terça-feira, 23 de maio de 2017

Onde teríamos acertado?

Na luta contra a corrupção em si, nada de novo. Acabar com a corrupção não é só a promessa de todos os nossos candidatos, mas a divisa de todas as nossas revoluções e justificativa de todos os nossos golpes. Cada um a interpreta à sua moda. Para os donos do poder, essas acusações nunca passam de pretexto golpista, demagogia, moralismo barato. Ao contrário, quem derruba e sobe alega sede de justiça, autêntica aspiração popular.

Mas se essa dualidade também ocorre no momento atual, existe uma diferença gritante no desenvolvimento da luta e no seu desenlace.

A tradição limitava o embate ao terreno da política e ao desenlace em sangue, como no suicídio de Getúlio Vargas, ou em mudanças traumáticas de regime, como em 1964, ou na tradicional pizza. O impeachment de Collor e o de Dilma Rousseff foram exceções à regra, primeiros sinais de que alguma coisa estava mudando.

Com a Lava Jato, no entanto, o Brasil assistiu, estarrecido, a uma espantosa novidade: a prisão de milionários e políticos poderosos, não como resultado da brutalidade de atos institucionais ou da veneta da polícia política, mas com as instituições funcionando normalmente e respeitado o direito de defesa.


Onde teríamos acertado? De onde a Lava Jato tirou a sua força? Entre os elementos mais citados, temos os avanços da tecnologia, que hoje permite rastrear transferências bancárias pelos descaminhos dos paraísos fiscais, a eficiência das delações premiadas, o apoio decidido da grande imprensa, a revolta popular às voltas com hospitais sem medicamentos.

Uma das explicações mais citadas é que os excessos de corrupção recente teriam causado a reação moralizadora. Ouve-se falar que nunca, em tempo algum, a corrupção atingiu patamares tão elevados. É, talvez, uma meia-verdade. Se as somas envolvidas não têm paralelo, convém lembrar que somas envolvidas e a gravidade das consequências nem sempre andam juntas. Os 30 dinheiros que compraram Judas no suborno mais famoso da História, ao câmbio de hoje, dariam para comprar dois pares de tênis de marca.

De qualquer maneira, todos os casos do passado ao presente brasileiro, dos deputados de enxurrada do Império ou das eleições a bico de pena da Primeira República ao dinheiro da Petrobrás, nada se compara ao tráfico de escravos. Nos primeiros dias da independência, por uma série de tratados que a Inglaterra começara a impor desde 1810, o tráfico negreiro saiu lentamente da legalidade, mas continuou a prosperar com a total conivência ou tolerância das autoridades até 1850, quando os navios da esquadra britânica passaram a invadir os portos brasileiros apresando ou incendiando os negreiros ancorados.

Na expressão de Joaquim Nabuco, foi o crime geral e incomparável da nossa História. Incomparável “pela perversidade, horror e infinidade de crimes particulares que o compõem, pela sua duração, pelos seus motivos sórdidos, pela desumanidade do seu sistema complexo de medidas, pelos proventos dele retirados, pelo número de suas vítimas e por todas as suas consequências”.

Hoje em dia, quando se lamenta a força descabida dos bicheiros, dos traficantes e dos empreiteiros, convém lembrar que o Brasil já foi o país dos negreiros. Se não serve de desculpa, serve ao menos para pôr as coisas em perspectiva, e talvez nos ajude a entender o que deu certo na Lava Jato.

Mas, afinal, onde foi que acertamos? Além dos fatores já citados e que, juntos, compõem um feliz concurso de circunstâncias, vale lembrar a resistência crescente da opinião pública a ver o suborno como fatalidade dos negócios com o Estado. Já não se aceita que a propina seja um mecanismo indispensável para se livrar da extorsão dos políticos. Outra explicação para o êxito da Lava Jato teria vindo não de seus méritos, mas dos excessos dos governos que por falta de experiência teriam ido com muita sede ao pote.

