domingo, 26 de março de 2017

Fábulas brasilienses

Há uma brutal e cínica inversão de conceitos nas teses defensivas do mundo político para tentar zerar o jogo das ilegalidades cometidas há anos impunemente. A rainha do baile é a “criminalização da política”, teoria segundo a qual ao ser intolerante com a transgressão o país põe em risco a atividade de suas excelências. Pura fábula, pois ocorre justamente o contrário: as ações deletérias de políticos é que levaram a política a ser vista como caso de polícia. Ademais, a salvação reside exatamente na mudança de procedimentos em decorrência das punições.

Outra tese falaciosa: as investigações vão gerar injustiças, pois misturam honestos e desonestos “no mesmo barco”. Exagero proposital. Denúncias, para que sejam aceitas, necessitam de indícios; processos, de provas. Concluídas as apurações, a cada um será destinado o “barco” correspondente aos crimes cometidos. Ou não. É assim na Justiça, assim mandam as leis.


Governistas e oposicionistas não parecem compreender o que os levou a essa situação quando se unem no Congresso para engendrar maneiras de passar uma borracha no passado, assegurar foro privilegiado a parlamentares investigados, protegê-los do escrutínio do eleitor sob a saia da lista fechada de candidatos e ainda fazer com que a sociedade tire do bolso o dinheiro para pagar suas campanhas antes financiadas em boa medida por corruptores confessos.

Uma receita perfeita para alimentar a antipatia da opinião pública e robustecer a pauta das manifestações de rua já devidamente agitadas. No entanto, é isso que se engendra nas conversas iniciadas na semana passada entre os presidentes dos três poderes. Deu-se a essa união de interesses o nome de mobilização em prol da reforma política (na hora imprópria e em causa própria). É mais que isso: são tratativas sobre a possibilidade de conseguir uma “acomodação” das forças envolvidas, em particular o Ministério Público.

O Congresso “entregaria” a criminalização do caixa dois em troca de uma visão mais compreensiva por parte do MP sobre os diferentes tipos de crime envolvidos naquela prática. Um modo de abrir uma brecha para contradizer o entendimento de que, a despeito da existência de gradações entre uns e outros ilícitos, todos ferem a legalidade.

É uma tentativa. De difícil execução, mas é a única que suas excelências vislumbram no horizonte. A dificuldade reside na convicção de investigadores e julgadores de que a ideia é mesmo criar um ponto zero na crise, a partir do qual haveria um alegado recomeço. Importante integrante do STF rechaça a hipótese e aponta como prova a continuidade dos delitos mesmo após o julgamento do mensalão e das prisões da Lava­ Jato. “Continuaram fazendo tudo como sempre”, diz.

Se parlamentares conseguirem aprovar a receita de “salvação” pretendida, Rodrigo Janot deverá contestar, cabendo à Justiça decidir. “Aí veremos o Supremo que temos”, vaticina uma das figuras mais rigorosas e influentes da Corte.

Reestatizar, com urgência

É preciso reestatizar, com urgência, o aparelho de governo e todo o sistema da administração direta e indireta – ministérios, autarquias, agências e companhias estatais e de economia mista. A reestatização da Petrobrás, iniciada no ano passado, já se reflete no lucro no trimestre final de 2016, na redução do prejuízo anual, no reforço de caixa e na diminuição do endividamento, conhecido até recentemente como o maior do mundo. Mas é preciso ir muito mais longe. O escândalo da carne mostrou mais uma vez os males da privatização de órgãos e funções do poder público. Nada justifica o loteamento de postos típicos da burocracia estatal entre partidos, em nome de uma aliança governamental ou por causa da influência partidária numa região. Essa tem sido, no entanto, uma prática tradicional.

Revelada a operação contra frigoríficos acusados de fraude, o Ministério da Agricultura divulgou a lista de superintendências estaduais ocupadas por indicação partidária. Dezenove estavam preenchidas de acordo com reivindicações do PMDB, do PP, do PSDB, do PR e do PTB. A lista pode ter incluído funcionários de carreira ou figuras sem vínculo formal com o serviço, mas a diferença, nesse caso, é irrelevante. Nomeações para postos desse tipo só são aceitáveis quando subordinadas a critérios de administração profissional e, nesse caso, republicanos.

