segunda-feira, 20 de março de 2017


A podridão é por nossa conta

A carne é fraca. Todos sabemos. É de conhecimento público e notório. Está na bíblia. É fraca, mas não precisa ser podre. Só apodrece quando o espirito se corrompe.

É possível, claro, olhar para a corrupção como uma serie de condutas individuais não relacionadas. Mas isso seria de interesse quase exclusivo de criminalistas, advogados de defesa, juízes, operadores de direto, enfim. Para todos os demais, talvez seja mais importante o caráter endêmico da corrupção.


A lei dos grandes números demonstra que indivíduos, quanto analisados separadamente são extremamente imprevisíveis. Mas em conjunto, seu comportamento é semelhante, previsível, enfim.

Portanto, corrupção endêmica implica que parcelas significativas de setores que controlam recursos são expostas a ambientes que favorecem este comportamento e explicam a incidência que forma a endemia. Explica, mas não justifica, claro. Em outras palavras, ambiente favorece e incentiva a corrupção.

Seria mais simples se a incidência da corrupção pudesse ser explicada somente pela falha de órgãos de controle ou ausência de marco regulatório para sua contenção. Seria simples, fácil, mas é falso. Corrupção neste volume tem em sua raiz incentivos que favorecem aqueles que a praticam. E isso muda tudo.

Durante muito tempo, alegou-se que corrupção é problema moral, não econômico. Nada mais falso. Corrupção, quando endêmica, é problema econômico sério. Ela muda a maneira como se define o sucesso, como se conduz negócios, e como se selecionam líderes em todas as esferas, pública ou privada.

Quando as relações econômicas se definem através da corrupção, o sucesso é proporcional a capacidade de adaptação e habilidade não operação da corrupção. E, portanto, é a familiaridade do indivíduo com estes métodos que determinarão suas oportunidades econômicas e profissionais.

No tempo, a exposição a estas regras de seleção natural faz com que os lideres, públicos ou privados, sejam escolhidos baseados em sua capacidade de operar em ambiente corrupto. Outras variáveis, como conhecimento, dedicação, produtividade, talento, ficam em segundo plano.

E o resultado é ruim para todos. O foco deixa de ser produzir e passa a ser gerenciar teia de relações que possam criar privilégios e facilidades. E, portanto, deixa de importar a qualidade dos produtos ou serviços, públicos ou privados.

Vem a degradação. Nada é entregue no prazo ou dentro do orçamento. E, uma vez entregue, a qualidade é, parar ser educado, duvidosa. Ou simplesmente irreconhecível.

Corrupção custa dinheiro, saúde, vidas, felicidade. Corrupção endêmica, cria oportunidades e retornos para corruptos. E estas oportunidades se transformam em incentivos. Ou, se preferimos, tentações.

Somente será possível diminuir a corrupção se este sistema de incentivos que a gera for reformado. A carne, afinal, é fraca. Mas a podridão é por nossa conta.

As almas se dividem entre as próximas de Tolstói ou de Dostoiévski

Existem dois tipos de alma: ou você está próximo de Dostoiévski (1821-1881) ou de Tolstói (1828-1910). Talvez pareça excessivamente chique uma divisão dessas, mas, ao fim dessa coluna, espero que fique menos obscuro esse critério.

Essa é a tese do crítico George Steiner em seu maravilhoso livro "Tolstói ou Dostoiésvki", da editora Perspectiva. Um dos livros mais belos que já li na vida.

Próximo ao "Obras do Amor" de Kierkegaard (1813-1855), que é de longe o livro mais belo escrito em filosofia ou teologia que conheço.

A beleza e o amor suspendem a vida acima da banalidade do cotidiano. Despertá-los talvez seja a missão mais sublime que alguém pode ter na vida com relação aos seus semelhantes.

Uma das forças da literatura clássica é nos fazer conhecer a nós mesmos. Sei que está na moda dizer que não existe literatura clássica, mas deixemos de lado essa discussão entediante.

A tipologia que nos propõe Steiner deita raízes nos dois estilos gregos: o épico e o trágico. Tolstói estaria no primeiro, Dostoiévski no segundo. E, por consequência, são dois modos distintos de viver a vida. Ambos carregando a grandiosidade de espíritos avassaladores, como os dois escritores russos.


Ricardo Cammarota
O épico seria o estilo em que a vida está envolvida pela presença do mito ou da religião, fundando uma ação fincada na esperança prática do transcendente (mundo dos deuses) e, por consequência, na esperança da redenção do mundo.

