quarta-feira, 2 de agosto de 2017


Ser como todo mundo?

Uma palavra resume a crise brasileira: a igualdade. Conforme tenho salientado no meu trabalho e nesta coluna, o Brasil não tem problemas com a desigualdade. Ele ama de paixão as hierarquias e as gradações que estão em toda parte. Em nossas leis sobram privilégios, penachos, recursos, isenções...

Nossa formação nacional teve no escravismo, no patrimonialismo aristocrático e no compadrio das casas-grandes e nos grandes apartamentos dos “bairros nobres” de nossas cidades o seu centro e razão. Não é fácil ser igualitário com essa folha corrida.

Sempre fomos dinamizados por elos pessoais oficializados e legais. Nosso projeto de vida funda-se no arrumar-se e no “subir na vida”. Alcançar o baronato — ser alguém —, “virar famoso” e, do alto da sua celebrização, ter direito a fazer tudo sem ser molestado pelo bando de caretas que, infelizmente, não são como nós.

No Brasil, a igualdade é vivida como uma ofensa ou um castigo

Saber com certeza quem é quem, mapear com precisão genealogias familísticas, poder dizer com um riso superior — “conheci Frank Sinatra quando ele morava em Hoboken e era um merdinha”; ou, “esse eu conheço!” — confirma a nossa ontologia segundo a qual “conhecer” ou relacionar-se pessoalmente é um modo de estar num mundo ordenado por ricos e pobres, superiores e inferiores, homens e mulheres, brancos e negros, limpos e sujos. O modo de navegação social confirma um universo ordenado em camadas e é melhor você estar “por cima”.

Nossa questão mais angustiante, o que eventualmente nos tira do sério, não é saber que tudo tem um dono, e dele receber ordens. Não! É entrar numa sala onde outras pessoas também aguardam na fila, e todos se olham com uma ofensiva indiferença porque ninguém sabe quem é quem. No Brasil, a igualdade é vivida como uma ofensa ou um castigo.

O anonimato associado à cidadania nos perturba. Para nós, o maior castigo não é a prisão, é saber que somos iguais a todo mundo porque burlamos a lei que foi feita para todos, menos para nós. Quando indiciados, viramos vítimas de uma maldosa igualdade republicana!

No Brasil lido como Estado nacional, somos todos “cidadãos”. Mas no Brasil relacional da casa e das amizades que nos impedem de dizer não, somos todos parentes e amigos. Não somos como todo mundo.

Saiu ao pai ou ao avô... Merece a nomeação. Ademais, é afilhado do presidente e tem “pinta” e “jeito” de alto funcionário: não vai fazer feio.

A “aparência”. Eis um traço merecedor de um tratado de sociologia. Meu mentor harvardiano, Richard Moneygrand, dizia que a “luta das aparências” (e das recomendações e empenhos) é tão ou mais importante do que a luta de classes no Brasil...

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— Logo vi que era “gentinha”...

— Você viu o “jeito” dele (ou dela)? Descobri imediatamente quem era pelo modo como ele (ou ela) se sentou, comeu e falou.

— Você viu a roupa? Notou o sapato? Atinou para a sujeira das unhas?

— Eu até que tolero a pobreza, mas não me conformo com falta de limpeza. Um pobre precisa ser limpo. Sobretudo se for preto...
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Nosso inferno não são os “palácios” onde poucos entram, todos se conhecem e sabem dos seus lugares, mas os espaços abertos. Sobretudo quando temos que esperar o sinal para caminhar e sentir como todo mundo!

— Eu sei que que não sou e jamais vou ser todo mundo! — diz o magistrado do Tribunal Supremo.

É justo nesse “todo mundo” que jaz, como um cadáver oculto, o nosso problema. Pois como ser como todo mundo se mamãe nos criou para ser ministro? Como ser como todo mundo se a nossa família tem origem nobre? Empobrecemos mas “temos berço”.

Como, então, seguir as normas de urbanidade deste nosso mundo urbano?

— Não entro em fila! Não tenho paciência para esperas imbecis. Pago a um criado para tanto. Tenho quer cuidar do meu projeto político socialista, que é urgente e está atrasado. Como é que eu vou ter tempo para ser como os outros?
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A República proclamada sem um viés igualitário só tem a perna da liberdade. A da igualdade que, ao lado da fraternidade, regularia o seu caminho, nasceu atrofiada e até hoje permanece torta. A liberdade de gritar, de confrontar, é reveladora. Só grita quem pode, e calar é sinal de juízo e respeito.