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A política pública e a gestão privada podem ter objetivos e valores diferentes. Mas os critérios de eficiência, competência, profissionalismo e impessoalidade são importantes nos dois tipos de ação. Além disso, o requisito da impessoalidade é especialmente relevante na área oficial. Não por acaso é uma exigência incluída no artigo 37 da Constituição: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. É o ethos burocrático, típico do Estado moderno, refletido claramente no texto constitucional. Uma característica importante da forma burocrática de organização do poder e das instituições é a separação entre os detentores da função e a propriedade dos meios.

Essa distinção se consolidou em fases diferentes, em diferentes Estados. O amadurecimento dessa noção parece ter ocorrido mais cedo na Inglaterra do que na França. Há quem aponte nos funcionários ingleses, já no fim da Idade Média, uma clara percepção da diferença entre os bens da Coroa e os bens do rei. O próprio rei poderia ainda se confundir, mas para seus burocratas a separação já era nítida.

No Brasil, como em Portugal, o ethos burocrático e a separação entre o público e o privado instalaram-se muito lentamente. Mesmo incorporada no sistema legal, a distinção demorou a pegar – e a mudança, em certos grupos e regiões parece ainda longe de se concluir. Pior que isso: têm ocorrido retrocessos. O mais notável, na História da República, parece ter sido a apropriação por um grupo partidário, no período petista.

Poucas vezes na História brasileira, talvez nunca, o adjetivo “republicano” foi pronunciado com tanta frequência. Raras vezes – de novo, talvez nunca – os meios públicos foram usados com tanto desembaraço para fins pessoais e partidários. Parte da história apareceu no processo do mensalão, mas foi só um pequeno aperitivo. A Operação Lava Jato permitiu uma noção muito mais clara da esbórnia patrocinada com recursos públicos, no caso, principalmente da Petrobrás, uma empresa de capital misto controlada pelo Estado.

A bandalheira mostrada por essas investigações tem sido geralmente descrita como uma sequência de atos de corrupção. Houve corrupção, de fato, assim como nos episódios de propina em troca de favores fiscais e nos casos de financiamento de campanha eleitoral com recursos de origem criminosa. Mas a corrupção em proporções tão grandes foi, sobretudo, um fenômeno político. Tamanha bandalheira dificilmente seria possível sem a apropriação partidária do aparelho estatal.

Partido político, segundo a lei, é “pessoa jurídica de direito privado” e “destina-se a assegurar, no interesse do regime democrático, a autenticidade do sistema representativo e a defender os direitos fundamentais definidos na Constituição Federal”. A maior parte da definição tem sido jogada fora. Tem sobrado a “pessoa jurídica de direito privado”, voltada quase sempre para a satisfação de interesses igualmente privados. Não há como descrever de outra forma o uso partidário da administração e dos meios das estatais, a negociação de favores fiscais e financeiros e o protecionismo comercial a grupos privilegiados. A distribuição política de postos típicos da burocracia pública, como evidenciou mais uma vez o escândalo da carne, é parte desse grande quadro.

A democracia efetiva envolve a limitação dos poderes dos governantes. Parte dessa limitação pode ser conseguida com a profissionalização dos quadros administrativos e com a restrição do arbítrio para nomear. Regras mais estritas para a gestão fiscal e para a concessão de financiamentos pelos bancos públicos podem também ajudar. Também vale a pena pensar na maior exposição à concorrência global.

Já foi aprovada uma lei para disciplinar as nomeações para altas chefias nas estatais, mas ainda há brechas, embora mais estreitas, para indicações políticas. Sempre será possível enfraquecer essas normas, como se enfraqueceram as da Lei de Responsabilidade Fiscal, enquanto houver espaço para o populismo, for valorizada a imagem do Estado paternal e a educação muito deficiente limitar a cidadania efetiva. Mas não há alternativa. Resta continuar tentando, sem esquecer um detalhe: a corrupção tem florescido principalmente porque a privatização do sistema estatal a favorece. A reestatização pode ser uma bandeira.

Rolf Kuntz

Gente fora do mapa

by Manuel Libres Librodo:
Manuel Libres Librodo

Consertar o que não tem conserto?

Nada no mundo é tão ruim que não possa ser piorado. Esse enunciado pertence ao saber universal, mas aplica-se como uma luva aos surtos periódicos de preocupação com a reforma política que acontecem em Brasília. Nas condições atuais, com a classe política atolada na corrupção, todo cuidado é pouco.Outro dia os presidentes da Câmara e do Senado reuniram-se com o presidente Michel Temer e com o ministro Gilmar Mendes, que ora preside o Tribunal Superior Eleitoral. Irmanados, os três Poderes quiseram (suponho) sinalizar que dessa vez é para valer. Que agora a reforma será de fato encarada como prioridade.