Ao relembrar o velho ditado “quem nunca comeu melado quando come se lambuza”, Gilberto Freire lembra que ele se aplica a uma multidão e situações figuradas, além da concreta. “Come-o não somente com a boca, como com os olhos, com as mãos, com o nariz; com o rosto inteiro; com os próprios cabelos; derrama-o sobre a camisa e sobre a roupa, extravasa-o sobre a mesa; emporcalha a toalha”. Algo análogo teria ocorrido com a Petrobrás.

Mas, como a própria Lava Jato passou a demonstrar, a corrupção também atinge partidos políticos há muito tempo no poder. A tal ponto que, desenganados com todos eles, alguns desmemoriados começam a pregar a volta dos militares ao poder. É provável que os escândalos do período verde-oliva – Coroa-Brastel, Delfin, Haspa, Continental, Sulbrasileiro, Capemi, o caso das polonetas e tantos outros – tenham caído no esquecimento.

Mas um único fato bastaria para avivar a memória. Durante todo o regime militar, as empresas brasileiras de certo porte exibiam militares da reserva, coronéis de preferência, se possível generais, em cargos de diretoria, conselhos de administração ou assessorias variadas. Em empresas estatais o processo era simples, pois, como donos do poder, os militares iam nomeando uns aos outros. Nas empresas privadas, sua utilidade para abrir portas ficava clara pelo apelido “maçanetas de ouro”.

Convém notar, finalmente, que a avalanche de críticas aos empreiteiros deixou soterradas verdades inegáveis. Sem o trabalho de seus engenheiros, administradores e operários as colheitas de café e de soja apodreceriam nos campos por faltas de estradas e mesmo que houvesse caminhos de terra de nada serviriam, pois não haveria como exportá-las sem portos nem aeroportos. Não haveria como protestar em Brasília, pois não haveria Brasília. Aí, sem dúvida, foi onde acertaram. Mas também receberam até bem demais pelo seu trabalho e empregaram muito mal o dinheiro recebido. Aí foi, sem dúvida, onde erraram. A Lava Jato veio em boa hora para separar erros dos acertos nacionais.

Imagem do Dia

Jodhpur, a Cidade Azul da Índia (Steve McCurry.)

O grande teatro do escárnio

“Já li o texto do nosso amigo”, disse Indaira.

Qual é o título da peça?

O Pântano e o Labirinto.

Grande título! Quase toda a humanidade cabe nele…

“É um exagero”, ela discordou. “Mas alguma coisa deste Brasil está na peça… Cenas da anomia nacional…”

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Quanta coragem do nosso amigo, Indaira! Mal consigo escrever cinco linhas sobre um dos meus pássaros preferidos. Outro dia, um sabiá posou na romãzeira que a Célia me deu e começou a cantar. Às vezes, o canto de um pássaro é uma melodia para sempre. Os sons lembravam o sopro de uma flauta… De lembrança em lembrança, recordei um poema do Rûmi…

“Rûmi?”

Jalal Udin Rûmi, o grande poeta persa, admirado por Hafiz… Dois místicos admirados por Manuel Bandeira. Você deve ter lido Gazal em Louvor de Hafiz.

“O País está se esfacelando, e você vive embriagado pelo êxtase místico, pelos gazais… É desilusão?”

É apenas poesia, eu disse. O sonho de uma aventura. Mas por que O Pântano e o Labirinto?

“Estamos num pântano, não podemos andar… Os três poderes são o que são, ou o que sempre foram. E labirinto… porque estamos perdidos… E o que é pior, perdidos e surdos. Não há vozes, só barulho… Todos falam ao mesmo tempo, ninguém se entende, ninguém escuta… É aí que surgem os oportunistas, os que dizem não ser políticos… Mas perigoso mesmo é um velhaco, saudoso da ditadura: o tenebroso deputado homofóbico, o apologista do estupro, da tortura, do ódio aos quilombolas e índios… E nada acontece... Não é incrível?”