Hoje assistimos às tramas para impedir a realização da igualdade que, para muitos poderosos, foi longe demais igualando quem deveria estar acima da lei.

— Como ser como todo mundo numa sociedade marcada por privilégios? Qual a fórmula do viver democrático e igualitário?

— Aprenda a dizer não a si mesmo. É nesse abrir-se para ser como todo mundo que está o espirito igualitário. A alma da democracia.

Roberto DaMatta 

Sob o silêncio das ruas, Câmara salvará Temer

Um ano e três meses depois de aprovar o impeachment de Dilma Rousseff, a Câmara se reune nesta quarta-feira para decidir o futuro de Michel Temer. E os mesmos deputados que se enrolaram na bandeira da moralidade para justificar a deposição de Dilma revelam-se agora dispostos a mandar a ética às favas para livrar Temer de um processo por corrupção que poderia conduzi-lo do Planalto para a cadeia. As ruas vazias indicam que o cinismo prevaleceu sobre a revolta popular.

Charge do dia 02/08/2017

Manejando as mesmas armas usadas por Dilma —cargos, verbas e um apelo ao instinto de autoproteção contra a Lava Jato— Temer conseguirá sepultar esta primeira denúncia da Procuradoria contra ele. A oposição manobra para protelar a votação. Mas não dispõe dos 342 votos necessários para manter a investigação viva. Temer sobreviverá. A dúvida é quanto ao tamanho da fragilidade da sua Presidência. Isso será revelado pelo placar da votação.

O brasileiro continua de saco cheio. A taxa de aprovação de Temer oscila entre 5% e 7%, dependendo da pesquisa. Mas a insatisfação se trancou em casa. O silêncio das ruas virou parte do escândalo. Diante da perspectiva de ser presidido por Rodrigo Maia, o eleitor optou pela inércia. Conhecido como país do jeito pra tudo, o Brasil vai se revelando um país que não tem jeito. É como se existisse uma falha estrutural —uma urucubaca congênita que frustra todas as tentativas de reformar a nação.

Imagem do Dia

Hios Island, North Aegean Greece- I want to relish in European architecture...but more than that, I want to meet people and hear their stories!
Ilha de Kios (Grécia)

Enquanto isso, em Brasília...

Sejamos honestos, de verdade nenhum partido deseja que o presidente não eleito, Michel Temer, seja afastado do cargo que ele usurpou. Os situacionistas querem mantê-lo por razões óbvias: o balcão de negociatas está funcionando a todo vapor em Brasília; e a oposição, tendo à frente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), não se esforça para mobilizar as ruas, porque, apequenada, torce pelo "quanto pior, melhor". Com isso, o abismo, que sempre houve, entre os interesses da população e os do Congresso, nunca foi tão imenso quanto agora.

Pesquisa do Ibope, encomendada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI), revela que 70% dos eleitores consideram o governo Temer ruim ou péssimo – índice de reprovação comparável ao da ex-presidente Dilma Rousseff em dezembro de 2015, seis meses antes do golpe. Outra pesquisa, do mesmo instituto, encomendada pela ONG Avaaz, mostra que 81% dos brasileiros são a favor da abertura de processo contra Temer no Supremo Tribunal Federal (STF), e que, para 79% dos entrevistados, "o deputado que votar contra a denúncia é cúmplice da corrupção".


Mas isso não preocupa nossos representantes, claro. Segundo levantamento da revista Congresso em Foco, 190 dos 513 deputados federais e 42 dos 81 senadores estão envolvidos em inquéritos ou ações penais no STF – incluindo os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Eunício Oliveira(PMDB-CE). Além disso, oito ministros de Temer são alvos de inquéritos no STF por suspeita de corrupção. As ações no STF envolvem políticos tanto da situação, quanto da oposição: no ranking figuram, entre os mais citados, o PP (35 parlamentares), PMDB (32), PT (32), PSDB (26) e PR (19).