O problema, como sempre, são os detalhes; é neles que o demônio se esconde. Para eleger os deputados, aventa-se, por exemplo, a adoção do voto em lista fechada. Em vez de votar num candidato individual dentro da lista de determinado partido, o eleitor passaria a votar numa lista previamente hierarquizada pela convenção partidária. É como se votasse só na legenda, com a diferença de que conheceria de antemão os candidatos que o partido considera prioritários. O objetivo de tal mudança seria reduzir os custos da campanha. A propaganda seria muito mais institucional que individual.

Pode-se também argumentar que a lista fechada fortalece a organização partidária, reduzindo o individualismo dos políticos que a integram. Observe-se – e esse ponto é fundamental – que a proposta é adotar a lista fechada sem alterar o restante do mecanismo eleitoral, quero dizer, o modelo de voto proporcional vigente. Isso é muito diferente do que acontece no modelo alemão, conhecido entre nós como voto distrital misto. Nele, o eleitor tem direito a dois votos. Com o primeiro ele endossa (ou não) a lista fechada, previamente hierarquizada pelo partido. Com o segundo ele escolhe o candidato federal de sua preferência, mas no nível local, ou seja, no distrito onde reside, mais ou menos como ocorre numa eleição para prefeito. Isso me parece perfeitamente legítimo e democrático.

Como vem sendo discutida em Brasília, a proposta de lista fechada abriga diversos demônios. Implantada para valer já em 2018, ela facilitaria a sobrevivência de numerosos corruptos que se apossariam das primeiras posições e se elegeriam de uma forma quase automática
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Um pouco de silêncio

Nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho, gostar de sossego é uma excentricidade.

Sob a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações. Muitas desnecessárias, outras impossíveis, algumas que não combinam connosco nem nos interessam.

Não há perdão nem amnistia para os que ficam de fora da ciranda: os que não se submetem mas questionam, os que pagam o preço da sua relativa autonomia, os que não se deixam escravizar, pelo menos sem alguma resistência.

arcadiaart:
“Léon-Jean-Basile Perrault (French, 1832-1908), “Méditation” ”
Léon-Jean-Basile Perrault (1832-1908),
“Méditation”.
O normal é ser atualizado, produtivo e bem informado. É indispensável circular, ser bem-relacionado. Quem não corre com a manada, praticamente nem existe. Se não tomar cuidado, põem-no numa jaula: um animal estranho.

Pressionados pelo relógio, pelos compromissos, pela opinião alheia, disparamos sem rumo – ou por trilhos determinados – como hamsteres que se alimentam da sua própria agitação.

Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se em casa ou dentro de si mesmo ameaça quem apanha um susto de cada vez que examina a sua alma.

Estar sozinho é considerado humilhante, sinal de que não «se arranjou» ninguém – como se a amizade ou o amor se «arranjasse» numa loja.

Além do desgosto pela solidão, temos horror à quietude. Pensamos logo em depressão: quem sabe terapia e antidepressivos? Uma criança que não brinca ou salta ou participa de actividades frenéticas está com algum problema.

O silêncio assusta-nos por retumbar no vazio dentro de nós. Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incómodas e mal-resolvidas, ou se observa outro ângulo de nós mesmos. Damo-nos conta de que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre a casa, o trabalho e o bar, a praia ou o campo.

Existe em nós, geralmente nem percebido e nada valorizado, algo para além desse que paga contas, faz amor, ganha dinheiro, e come, envelhece, e um dia (mas isso é só para os outros!) vai morrer. Quem é esse que afinal sou eu? Quais os seus desejos e medos, os seus projectos e sonhos?

No susto que essa ideia provoca, queremos ruído, ruídos. Chegamos a casa e ligamos a televisão antes de largarmos a carteira ou a pasta. Não é para assistirmos a um programa: é pela distracção.

O silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe Deus que desconcerto nosso. Com medo de vermos quem – ou o que – somos, adiamos o confronto com a nossa alma sem máscaras.

Mas, se aprendermos a gostar um pouco de sossego, descobrimos – em nós e no outro – regiões nem imaginadas, questões fascinantes e não necessariamente negativas.

Nunca esqueci a experiência de quando alguém me pôs a mão no meu ombro de criança e disse:

— Fica quietinha um momento só, escuta a chuva a chegar.

E ela chegou: intensa e lenta, tornando tudo singularmente novo. A quietude pode ser como essa chuva: nela nos refazemos para voltarmos mais inteiros ao convívio, às tantas frases, às tarefas, aos amores.