É totalmente crível, Indaira. Uma parte das pessoas pensa assim mesmo, como esse líder de araque. O ódio atrai certo tipo de gente... Outra parte cultiva o respeito e a compreensão, mais que a tolerância. Porque só a tolerância não basta. E há uma terceira parte, a mais sofrida e misteriosa… A parte dos desesperados… Milhões de pessoas tentando arranjar um emprego, essa coisa rara no País… Aliás, em quase todo o planeta.

“Há saída neste labirinto?”

Não sei. Quem leu o texto da peça foi você. Sou apenas um espectador. Quer dizer, serei um espectador quando a peça for encenada. Sair do pântano e pisar em terra firme é possível; sair do labirinto é quase inconcebível… E, pensando bem, pra que sair? Não é melhor tentar encontrar outros caminhos e permanecer no labirinto?

“Na peça do nosso amigo, todos os caminhos estão bloqueados.”

Todos? Ele se esqueceu da liberdade dos que estão perdidos. E da poesia… O fio de Ariadne, o amor por Teseu. Amor ferido ou traído…

“O amor… Nosso amigo vai dizer que você não passa de um reles romântico.”

É verdade… Um romântico com pés no chão, ou com o corpo afundado no pântano, mas sempre pensando em outros caminhos. Não há amor nem traição nessa tragédia? Nem mesmo uma cena amorosa, com uma taça de vinho envenenado?

“Amor na anomia? Nessa guerra latente entre irmãos? Parece que os brasileiros viraram Caim e Abel… O que se vê no espelho do País? Obscurantismo, linchamentos, risadas luciferinas… O paraíso tropical é inferno há muito tempo.”

Todos os paraísos estão perdidos, Indaira. O fio de Ariadne é o que nos resta. O amor e a liberdade. Vamos sugerir ao nosso amigo dramaturgo essas frases do João Guimarães Rosa: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

Define a sua cidade

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De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dois ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dois ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dois ff se compõe.

Se de dois ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dois ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.

Gregório de Matos

O enigma do sistema

É um nunca acabar de emoções… Financiamentos por baixo do pano, achaques, subornos, propinas, compras de leis e de decisões judiciais tornaram-se corriqueiros, banais. O mais expressivo é que o vendaval de denúncias não parece afetar os envolvidos — eles continuam procedendo da mesma forma, como impulsionados por um movimento dotado de dinâmica própria.

A tentação é grande de acompanhar as delações — sempre deletérias — como episódios singulares, individuais, sorvendo sadomasoquistamente os episódios obscuros, as inconfidências, as negativas patéticas, o cinismo. Muitos até esquecem, indignados, que eles próprios é que elegeram — ou reelegeram — os implicados nas denúncias.

Seria, talvez, necessário que se começasse a pensar e a refletir por que tantas grandes lideranças, por que todos os principais partidos políticos entraram neste jogo e foram tragados por ele. Os dois últimos escândalos que abalaram — e ainda abalam — o país não terão evidenciado, e mais uma vez, que estamos diante de uma crise de caráter sistêmico? A verdade é que há um jogo sendo jogado. Uma engrenagem, um sistema, que precisa ser analisado, compreendido e superado.

Este sistema tem suas raízes na Constituição de 1988.

Ulysses Guimarães, numa licença poética, a celebrou como “cidadã”. O texto, de fato, tem virtudes, até inesperadas, considerando-se a maioria conservadora que o aprovou. Uma delas foi a consagração das clássicas liberdades democráticas. Não era pouco, para um país que emergia de uma longa ditadura. Uma outra inovação positiva mereceria destaque: um conjunto de direitos sociais, mesmo que se saiba que há sempre uma distância entre direitos constitucionais e práticas sociais.

Ao mesmo tempo, porém, bem “à brasileira”, conciliando opostos, a Carta Magna abrigou uma série de dispositivos autoritários. O mais perigoso foi a reiteração da tutela das Forças Armadas e o seu direito de intervir na vida política nacional, sempre e quando requisitadas para garantir “a lei e a ordem”. Previu-se também o impeachment, este atentado à soberania democrática popular, pois reserva a uma elite de representantes o direito de usurpar o voto de grandes maiorias. O triste foi ver as esquerdas dele se servirem antes de experimentar o seu amargo sabor.