Para se manter no cargo, e dar curso a seus projetos autoritários – as reformas trabalhista e da educação, já aprovadas, e da previdência, em processo -, Temer tem feito concessões inimagináveis. Entre o início de junho e final de julho, período em que o escândalo da JBS veio à tona, o Governo liberou R$ 4,1 bilhões em verbas para fidelizar votos. Segundo a ONG Contas Abertas, 36 dos 40 deputados que se manifestaram pelo arquivamento da denúncia de corrupção passiva contra Temer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) foram contemplados com R$ 134 milhões em emendas, recursos que os deputados destinam às suas bases eleitorais. O campeão de recebimento de verbas foi o deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), relator do parecer alternativo favorável ao presidente...

Mas, além da compra de votos com dinheiro público, Temer tem ajudado a destravar projetos que atingem diretamente a sociedade, principalmente aqueles patrocinados pela chamada Bancada BBB (Boi, Bala, Bíblia). A Frente Parlamentar pela Agropecuária conseguiu a sanção, em julho, da medida provisória que permite a legalização de áreas públicas invadidas. A chamada MP da Grilagem abre caminho para o aumento do desmatamento e dos conflitos de terra, principalmente na Amazônia.

Já a Frente Parlamentar Evangélica está confiante na aprovação em plenário do Estatuto do Nascituro, que já conta com parecer favorável da CCJ. Com 31 artigos, na prática torna o aborto crime hediondo, estabelecendo penas de um a três anos de detenção para quem "causar culposamente a morte de nascituro" e de um a dois anos para quem "induzir mulher grávida a praticar aborto ou oferecer-lhe ocasião para que a pratique".

Finalmente, a Frente Nacional pela Segurança Pública quer aprovar, neste segundo semestre, a revogação do Estatuto do Desarmamento. Entre os principais pontos da proposta estão o fim da obrigatoriedade de renovação do registro do uso de armas e a redução da idade mínima para compra de armas de 25 para 21 anos.

Assim, ao findar seu mandato – porque ele com quase certeza passará a faixa a seu sucessor em 1º de janeiro de 2019 – Temer terá deixado como herança não só um país arrasado do ponto de vista fiscal, conturbado socialmente pelo aumento do desemprego e da violência urbana, juridicamente instável por uma legislação trabalhista e previdenciária contraditória, como também muito mais conservador. Mas preocupante mesmo é a apatia que tomou conta da população diante desse vale-tudo – uns porque já não acreditam em nenhuma solução, outros porque acham que só um messias poderá resolver o problema. Em ambos os casos, uma tragédia para a nossa anêmica democracia.

A retaguarda do atraso

Ministro da Justiça escolhido pelo presidente eleito Tancredo Neves e mantido no cargo pelo presidente empossado José Sarney, o pernambucano Fernando Lyra, um dos líderes do PMDB na luta contra a ditadura militar de 64, era capaz de arriscar o emprego por causa de uma boa frase.


Em 1985, na cerimônia do Teatro Casa Grande, no Rio, em que anunciou o fim da censura, Lyra elogiou Sarney definindo-o com uma frase que se tornou célebre:

- Sarney é a vanguarda do atraso.

Queria dizer que o presidente era o político mais avançado entre aqueles que até pouco antes haviam sustentado o regime dos generais. Sarney jamais perdoou Lyra. Demitiu-o meses depois.

Se fosse vivo, é bem possível que Lyra ser arriscasse a brigar com Temer qualificando de “vitória da retaguarda do atraso” o que deverá se consumar logo mais na Câmara dos Deputados.

Faltarão votos para aprovar a denúncia contra o presidente por crime de corrupção. Temer será salvo por uma aliança firmada entre os políticos mais fisiológicos da Câmara e os encrencados com a Lava Jato e outras operações da Polícia Federal.

Mas não só. Cabeças coroadas dos partidos de oposição conspiraram em segredo para manter Temer no cargo. Apostam que é melhor tê-lo onde está, e cada vez mais fraco, do que trocá-lo por não se sabe quem. De resto, Temer não nega favores a quem lhe pede.

Pareceu difícil derrubar os ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, mas não foi. Seus eventuais sucessores eram conhecidos – Itamar Franco e Michel Temer. O ronco das ruas fez o resto do serviço.

Quase cinco meses depois do empresário Joesley Batista ter gravado Temer no porão do Palácio do Jaburu, sabe-se quem substituiria Temer provisoriamente – Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Mas não se sabe quem o sucederia em definitivo.