Então, por favor, dêem-me isso: um pouco de silêncio bom, para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, e tudo o que fala muito para além das palavras de todos os textos e da música de todos os sentimentos.

Lya Luft

Pobreza custa mais


A pobreza é algo que sai muito caro: gera mais delinquência, resultados acadêmicos piores, doenças mentais. Seria muito mais econômico erradicar a pobreza do que combater os sintomas que ela causa.
Rutger Bregman, "Utopia para realistas"

Em nome do país

“É mais uma vitória no caminho do Brasil que queremos”, comemorou o presidente da Fiesp, Paulo Skaf. “É um avanço para o Brasil”, endossou o presidente da Associação Comercial de São Paulo, Alencar Burti. Os empresários falaram em nome do país ao festejar a manchete dos jornais desta quinta-feira (dia 23): a Câmara liberou a terceirização irrestrita do trabalho. Faltou esclarecer se a notícia é mesmo boa para todos, ou apenas para os donos do dinheiro.

A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho sustenta que a mudança não é nada patriótica: na prática, vai tirar direitos dos trabalhadores. Para a entidade, o objetivo do projeto é aumentar os lucros das empresas com a precarização dos vínculos dos funcionários.


Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revela que os terceirizados recebem 17% a menos no fim do mês. De acordo com o Dieese, eles sofrem cerca de 80% dos acidentes de trabalho e permanecem 2,6 anos a menos no emprego.

Numa estratégia negociada com o governo Temer, a Câmara desengavetou um projeto de 1998 para liberar a terceirização irrestrita. Com a manobra, o texto não precisará ser votado no Senado, onde haveria mais resistência à sua aprovação.

O texto foi encaminhado à sanção presidencial. No dia seguinte, as empresas estarão livres para demitir funcionários e obrigá-los a formar cooperativas ou a se “pejotizar” para continuar trabalhando.

Governo e empresários repetem que a mudança vai reduzir o desemprego. Falta explicar por que a taxa atingiu o menor nível histórico no fim de 2014, quando a legislação trabalhista era rigorosamente a mesma.

Os defensores do projeto também acenam com um salto social para os terceirizados. O presidente do Sebrae, Guilherme Afif Domingos, descreveu um cenário em que “o operário vira empresário”. Se os procuradores do Trabalho estiverem certos, o operário vai continuar operário. Só que com menos direitos.

Imagem do Dia

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Parque Nacional de Vercors (França)

Lula e as pernas da mentira

Com pernas muito mais longas do que o dito popular proclama, a mentira sempre foi parceira dos políticos, por vezes confundida com esperteza e até sabedoria. Mas verdade seja dita: só foi institucionalizada no Brasil a partir do governo do ex Lula, que a ela conferiu requintes de mestre.

Lula mente com convicção.

“Não acredito que o mensalão tenha existido”, disse Lula em 2012 em entrevista ao The New York Times. O mesmo Lula que, com olhos marejados, pediu desculpas aos brasileiros pelas falcatruas cometidas por companheiros. E que, entre “indignado” e “traído”, assegurava nada saber.

O mesmo Lula que, com palco e pompa produzidos pelo PT, tenta agora destruir a Lava-Jato – “uma moeda que tem a cara da Globo, de outros jornais, da Polícia Federal, do Sérgio Moro, e não tem a cara do povo que tá sendo prejudicado”.

Embora sem pé nem cabeça – como o povo estaria sendo prejudicado por uma operação que escancara as vísceras da corrupção? –, a frase remete à grande conspiração, em que tudo, todas as ações do Ministério Público, da Polícia Federal, da Justiça e da imprensa, têm como objetivo banir Lula da vida política nacional. E, com ele, toda a “esquerda”.

Essa foi a inspiração do seminário “O que a Lava-Jato tem feito pelo Brasil”, realizado pelo PT sexta-feira em São Paulo: dar solidez ao estado conspiratório.

E, claro, fermentar a campanha Lula 2018, melhor antídoto encontrado para protegê-lo dos processos em que é investigado, aos quais petistas e simpatizantes atribuem o caráter de perseguição.

Não fosse pela gravidade de se promover um evento para negar fatos, vários deles já julgados e com condenações, o seminário, de tão estapafúrdio, teria lugar de honra na galeria do riso.

Ali se gritou contra o vazamento criminoso de denúncias que envolvem roubalheira de companheiros e a favor daquelas que enredam gente do PMDB e do PSDB.

