deles, e eu também não quero lembrar mais. Vem, amiga, me serve um uísque, dose dupla, muito gelo. E põe depressa um disco dos Beatles na vitrola.
Vinícius de Moraes (Jornal do Brasil, 31/12/1969)