De resto, as ruas não roncaram. Mais de 80% dos brasileiros gostariam de ver Temer processado. Mesmo assim preferiram ficar em casa em sinal de protesto contra todos os políticos, partidos e instituições desacreditadas.

As urnas roncarão em 2018.

Só dói quando eu rio

Ainda bem que vivo no Brasil, um país onde o que está ruim sempre pode piorar. Isso é o que me dá forças para seguir em frente, mesmo porque logo atrás vem um traficante com um fuzil e, atrás dele, uma galera a fim de fazer um arrastão na minha pessoa.

Agora no Rio de Janeiro é assim: o bandido para assaltar tem que chegar cedo, pegar a senha e entrar na fila. Os cidadãos não estão dando conta da demanda. E depois ainda dizem que a Economia está em recessão. Só fica desempregado no Brasil quem é vagabundo. Se o cara quiser entrar no ramo da bandidagem no Rio de Janeiro, o que não falta é vaga. O Rio ainda é uma Petrobras antes do PT: ainda tem muito para se roubar.


Mas eis que o carioca acorda e descobre que a cidade está dominada pelo Exército. Militares ocupam pontos estratégicos da paisagem zelando pela segurança geral. Na verdade, a invasão dos milicos foi para atender a um pedido da bandidagem. A criminalidade no Rio estava demais. Já tinha bandido roubando assaltante, estuprador sodomizando sequestrador, estelionatário assassinando traficante. Uma bagunça generalizada, uma falta de respeito com o meliante. Afinal, tradicionalmente, no Rio de Janeiro o crime sempre foi muito organizado. Quando o governador era o Sérgio Cabral, o crime funcionava feito um relógio. Mas o relógio era Rolex, e acabaram roubando também.

Com o Exército nas ruas, tudo voltou ao normal. Graças a Deus! É bonito de ver os traficantes confraternizando com os soldados, tirando selfie e comparando para ver quem tem o fuzil mais bacana. A mulherada também fica louca com a rapaziada fardada. Agora, além da Maria Chuteira, tem a Maria Cartucheira.

Mas as autoridades vão mais longe! Vão lançar mais um programa de inclusão social, um programa para acabar com o problema da Bala Perdida. Vamos acabar com as balas perdidas. Toda vez que alguém encontrar uma Bala Perdida, deverá encaminhá-la à Casa da Bala Perdida, onde ficará guardada até ser encontrado um alvo que a abrigue.
Agamenon Mendes Pedreira é foragido da Injustiça

O ministro Raul Junglemann avisou que, se o Exército não der jeito na violência do Rio, vai ter que chamar o Lucas Skywalker para enfrentar o Lado Afro Descente da Força. 

Paisagem brasileira

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Rio de Contas (BA)

Expulsamos Deus e nos surpreendemos com quem chega

Nossa Constituição foi feita para um povo moral e religioso. Ela é totalmente inadequada para qualquer outro
John Adam, segundo presidente dos EUA
Sempre é bom lembrar que alguns anos antes dessa significativa afirmação, ao declarem a independência das colônias, os Founding Fathers, afirmaram sua crença em que os homens, "criados iguais", foram "dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis" e explicitaram entre esses direitos "a vida, a liberdade e a busca da felicidade". Afirmaram, também, a supremacia da sociedade sobre o Estado, "porque os governos são instituídos entre os homens", derivando seus poderes "do consentimento dos governados". Boa parte da solidez institucional dos Estados Unidos se deve a esses elevados consensos e perdurará enquanto eles resistirem ao severo ataque interno a que estão submetidos.

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E nossa Constituição? Para que povo foi ela feita? Tão solenes princípios de nada nos acusam nestes turbulentos dias? Com eles, certamente, teríamos evitado a atual alienação da nação ao Estado e a dupla apropriação que nele ocorre - a apropriação desde o topo pelo patrimonialismo casado com a corrupção e a apropriação interna promovida pelos corporativismos. Na conjugação de ambas, a soberania popular se converte em servidão.

Alguém não sabia o que havia no fim dessa estrada? Pode o dependente químico queixar-se da droga ou denunciar o traficante com base no Código de Defesa do Consumidor? Pois é algo muito parecido o que está acontecendo com a sociedade brasileira em relação à sua representação política. Todos os pilantras, picaretas e negocistas que infestaram a política nacional de modo crescente ao longo dos últimos anos prosperaram na carreira criminosa tapados de votos populares. Fizeram suas mal havidas fortunas a olhos vistos. Muitos, aliás, chegaram em Brasília de ônibus, vindos dos grotões, pés encardidos, calçando sandálias. E foram protagonistas da mais vertiginosa ascensão social de que se tem notícia. Em cada uma de suas páginas, os jornais trazem exemplos dessa produtiva combinação de desmazelo social, irresponsabilidade cívica e enriquecimento criminoso.