A Lava-Jato foi taxada como operação criada para “quebrar a Petrobras”, como acusou José Maria Rangel, presidente da Federação Única dos Petroleiros. Ou para inviabilizar o desenvolvimento do Brasil, segundo Luiz Gonzaga Belluzzo, economista responsável pela criativa definição de neoliberalismo: “é regime de regulamentação para apropriação do Estado pelos interesses privados”.

Isso dito diante de um ex-presidente e de um partido que desenvolveram um primoroso know-how em apropriação do Estado para interesses partidários ou, simplesmente, para rechear os bolsos.

Sem ter como se livrar das denúncias que cada vez ficam mais encorpadas, o PT – Lula à frente – tenta tirar proveito da segunda lista do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na qual há mais gente do PMDB, PP, PTB e até PSDB do que petistas, presentes com fartura no mensalão e no rol inicial do MPF, há dois anos.

Transformado em golpista, o ex-aliado PMDB, com quem Lula e Dilma subiram de mãos dadas ao Planalto, teria se enveredado em falcatruas por conta própria, sem conhecimento ou chancela dos petistas que comandavam a tropa. Mais: PROS, PRB e PC do B não venderam seus horários eleitorais para Dilma, embora tenham entregado todos os minutos à campanha dela.

Mas nada se compara à desfaçatez de Lula.

Como se fosse um jogo cujo placar trará vitorioso x derrotado, ele desrespeitou o juiz Sérgio Moro, o coordenador da força-tarefa da Lava-Jato, Deltan Dallagnol, e a Polícia Federal ao desafiá-los em uma disputa inexistente. “Eles deram azar porque foram mexer com quem não deveriam ter mexido. Nem Moro, nem Dallagnol têm a lisura e a ética que eu tenho nesses 70 anos de vida”, disse Lula.

E, como se a Justiça tivesse qualquer intenção de barganhar com ele, transformou a obrigação de depor em Curitiba, dia 3 de maio, em ato de luta: “Eu vou nessa briga até o fim. Eu não tenho negociata”.

É assim que Lula dá elasticidade às pernas da mentira. No passado, isso funcionou junto ao grande público. Hoje, limita-se aos fiéis seguidores. Dificilmente impressionará a Justiça.

Diferenças, aqui, não contam

Está errado estabelecer uma única idade para todos os tipos de trabalho. Com a única palavra “trabalho” nós nos referimos a atividades profundamente diferentes.
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Vamos supor que um mineiro trabalhe, um metalúrgico trabalhe, um bancário trabalhe, um cientista trabalhe, um artista trabalhe, um empresário trabalhe, um poeta trabalhe. Efetivamente se tratam de atividades muito diferentes entre si e diversamente desgastantes

Juízes políticos?

Alguém se candidata ao cargo de juiz. Para ganhar votos, distribui bolinhos, cupons de gasolina, pizzas para professores de escolas públicas, bebidas grátis para a patuleia. É assim que a campanha eleitoral de Thomas Spargo lhe fornece a toga em Nova York, no ano da graça de 1999. Eleito, Spargo cria elos com políticos que arrecadam estranhos fundos partidários. Sua esperteza lhe garante lugar elevado na judicatura, pois chega em 2001 à Suprema Corte do Estado. Ele sofre processo na Comissão de Conduta Judicial, mas não muda o comportamento. Em 2006 é destituído por exigir propina de advogados, sua condenação sai em 2009.

A crônica não é lisonjeira, na terra que preza a dupla Law and Order. Mas boa maioria dos juízes norte-americanos opera na mesma zona cinzenta entre atividades judiciais e partidárias. É o que o jornal The New York Times batizou de “realismo legal”. Os magistrados labutam, na essência, em horizonte político (J. Bybee, k.: All Judges are Political, except when they are not, acceptable hypocrisies and the Rule of Law, Stanford Law Books, 2010).


Se nos Estados Unidos ocorre o conúbio de tribunal e política, que dizer do Brasil? A União Nacional dos Juízes Federais (Unajuf) quer magistrados em pleitos e partidos (Estado, 14/3). Mas aqui nenhum juiz é sufragado pela stulta plebs. Nossas togas são escolhidas em concursos, sem favores e votos do eleitor. A dignidade do tribunal, em terras brasileiras, não seria conspurcada por ofertas de pizzas e bebidas gratuitas aos cidadãos. Os juízes pertencem a uma estirpe superior. Seu ânimo e suas sentenças nada devem aos escrutínios em que se pronuncia o “leigo”. Tais enunciados, entretanto, resumem uma ilusão. Estamos aqui em pleno domínio do mito, cauim sorvido em talagadas que reiteram a dormência geral.