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Tais dispositivos não foram casuais. Expressaram a reafirmação das bases do modelo econômico construído pela ditadura: hegemonia do grande capital financeiro, desenvolvimento econômico predador, agronegócio no campo, obras faraônicas de infraestrutura, com estímulo para as grandes empreiteiras, urbanização descontrolada. Foi nestas bases que a ditadura propulsou o capitalismo brasileiro para novos patamares. Elas estão lá, intactas, garantidas pelo texto constitucional.

Em movimento paralelo e articulado, consagrou-se um sistema político elitista. Sob o pretexto de se defenderem contra o arbítrio, os constituintes blindaram os representantes eleitos contra qualquer tipo de controle, popular ou jurídico, aprovando o infame e aristocrático “foro privilegiado”. Na sequência, vieram mordomias de toda a ordem, dotando deputados e senadores de privilégios excepcionais, autênticas jabuticabas, pois só encontradiças no Brasil.

Fecharam-se à sociedade, mas se abriram, sem limites, ao mercado, permitindo o financiamento sem freios de grandes empresas, essencial para campanhas, marqueteiros e programas de televisão cada vez mais caros. E ainda favoreceram-se com dinheiro público, o chamado “Fundo Partidário”, tomado sem consulta às pessoas, transformando os partidos em instituições independentes dos cidadãos. Foi este sistema deformado que, isolado em Brasília, uma ilha da fantasia, proporcionou as condições ideais para a corrupção em larga escala das lideranças e das instituições brasileiras. Engoliu até o PSDB, o PT e o PDT que, nos debates da Constituinte, apresentavam-se como reformistas e inovadores.

O Supremo Tribunal Federal deu um primeiro golpe na engrenagem, ao proibir o financiamento empresarial das campanhas eleitorais. Mas não é seguro que a proibição permaneça no tempo. Por outro lado, ainda na presidência Dilma, para compensar a perda do financiamento empresarial, triplicou-se o Fundo Partidário. E, agora, na reforma política em debate, já se explicitou a perspectiva de duplicar ou triplicar os dinheiros públicos à disposição dos partidos.

Trata-se de um sistema aristocrático. Uma engrenagem antipopular e antidemocrática. Enquanto existir, fabricará Temers, Aécios, Cunhas, Lulas. Triturará todos os que dele se aproximarem e nele se integrarem, salvando-se apenas as exceções de praxe.

A crise brasileira não é obra de meia dúzia de gatunos. É produto de um sistema, consagrado pela chamada Lei Maior. Ou a sociedade encara esta esfinge, a decifra e a supera, ou pode se preparar para ser devorada por uma infindável crônica policial.

Daniel Aarão Reis

Paisagem brasileira

Simplicidade Um gosto que vai alem das explicações.:

Aliados dão corda e Temer se enforca sozinho

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Michel Temer não precisa mais de acusadores. O presidente se tornou um caso raro de autoincriminação. Ele se complica cada vez que tenta se defender. Espremendo-se tudo o que disse em pronunciamentos e entrevistas, Temer produziu as seguintes evidências contra si mesmo: admitiu o diálogo com Joesley Batista, que ele próprio diz ser um empresário desqualificado. Validou trechos vexatórios da conversa gravada pelo pilantra. Entre eles o pedaço do áudio que trata de Eduardo Cunha e da compra de um procurador e de juízes. Temer confirmou ter indicado como seu interlocutor um deputado que depois seria filmado recebendo mala de propina: R$ 500 mil.

Temer também declarou que recebeu o delator Joesley por “ingenuidade”. Afirmou que “não sabia” que o amigo era investigado. Disse que o ex-assessor pilhado com a mala de R$ 500 mil tem “boa índole, muito boa índole”. Já que não pode mais realizar os seus sonhos, Temer tenta pelo menos impedir a realização do pesadelo do surgimento de um novo delator.