De tanto brincarmos com tudo que é sério, o Brasil virou uma grande zorra. Fazemos piada de Lula. E o elegemos. Fazemos piada de Dilma. E a elegemos. Assistimos as tropelias do MST e tratamos com deferência seus protetores nos poderes do Estado. Consideramos charmosamente moderna a fabricação de conflitos étnicos, de sexo, de classe, de cor da pele, de gerações. Acreditamos quando alguns vigaristas intelectuais nos dizem que é feio ser liberal ou conservador. Silenciamos, constrangidos, quando políticos e comunicadores são benevolentes com a criminalidade e severos com a polícia. Delegamos a educação de nossas crianças às escolas e aceitamos que estas sejam entregues a militantes políticos. Assinamos, assistimos e prestigiamos veículos de comunicação que influenciam negativamente a sociedade. Estamos vendo o PT apoiar ditaduras de esquerda em Cuba e Venezuela e permanecemos passivos quando nos lecionam sobre golpismo, Estado de Direito e democracia... Somos tolerantes com as imposições e os achaques de minorias locais organizadas. Achamos decente endividar-se o país e indecente o pagamento dessa dívida. Afastamos Deus de tudo que seja público e nos espantamos com quem chega, operoso, para ocupar o espaço. Dá ou não vontade de dizer bem feito?

Quanto a tentativa de salvar Temer custa ao Brasil

A poucas horas de enfrentar a sessão na Câmara dos Deputados que pode definir o futuro do seu governo, marcada para esta quarta-feira (02/08), o presidente Michel Temer tem usado sem cerimônia a máquina federal para conquistar votos de deputados.

Sua "campanha" inclui a promessa de bilhões de reais para emendas parlamentares e projetos em municípios e estados, criação de cargos comissionados e atendimento de demandas específicas de bancadas.

As medidas contrastam com o discurso de "sacrifício" que Temer evocou ao assumir o governo em 2016. Para se salvar de uma eventual admissão pela Câmara da denúncia criminal por suspeita de corrupção, o presidente pode gastar mais de 17 bilhões de reais apenas em emendas parlamentares e verbas destinadas para governos e prefeituras.

Ao ceder em projetos dispendiosos de deputados e criar mais cargos, Temer parece também estar jogando uma pá de cal na política de ajuste fiscal prometida no início do governo.

Entre as medidas para convencer os deputados a ficarem ao lado do governo, a mais explícita tem sido o direcionamento de verbas para emendas – recursos pedidos pelos deputados que normalmente são gastos em suas bases eleitorais. Entre o início de junho e o final de julho, período em que o escândalo da JBS veio à tona, o governo destinou 4,1 bilhões de reais para esse fim. No acumulado do ano até maio – antes do caso JBS –, o governo havia empenhado apenas 102,5 milhões de reais.

Pelas regras, parlamentares governistas ou da oposição são contemplados com a mesma cota, só que o governo é que estabelece o ritmo da distribuição. De acordo com a ONG Contas Abertas, parlamentares que declaram abertamente apoio ao governo Temer receberam em média a promessa de 1 milhão de reais a mais do que os deputados que vão votar pela aprovação da denúncia.

A estratégia das emendas foi usada pela antecessora de Temer, Dilma Rousseff. Nas semanas anteriores à votação de seu impeachment pela Câmara, a presidente anunciou a distribuição de 3,2 bilhões de reais.

No caso de Temer, o laboratório para a tática foi a votação da denúncia pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, que fez a análise preliminar da denúncia na primeira quinzena de julho. Trinta e seis dos quarenta deputados que votaram a favor do presidente foram contemplados com 134 milhões, segundo a Contas Abertas. O campeão foi justamente o deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), que apresentou o novo relatório favorável ao presidente. No total, ele deve receber 5,1 milhões de reais.

Deputados da oposição vêm criticando a distribuição de recursos. Segundo Chico Alencar (PSOL-RJ), a destinação de tantas verbas para emendas "caracterizam evidente compra de votos, com consequências de obstrução à Justiça".