Segundo Thomas Spargo, os juízes são políticos “except when they are not”. O sentido da frase é tarefa da mais árdua hermenêutica. Nos Estados Unidos, adianta Bybee, “muitos reconhecem que o processo judicial é permeado pela política. Outros parecem acreditar que as decisões judiciais são definidas por fundamentos puramente legais”. Mas cerca de 87% dos juízes, em 39 unidades da Federação, passam pelas urnas. Aqueles pleitos não diferem dos efetivados para os demais Poderes públicos. E eles custam muito financeiramente. Em 2004 a eleição para a Suprema Corte de Illinois gastou mais do que 18 das 34 eleições para o Senado realizadas no mesmo ano. Anúncios na TV e outros meios são garantidos por grupos de interesse e partidos políticos (Cf. Bybee, J. (Ed): The Collision of Courts, Politics, and the Media, Stanford, 2007).

Custos chamam doadores, doadores nem sempre (o Brasil é prova) buscam alvos legais. Logo, a fé na obediência imparcial e objetiva à Constituição sofre abalos. A média das pesquisas feitas entre 1989 e 2009 mostra que 67% dos entrevistados consideram os juízes imparciais. Mas 70% têm certeza que as sentenças trazem máculas políticas. Para atenuar o problema desde 1940 alguns Estados empregam recrutamento diverso do das urnas. É o “Plano Missouri”. Comissões não partidárias avaliam candidatos e os recomendam. Aos cidadãos é perguntado apenas se aprovam ou não os juízes; 34 Estados usam variantes do “Plano Missouri”. Tais consultas são menos onerosas do que as outras.

Mas, cautela! O processo ordenado supostamente no mérito dos candidatos, adianta Bybee com provas, “pode envolver politicagem (politicking) e lobbies nos bastidores”. O âmbito federal, no qual os juízes não passam por eleições, é mais confiável? Indicados pelo presidente, acolhidos por senadores, magistrados têm permanência garantida, desde que seus costumes sejam pautados pelo decoro. Encantador universo do sonho. Na vida real não é assim. Na Suprema Corte “independente do povo, dos legisladores e de todo poder sob o firmamento”, os juízes “percebem a si mesmos independentes do próprio céu” (Shklar, J. N., Legalism: Law, Morals, and Political Trials). A seleção para os pretórios federais, hoje, “é um assunto altamente político, com funcionários eleitos que perseguem os nomeados para resolver problemas importantes de partidos e proeminentes grupos de interesse” (Hart, H. L.A., The Concept of Law). Poderíamos seguir as teses do autor e de outros sobre a Justiça enleada em política nos Estados Unidos, na França, na Alemanha, na Itália, etc. Do jurista Bybee, urge consultar a importante resenha Electing Judges: The Surprising Effects of Campaigning on Judicial Legitimacy”, em Book Review 22, 2012. Para uma análise diversa, Tamanaha, B. Z., Beyond the Formalist-realist Divide: The Role of Politics in Judging, 2010.

No Brasil, causa tristeza a mendicância – ou o termo chulo usado por Romero Jucá – de quem deseja lugar nos tribunais superiores e no Supremo. A lista de votos inclui muitos fornecidos por congressistas corruptos. Candidatos prometem a políticos, depois presos e condenados, “matar no peito” processos contra eles. Outros aceitam parolagens em chalanas e são aprovados, mesmo constatado plágio em seu doutoramento. Uma consulta à biografia de Saulo Ramos ilustra o ponto. Há diferença entre tais zumbaias e a demagogia dos juízes eleitos pelos cidadãos? Os nossos candidatos à toga não distribuem pizzas aos parlamentares. Eles prometem – se entregam é outro assunto – leniência explícita ou velada. São curiosos os encontros entre julgadores e réus, no segredo dos gabinetes ou no exterior. Salamaleques, num Congresso que tudo troca, parecem piores do que a bajulação das massas. A promiscuidade se transforma em regra. Procuremos saídas que mantenham a dignidade do juiz, da lei, do cidadão honesto. O Estado brasileiro, nos três Poderes, exala miasmas irrespiráveis.

Tape o nariz pelo bem da República, pede o TSE

Pawel Kuczynski
Ao empurrar os depoimentos dos delatores da Odebrecht para dentro do processo sobre a cassação da chapa vitoriosa nas eleições presidenciais de 2014, o relator do caso, ministro Herman Benjamin, ofereceu ao Tribunal Superior Eleitoral a oportunidade de fazer história. São eloquentes as evidências de que passaram pela caixa registradora da campanha de Dilma Rousseff e de Michel Temer verbas sujas saídas do departamento de propinas da maior empreiteira do país.