Por tudo isso, Temer tornou-se um presidente precário. Até a semana passada, sua prioridade era salvar o país, aprovando reformas no Congresso. Hoje, seu objetivo estratégico é salvar o próprio pescoço. Enquanto tenta desqualificar no STF a delação do corrupto que recebeu com toda fidalguia, Temer pede aos aliados que retomem as votações no Congresso. Os partidos dão corda ao presidente. E vão esboçando um Plano B à medida em que ele se enforca.

Essa é a miséria

Noticia Final: O BRASIL E A LEGALIDADE DE UM ESTADO CORRUPTO: COM...:

Quando as misérias morais assolam um país, a culpa é de todos os que por falta de cultura e de ideal não souberam amá-lo como pátria; de todos os que viveram às suas custas sem trabalhar por ela
José Ingenieros

Estatismo e corrupção

Quanto mais ascendência o Estado tiver sobre a economia, mais corrupção existirá na sociedade respectiva. E o Brasil é vítima evidente do estatismo

Nunca as palavras de Lord Acton foram tão verdadeiras como na atualidade do Brasil: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Não se trata, apenas, do exercício do mesmo por uma pessoa, mas do poder do Estado e suas múltiplas facetas sobre a economia e a vida dos cidadãos, que se transfere, automaticamente, aos indivíduos, políticos ou burocratas, que controlam o Estado. E constitui a gênese da corrupção.

Corruptos e Famílias miseráveis do Bolsa Família:

A história brasileira não conhece episódios de corrupção endêmica como aos que hoje assistimos, nem no Império nem na República Velha. Ambos foram regimes em que o Estado se mantinha alheio aos negócios e à vida privada. A origem da corrupção que nos assola é claramente identificável.

O crescimento da influência estatal sobre a economia nasceu há mais de oito décadas na ditadura de Getulio Vargas nos anos 1930. Vargas foi o principal responsável pelo aumento do poder do Estado mantido, inexplicavelmente, pelos regimes liberais em economia das Constituições que se sucederam desde 1946, após sua destituição.

Naqueles tempos foi uma constante a criação de repartições públicas como autarquias, conselhos, departamentos, inspetorias, institutos e, sobretudo, empresas estatais. Surgiram a Companhia Vale do Rio Doce e a Siderúrgica Nacional. De um dos presidentes da primeira dizia-se que havia bebido o rio, comido o doce e deixado um vale no caixa. A segunda chegou aos anos 1990 aos trancos e barrancos. O executivo Roberto Lima Neto, encarregado de prepará-la para privatização, narra que a empresa estava inadimplente com 44 bancos e fornecedores diversos, além de todos os impostos e contribuições. Tinha linhas de produção paralisadas por falta de insumos, e foi possível reduzir o quadro funcional em nada menos que sete mil empregados, um terço do efetivo. Essas duas empresas foram salvas da onda de corrupção atual pelas privatizações de fins do século XX.

O mesmo não aconteceu com as companhias lançadas no mandato democrático de Vargas, entre 1951 e 1954: Petrobras, BNDES, e Eletrobras. Não foram privatizadas e estão, hoje, em todos os cardápios de corrupção, prejuízos, delações premiadas e demais mazelas a que temos assistido.

O poder quase absoluto do Estado sobre a economia está na raiz da corrupção. Ela não chega a ser um fenômeno exclusivamente estatal. Se ocorrer em empresas privadas, será episódio circunscrito a cada companhia e seus acionistas. Mas quando acontece no âmbito do Estado, atinge todos os contribuintes e, portanto, a coletividade, pois é ela que pagará a conta.
Quanto mais ascendência o Estado tiver sobre a economia, mais corrupção existirá na sociedade respectiva. E o Brasil é vítima evidente do estatismo criado nos anos Vargas, mantido nas etapas posteriores, inclusive no regime militar, e exacerbado no período lulopetista.
Ney Carvalho