A distribuição de recursos não passa só pelo Legislativo. Após atravessar 2016 falando duro com estados da federação que estão atolados em dívidas, o governo parece ter mudado de ideia após o escândalo da JBS.

No dia 12 de julho, o Planalto anunciou a liberação de 11,7 bilhões de reais para apoiar o financiamento de obras e concessões de infraestrutura em estados e municípios. No dia seguinte, foi a vez de o Ministério da Saúde anunciar um investimento de 1,7 bilhão de reais para a rede de atenção básica no país, incluindo a compra de ambulâncias para 1787 municípios. As duas medidas foram anunciadas horas antes da votação da denúncia pela CCJ.

Além de direcionar recursos, o governo também abandonou sua propagandeada política inicial de reduzir o número de cargos comissionados. Segundo a Contas Abertas, entre maio e junho, o governo criou mais de 500 funções do tipo na administração federal, elevando o total para 20.321.

A liberação das verbas e criação de cargos também ocorre em um momento em que o governo prevê um rombo de 139 bilhões de reais nas contas públicas. Segundo o Ministério do Planejamento, tanto o envio de recursos para estados e municípios é um "procedimento absolutamente normal". Já o empenho das emendas, segundo a pasta, é "um procedimento obrigatório previsto na Constituição e na legislação orçamentária".

A União tem a receber cerca 300 bilhões de reais em dívidas. Para tentar convencer os devedores – empresas e pessoas físicas – a quitarem os débitos, o Planalto pretende passar um projeto de lei para criar mais um programa de refinanciamento, ou Refis.

Na versão originalmente promovida pelo Planalto, o Refis de 2017 pretendia arrecadar pelo menos 13,3 bilhões ainda neste ano. Só que precisando de apoio, o governo pouco fez para impedir em 17 de julho a aprovação por uma comissão mista de um novo relatório que prevê descontos no Refis que podem chegar a 99%.

A iniciativa partiu de um deputado do próprio partido do presidente: Newton Cardoso (PMDB-MG). O texto ainda precisa ser votado no plenário da Câmara. Caso a medida passe, nem 500 milhões de reais devem chegar aos cofres do governo.

Nesta segunda-feira, o jornal Folha de S. Paulo informou que os ministérios da Fazenda e do Planejamento já cogitam ter que rever a meta fiscal e aumentar a previsão de déficit em 2017.

Não se sabe se Temer pretende usar o veto para confrontar os deputados, que têm em suas mãos o futuro da Presidência. Pelo menos 76 deles parecem diretamente interessados na aprovação de um Refis mais generoso. Empresas ligadas a eles devem 217,8 milhões de reais, segundo o jornal O Estado de S. Paulo.

Outros 29 deputados têm 18,9 milhões de débitos inscritos em seus próprios CPFs. Até mesmo o relator Cardoso é um devedor. Empresas ligadas a ele devem 51 milhões de reais.

Sentindo o enfraquecimento do governo, bancadas da Câmara têm pressionado o Planalto para que suas demandas sejam atendidas. Em julho, a bancada ruralista conseguiu do governo a sanção da "medida provisória da grilagem" – como foi chamada por ambientalistas –, que prevê a legalização em massa de terras públicas invadidas.

Dias depois, o presidente aprovou um parecer da Advocacia-Geral da União que prevê que um entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a criação da reserva indígena Raposa Serra do Sol passe a valer para todas as demarcações.

Pelo entendimento do STF, só são terras indígenas as ocupadas por índios na data da promulgação da Constituição de 1988. A decisão do STF não tinha efeito vinculante, mas a bancada convenceu o presidente do contrário. O Ministério Público Federal classificou a medida como um retrocesso para a causa indígena no Brasil.

O deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), coordenador da Frente Parlamentar Mista da Agricultura, já disse que vai votar a favor do presidente. "É inegável que com Temer muitas pautas históricas defendidas pela bancada foram atendidas", disse Leitão ao Estado de S. Paulo.

Já a Frente Parlamentar Evangélica conseguiu do governo em junho que o Ministério da Educação ordenasse o recolhimento de 93 mil exemplares de um livro de contos. A temática de incesto de um dos contos – que narrava a história de um rei que deseja se casar com uma de suas filhas – revoltou os evangélicos que compõem a Comissão de Educação da Câmara. A resposta do ministério mostrou que o governo vem cedendo para o grupo.