Pela lei, os ministros do TSE teriam duas providências a adotar. Primeiro, interromper a presidência-tampão de Michel Temer, cassando-lhe o mandato. Depois, decretar a inelegibilidade de Dilma Rousseff. Mas no Brasil, Deus às vezes dá toga a quem não tem coragem de julgar. Arma-se na Corte Eleitoral um conchavo para deixar tudo como está, para ver como é que fica.

Alguns ministros do TSE sustentam a tese de que é preciso aplicar às culpas que saltam do processo uma avaliação atenuatória que leve em conta as consequências danosas de uma eventual cassação de Temer. Por esse raciocínio, o país não suportaria uma segunda destituição de presidente em tão pouco tempo. A tese tem dois problemas: 1) Passa a impressão de que a lei é dura, mas estica. 2) Subestima a inteligência do brasileiro.

Inédito, o processo do TSE contra uma chapa presidencial poderia representar um marco saneador. Mas em vez de promover a limpeza, fixando novos parâmetros de assepsia, a turma do deixa-disso prefere acomodar o lixo sob o imenso tapete nacional. O TSE pede aos brasileiros que tapem o nariz em nome da estabilidade da República. O Brasil virou um país inusitado. Nele, todos vêem o problema. Mas ninguém quer enfrentá-lo. Apesar de tudo, o país tem saída. Ainda não roubaram o Aeroporto Internacional de Cumbica.

Paisagem brasileira

Rio Preto (Visconde Mauá - RJ)

Sai da rua, gente!

Se dependesse do governo Temer, choveria canivete, esta tarde, na Avenida Paulista. Bastaria que chovesse por lá. Porque o melhor termômetro para conferir o sucesso de manifestações de rua no país é a Avenida Paulista.

Pôr gente para desfilar pela orla do Rio debaixo de um sol abrasador de domingo é moleza: basta tocar um bombo e cantar uma marchinha. No caso de Salvador, ligar um trio elétrico. Ivete Sangalo pode ficar em casa.

O grupo Vem Pra Rua, responsável por várias manifestações durante o processo de impeachment de Dilma, calcula que as de hoje acontecerão em pelo menos 114 municípios do país, e quatro cidades no exterior.

O objetivo dos protestos é apoiar a Lava Jato, pedir o fim do foro privilegiado para políticos e barrar a aprovação do projeto que introduz o voto em partidos, acabando com o voto em candidatos.

As reformas previdenciária e trabalhista ficarão de fora. Também não haverá espaço para pedidos de “Fora Temer”. É assim que está planejado. Falta combinar, naturalmente, com o povo que comparecer.

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Aí é que mora o perigo para o governo. Muita gente nas ruas cobrando isso e aquilo é sempre um risco para qualquer governo – quanto mais para um que chegou ao poder nas circunstâncias conhecidas.

É fato que a economia começa a dar sinais de recuperação, mas o desemprego ainda teima em crescer. A rala popularidade do governo Temer continua sendo atestada por todas as pesquisas.

O apoio das ruas à Lava Jato incomoda um governo com sete a oito ministros atingidos por delações; um governo que depende visceralmente para sobreviver de um Congresso povoado por suspeitos de corrupção.

De resto, ninguém controla multidões – nem mesmo a polícia em certos casos. Como garantir que fatias delas não gritem “Fora, Temer” ou não protestem contra a reforma da Previdência?

Feliz domingo de sol para todos.

A agonia da nova República Velha

A política tem sido o melhor negócio dos últimos anos, um guichê até agora sem riscos para malfeitores protegidos por foros privilegiados. Assalto à mão desarmada, com chantagens a vender facilidades, a corrupção grassa desde sempre. Episodicamente, o circo desfralda a bandeira da moralidade para que, como na prestidigitação do Gattopardo, tudo mude para igual ficar.

A fachada do negócio tem nome: contribuição “voluntária” para propaganda eleitoral “gratuita”, venda de emendas, ameaça de CPIs, engrenagem azeitada para enriquecer os eleitos, escamoteando propinas e caixas de tons variados. A esta altura, vão sendo abertas as delações das empreiteiras. Falta abrir a lista da amável e desinteressada ajuda financeira das, digamos, 50 maiores empresas brasileiras e multinacionais com atuação no país... Aí teremos a real dimensão da falcatrua e de toda cadeia de valor dos corruptores aos beneficiados nos últimos anos.