Alegria, alegria

Ligar o circuit breaker

Deixem-me ser mais claro: a realidade do que está acontecendo não é a que aparece na imprensa. Desde que a mudança de velocidade na produção de fatos mudou e a crise reduziu, na direção contrária, as condições das redações de apurá-los por meios próprios, elas vêm, cada vez mais, sendo usadas pelas partes em luta pelo poder para disparar, umas contra as outras, os seus dossies. 99% do que se publica hoje sobre a luta política em curso no Brasil não é material apurado por jornalistas, são dossies feitos por terceiros que os detonam através de órgãos com reputações mais respeitáveis que as suas.

Quem, no meio jornalístico, ainda entra nesse jogo depois de tudo que já passamos ou está sendo otário ou está de má fé.

Eu aposto meus 50 anos de jornalismo militante que todos os políticos brasileiros de hoje estão filmados e gravados em telefonemas, encontros com “traíras” e flagrantes de relação com “operadores” por sua vez filmados entregando ou recebendo malas de dinheiro. A diferença é que só uns poucos estão publicados enquanto a maior parte continua inédita por todas as razões menos porque não existam.

Essa generalização do recurso a financiadores de campanhas “revelada” nas delações não decorre de qualquer fraqueza genética especial do brasileiro, é só a consequência obrigatória do fato de insistirmos em manter um sistema político e eleitoral que começa pelos filtros corruptores do imposto sindical e do fundo partidário que dispensa os representantes de jogar a favor dos representados, e condiciona a progressão na carreira a eleições periódicas por colégios eleitorais de extensão continental, operação que custa uma quantidade de dinheiro de que só as mega empresas com fontes de faturamento alheias à lógica econômica podem dispor.

Quem ainda está em campo na política brasileira, portanto, é porque se elegeu com dinheiro de ésleys e odebrechts. E como essa gente é o que é, todos os candidatos que eles bancam — e as exceções já morreram por falta de verba de campanha — estão gravados e filmados pedindo e recebendo esse dinheiro. Permanecerão inéditos desde que não atrapalhem o “sistema”.

Todo brasileiro sabe disso e os brasileiros que melhor sabem disso, fora os políticos, são os jornalistas. Fazer cara de vestal escandalizada a cada vez que isto de que eles estão carecas de saber que é a regra e não a exceção, vem à tona, quando não é por motivo pior, é fazer o papel de otário que deles esperam os agentes do crime organizado que iniciam esses linchamentos.

A resposta a esse desafio é desconfiar de tudo e de todos sempre. Não “abraçar” denuncia nenhuma, venha de quem vier, venha contra quem vier, mas sim tratar de desconfiar e investiga-las todas para dar a conhecer, acima de qualquer duvida, que sentido ela faz no contexto maior da guerra de quadrilhas pelo poder.

É urgente dar uma freada de arrumação. Nenhum passo a mais nessa beira de abismo até que todas as forças que nos empurraram até ela estejam clarissimamente identificadas e mapeadas nas suas intenções e comprometimentos. Continuar de olhos fechados agindo como eles determinarem que ajam os órgãos de imprensa é nada menos que suicídio.

Fernão Lara Mesquita

Dezoito brevíssimas observações sobre o efeito JBS

O texto que segue contém observações avulsas sobre os acontecimentos desencadeados pelo encontro entre Michel Temer e Joesley Batista. Creio que sintetizam boa parte das inquietações nacionais.

1. Aquilo foi uma armação? Claro que foi. Afirmá-lo não torna Joesley mais culpado do que já é. E por mais que queiramos desanuviar a cena para o bem do país isso não exime Michel Temer de suas responsabilidades pessoais em relação ao fato.

2. O encontro jamais deveria ter acontecido. Lembram da viagem de Ricardo Lewandowsky, então presidente do STF, à cidade do Porto, em julho de 2015, para se encontrar, longe dos olhos da imprensa, com a então presidente Dilma Rousseff? Pois é. Existem reuniões essencialmente reprováveis.