Segundo um levantamento de O Estado de S. Paulo, 80% dos 213 parlamentares que não divulgaram até agora como vão votar na sessão que vai analisar a denúncia contra Temer fazem parte de uma das bancadas "BBB" (boi, bala e Bíblia).

A variável Lula, a constante Lula

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Muito se fala sobre a possibilidade — improvável — de Lula não disputar a eleição presidencial em 2018. Projeta-se pouquíssimo, porém, essa hipótese — e se especula ainda menos sobre os beneficiários de tal circunstância. Não seriam muitos. E é mesmo difícil nomeá-los hoje. O motivo é óbvio: favorecidos seriam principalmente aqueles ora à margem de partidos, uma Cármen Lúcia, um Joaquim Barbosa, um Deltan Dallagnol — talvez mesmo um outro herói sequer surgido (mas certamente de extração jacobina).

O macron João Doria, não exatamente um outsider, também se beneficiaria: sem o mais mínimo controle do PSDB, marginalizado no ninho tucano, ele compreendeu, ou ao menos intui, que Lula e Geraldo Alckmin já se escolheram (ou foram escolhidos) como adversários — e que esse replay de 2006, para muito além da disputa pelo poder entre rivais, selaria o triunfo do movimento suprapartidário pela conservação do establishment. Um abraço na lagoa poluída — pela continuidade da lagoa poluída.

Nada há de mais poderoso em fluxo neste momento do que a defesa do sistema político-eleitoral conforme o conhecemos hoje. Isso inclui a aprovação, no Congresso, do financiamento público de campanha — a ocorrer até setembro próximo. Movendo-se contra a corrente da Operação Lava-Jato, especialmente aquela desdobrada em Curitiba, a mesma longa marcha de permanência do status quo que protege Michel Temer — e que fará com que as denúncias contra ele não prosperem na Câmara, permitindo-lhe jiboiar até a conclusão do mandato — só terá completude e sucesso, pois, caso Lula dispute a eleição.

Lula é jogador, mas é também peça — aquela em torno da qual, em função da qual, todos se organizam e orientam político-eleitoralmente. Ele é a principal variável no cálculo para a eleição do ano que vem. O sistema político, porém, precisa de Lula como constante. O entendimento dessa equação é decisivo. Explica por que raros são os homens públicos, mesmo entre os adversários, que torcem pela sua prisão — que torcem verdadeiramente para que o ex-presidente tombe inelegível e se torne carta fora do baralho no jogo de 2018.

É símbolo da carcomida atividade política no Brasil que o mesmo Lula que judicializará — desordenará — a campanha presidencial no ano que vem seja também o elemento cuja presença entre os candidatos dará segurança ao establishment. Poderoso agente do desequilíbrio institucional em curso, o ex-presidente, no entanto, tem peso de equilíbrio para as forças de preservação, de subsistência, do sistema — corpo que planta alguma memória, algo de baliza, numa terra arrasada, praguejada. Chafurdado ele mesmo, Lula minimiza as instabilidades de um terreno feito lama inteiramente.

Daí por que este escriba esteja convicto de serem pequeníssimas as chances de um candidato de fora do sistema político — ou com pouca expressão partidária (Doria), ou de um partido menor (os esquerdistas Ciro Gomes e Marina Silva, por exemplo, só teriam alguma viabilidade eleitoral sem o ex-presidente no páreo) — ascender competitivamente em 2018. Porque dependeria da ausência de Lula entre os postulantes à Presidência — e isso seria o mesmo que a dissolução de um establishment moldado exclusivamente para se adaptar e se sustentar desde o fim do regime militar.

O ex-presidente é medida. É referência. Se ele chegar até a eleição, serão razoáveis as brechas para que os demais também cheguem. O mesmo serve para Temer e o término regular de sua presidência. Conseguir encerrá-la de acordo com o calendário consistirá em confiável sinal de reafirmação — de rearrumação — do establishment. É debaixo desse sol inclemente que a classe política brasileira rema para sobreviver. É sob essa crença infernal que se pactua para revalidar o próprio foro privilegiado e se abrigar. Uma eleição em quase todos os aspectos excepcional — porque de vida ou morte. Não há esperança, senão para eles.

Carlos Andreazza