Por que a propaganda “gratuita” ficou tão cara? Pesquisas de opinião, produções hollywoodianas, biombos com o fito de enganar o caro eleitor e o pobre cidadão, aqueles que pagam afinal toda a conta da corrupção.

O coronelismo marcou a República Velha. O jagunço da oligarquia do café com leite deu lugar a mulas que carregam envelopes, mas os beneficiários são os mesmos que não o povo: os políticos de ocasião, opositores dos ideais republicanos e inimigos da Nação, sem outro interesse senão locupletar-se pela manutenção do poder, esquecidos de que a política aristotélica é moral e que o fim do Estado é a virtude.

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A confusão é grande: o judiciário assume ares de executivo, o executivo se traveste de legislador reformista e o legislador é mercador de facilidades ou dificuldades, dependendo de quem pagará mais.

O Brasil tinha pressa; agora, de fracasso em fracasso, destruídos a esperança e os sonhos, desperdiçados os sacrifícios e as conquistas, têm pressa de enterrar o Brasil. Vêem-se fantasmas nos palácios, enquanto, fora deles, as cidades se agitam, o povo grita, mas os gritos ainda são surdos. Os ratos querem safar-se do titânico assalto antes de botar o último prego no caixão.

A nova República começou a morrer com Tancredo Neves, assim como a velha República deu sinais de moribunda com a gripe espanhola que sepultou o segundo mandato de Rodrigues Alves. Não se sabe a que coveiro caberá enterrar a velha-nova República e junto dela os fantasmas dos coronéis praticantes da pior política. Ficará conhecida como a República da Propina como a República Velha foi chamada de República Oligárquica ou República da Bucha.

A palavra em crise

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Se, como se diz, a linguagem é o que primeiro se degrada quando um país se corrompe, o Brasil está oferecendo vários exemplos.

A prova de que o fenômeno ocorre em todos os níveis foi dada esta semana pelo barraco entre dois dignos representantes de nossas mais altas instituições (usa-se preconceituosamente “barraco”, como se certas trocas de ofensas fossem exclusividade de favelados).

Fiquei chocado não por moralismo, mas porque sou do tempo em que juiz só se manifestava nos autos, não em bate-bocas pelos jornais. E que procurador, para criticar os excessos verbais de um supremo desafeto, não se excedia e preferia usar “incontinência” em lugar de “disenteria”, como agora.

Mas esse triste episódio entre o procurador-geral da República e o presidente do TSE, que não respeitaram sequer a liturgia dos cargos, tem mais a ver com a decadência da política e das relações institucionais do que com a crise da palavra escrita e falada, que é mais geral e é atribuída à difusão da chamada “linguagem virtual”, praticada principalmente pelos jovens internautas.

Lendo um ensaio sobre o fenômeno, encontrei o seguinte exemplo, retirado de uma mensagem da internet: “Og v6s naum tem 9da10”. A frase escrita, que reproduz a fala oral, quer dizer: “Hoje vocês não têm novidades”.

Essa é uma curiosa contradição: graças às redes sociais, nunca se escreveu tanto — e tão mal.

As três instâncias da linguagem — a vocabular, a semântica e a gramatical — são comumente atropeladas pela pressa ou pela ignorância das normas da língua. Mais até por esta.

Outro dia, ao reclamar por não estar entendendo uma mensagem, recebi como desculpa: “É a preça”. Informei então que se gasta o mesmo tempo escrevendo a palavra certa.

Mas é inegável que a rapidez contribui para a popularidade de uma forma de comunicação como o Twitter, cuja “arqueologia” mereceu cerca de 40 páginas do mais recente livro de Domenico De Masi (“Alfabeto da sociedade desorientada”).

Segundo ele, “o Twitter representa a última metamorfose do aforismo”, um termo usado pela primeira vez por Dante Alighieri e um gênero adotado por dezenas de grandes escritores desde a Antiguidade. Inclusive Nelson Rodrigues, mas o melhor exemplo é o de Hipócrates: “A vida é breve, a arte longa, a ocasião fugidia, a experiência falaz, o juízo difícil”.

Ao contrário do cético José Saramago, para quem o homem “de degrau em degrau vai descer até o grunhido”, o sociólogo italiano propõe a reconciliação com um instrumento de comunicação mal afamado depois que Trump o transformou numa usina permanente de impropriedades. O que ele mostra é que o problema não é da ferramenta, mas de quem a usa.