3. A fita foi editada? Haverá uma perícia, tardiamente solicitada pelo ministro Fachin. No entanto, nessa hipótese, quem primeiro deveria ter denunciado isso seria o próprio Temer, para dizer que o diálogo não correspondia ao que foi conversado, que suas frases de aprovação não se referiam aos crimes confessados por seu interlocutor, mas a outros ditos proferidos no encontro.

4. Em momento algum, após a divulgação do áudio, o presidente mencionou que algo pronunciado por ele estivesse ausente da fita levada a público. E mais: quando seu visitante sumiu nas sombras da noite, nenhuma atitude tomou sobre o que dele tinha ouvido.

5. Não vislumbro, portanto, qualquer motivo para abrandar as responsabilidades da mais alta autoridade da República diante do que ouvi naquela gravação, e li na sua degravação.

6. O ministro Fachin atuou de modo apressado, pondo a prudência em risco? Sim, e pode estar na falta de uma perícia da fita, a saída para Michel Temer, na hipótese de que o pleno do STF, julgando o recurso impetrado pela defesa do presidente, suspenda a investigação contra ele. Mas isso não altera o fato em si.

7. O acordo de delação beneficiou os irmãos Batista de um modo escandaloso, que repugna a consciência nacional. A estas alturas, Marcelo Odebrecht deve estar se perguntando: "Onde foi que eu errei?". Não há demasia em imaginar que, no encerramento do acordo da laureada delação, a autoridade pública que o coordenou tenha dado um beijo nas bochechas dos Batista brothers e ido para casa abrir uma bouteille de champagne.

8. No entanto, conforme alertou o Dr. Luiz Marcelo Berger com base na Teoria dos Jogos, os dois salafrários podem vir a ser presos por outros crimes praticados fora do acordo celebrado com a justiça.


9. Toda essa situação beneficia o PT? Sim, tudo que é ruim para o Brasil é bom para o PT, e vice-versa. Por isso, o PT quer rasgar a Constituição e defende a ideia de diretas imediatas. Depois de bater os recordes mundiais de incompetência e corrupção, o partido imagina voltar ao poder para mais do mesmo. Suas lideranças ainda não fizeram ao país todo o mal que pretendem, nem a si mesmos todo o bem que aspiram.

10. O governo Temer emergiu do interior da gestão que dirigia o país desde 2003, compartilhada entre o que havia de pior no PT, no PMDB e no PP. O impeachment de Dilma Rousseff não foi uma campanha oposicionista para "eleger" Michel Temer presidente. Foi uma consequência dos atos por ela praticados e teve como consequência constitucional a posse do vice-presidente eleito e reeleito em chapa com ela.

11. O troféu da ingenuidade vai para quem esperou que um grupo de homens virtuosos saísse do interior daquele governo unido em torno do vice-presidente. Não havia gente assim por lá. Salvar a nação do naufrágio - e isso vem sendo feito - era uma parte da missão. A outra era salvar o próprio pêlo.

12. As medidas para sair da crise, reduzir o descrédito do país (ou, em melhor hipótese, melhorar a confiança nele) envolvem providências que, no curto prazo, causam rejeição popular. Com um Congresso marcado pela corrupção, assombrado pelo temor da reação dos eleitores no pleito de 2018, o apoio a tais medidas envolve concessões que reduzem o efeito das reformas. Elas ficarão ainda mais difíceis sob uma presidência fortemente atingida em sua honra pessoal.

13. Não há conveniência política nem suporte constitucional para uma antecipação da eleição presidencial. A Constituição de 1988, exatamente para evitar casuísmos desse tipo, tornou cláusula pétrea a periodicidade das eleições. Antecipar é romper a periodicidade.

16. Está constitucionalmente determinado que a sucessão do presidente, passada a primeira metade do mandato, se proceda por eleição indireta, através do Congresso Nacional. O artigo 224 da lei 13.165, da minirreforma eleitoral de 2015, define diferentemente, mas está em desacordo com a Constituição.

17. Os fatos ainda estão rolando, como pedras, morro abaixo. Impossível, portanto, fazer previsões com segurança. Inclino-me, porém, pela conveniência de afastar o presidente (por renúncia, por cassação da chapa no TSE ou, na pior das hipóteses, por impeachment), preservando a base de apoio para uma eleição indireta no plenário do legislativo nacional.

18. Pode ser que, um dia, em nova tormenta institucional sempre por vir, despertemos para a absoluta irracionalidade do nosso presidencialismo, pivô de crises que cada vez mais vigorosamente flagelam o país.

Percival Puggina

Os ratos pariram uma montanha

“A montanha pariu um rato”, pontificou Michel Miguel Elias Temer Lulia, minimizando os efeitos da gravação de conversa dele com um megaempresário corrupto. Pois os ratos é que pariram uma montanha. Montanha de mentiras, cumplicidades, negociatas.

Da montanha de mentiras que estamos lendo e vendo nos últimos dias, destaque-se a de que “o presidente não disse nada demais” naquela conversa, como se a omissão ou um “ótimo, ótimo” diante da revelação de crimes não fossem gravíssima cumplicidade. A de que Sua Excelência (quase ia teclando ‘ex-Excelência’) não tinha o deputado afastado Rocha Loures como despachante de total confiança é outra.

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É também deslavado cinismo o distraído mandatário garantir que não sabia que Joesley JBS estava sendo investigado. E que considerou mera bravata – sequer merecedora de reprimenda – este dizer que “segurava” juízes, sem se dar ao trabalho de indagar por que. E que o procurou por causa da “Carne Fraca”...

A montanha que está sendo parida aos olhos estarrecidos da Nação é também a de cumplicidades. O esquemão que irrigava campanhas e patrimônios, envolvendo quase todos os partidos políticos, é uma agudização do capitalismo de laços (ou de compadrio) do Brasil.

A política dos campeões nacionais do BNDES produziu monstrengos que passaram a controlar governos e bancadas parlamentares, como JBS, Odebrecht, Andrade Gutierrez e Fibria. Uma ‘conurbação’ empresa-Estado que passava pela leniência do CADE, do BACEN e da CVM, órgãos de controle que pouco ou nada controlavam sobre determinados ‘players’, motores do ‘progresso’ nacional e de expansão internacional ativadoras do nosso orgulho patriótico.

A montanha que avulta tem o peso de um modelo econômico que corrompe agentes públicos, nos Executivos e Legislativos, para viabilizar políticas que atendam aos interesses privados das grandes corporações. Elas não têm preferência partidária: seu “partido” é aquele que garantir financiamentos, isenções fiscais e leis que facilitem seus negócios.

Tudo pago com montanhosas propinas.

Pelo matadouro da Friboi passaram 28 partidos, ao custo de R$ 600 milhões. Uma montanha de dinheiro sujo! “Apenas R$ 10, 15 milhões não eram propina”, diz o diretor de Relações Institucionais da JBS, Ricardo Saud.

A montanha parida tem sempre como guia, para escalá-la, um roedor nativo, adaptado ao seu ecossistema. De vez em quando ele é trocado, quando deixa de ser funcional para os que querem explorá-la.

Mudá-lo, porém, não significa abrir nova trilha que possa desvendar para João e Maria (qualquer do povo) os mistérios da colina mágica do poder do dinheiro. A escolha do novo guia pelos tradicionais frequentadores do devastado bioma, em eleição indireta, é uma garantia de que tudo permanecerá como está.

Pode não dar certo, porém. Ventos uivantes vão corroendo as encostas do cinismo, da hipocrisia e da negociata. Ao pé da montanha, aglomera-se a cidadania. A tarefa despoluidora e cidadã que se impõe é tirar dos seus caminhos aqueles que tudo mercadejam. Expulsar os vendilhões é preciso: diretas sempre!