Salvar o mundo é sua marca. Pessoas épicas sentiriam que suas vidas são acompanhadas por forças que as tornam capazes de redimir o mundo de suas misérias. Sua virtude central é a esperança.

Por "prática" aqui, quero dizer que não se trata de um espírito religioso meramente teórico ou alienado do mundo, mas profundamente enraizado nas agonias e demandas do mundo.

Para Steiner, Tolstói tem esse espírito de modo bem evidente, entre outros momentos, no período em que escreve "Ressurreição", que começou a ser publicado na Rússia em fascículos em 1899. O Conde Tolstói nessa época estava bastante envolvido na luta contra as injustiças da Rússia czarista, e abraçou, no final da vida, uma forma de anarquismo cristão pietista bastante radical.

O trágico seria o estilo em que o olhar para a vida se mantém fincado na fragilidade dela.

A precariedade é a estrutura dinâmica da vida. Nas palavras do escritor americano Henry James (1843-1916), uma vida tomada pela "imaginação do desastre". Aqui não há redenção, há coragem de enfrentar esse "desastre" que é a existência humana. Para Steiner, esse é a alma dostoievskiana. Sua virtude central é a coragem.

Aqui, mesmo que haja o divino, como há em Dostoiévski, o peso do drama cai sobre as costas do homem que caminha sozinho pelo chão do mundo. A beleza de Deus, na forma de "taborização" de seus místicos, como se fala na teologia russa, em referência à transfiguração do Cristo no Monte Tabor, aparece sempre como iluminação da agonia humana a sua volta (basta ver o Príncipe Mishkin do romance "O Idiota").

O místico em Dostoiévski ilumina por contraste. Sua luz divina faz a doçura do perdão brotar na consciência atormentada do pecador.

Uma alma tolstoiana é uma alma iluminada pela esperança e pela vitalidade que Deus a empresta. Seu elemento é a força de atuar no mundo social e político.

Uma alma dostoievskiana é iluminada pela dor e pela coragem que a mantém de pé. Seu elemento é a misericórdia como substância de sua psicologia espiritual.

E como passamos dessa alta teologia para o chão do cotidiano de nós mortais?

Almas tolstoianas lutam a cada dia contra a miséria do mundo, fazendo deste um campo de batalha contra o mal, movidas por uma certeza que parece alucinada.

Almas dostoievskianas, um tanto mais delicadas, suportam o sofrimento encantando o mundo a sua volta com piedade e sinceridade avassaladoras.

Felizes são aqueles que convivem com pessoas assim. A vida se transfigura em esperança e coragem. Duas faces da graça que sustenta o caminho dos homens.

Mas, sem humildade, como sempre, seremos cegos a essas virtudes de Deus.

Reforma política mal passada

Após a Polícia Federal espetar a JBS na Carne Fraca, não dá mais para ignorar que empresas suspeitas de corromper funcionários públicos investiram R$ 1,2 bilhão (corrigida a inflação) na eleição de 2014. E isso só pelo caixa 1. É mais da metade de tudo o que foi doado oficialmente por grandes financiadores (quem deu mais do que R$ 2 milhões) para candidatos a presidente, governador, senador, deputado federal e estadual.

Tampouco dá para esquecer que esses grandes doadores alvos da Lava Jato e de outras operações policiais colocaram largas somas nas campanhas de praticamente todos os partidos grandes e médios, além de alguns nanicos: PT, PSDB, PMDB, PP, PSD, PR, PSB, PCdoB, PDT, PRB, PTB, SD, PROS, DEM, PSC, PV, PTN, entre outros. A cor dos partidos não importava, só a do dinheiro.

Em regra, o tamanho do investimento seguiu as regras de qualquer negócio: foi proporcional à chance de retorno. O valor recebido pelas legendas em 2014 acompanhou o favoritismo de seus candidatos nas eleições majoritárias. PT e PSDB ganharam mais que o resto porque foram ao segundo turno na corrida presidencial. A mesma lógica foi aplicada às proporcionais. Eduardo Cunha foi o candidato a deputado federal do PMDB que mais arrecadou porque era barbada para presidir a Câmara.

Como mestres no retorno do capital investido, esses grandes financiadores espetados pela PF tiveram muito sucesso nas eleições. Juntos, ajudaram a eleger pelo menos metade da Câmara dos Deputados. Graças ao investimento bem-sucedido de R$ 55 milhões em 2014, não há partido com bancada maior que a da JBS, por exemplo. Não discrimina ninguém: tem quem virou ministro do governo Temer, como os da Justiça e da Saúde, tem líderes da oposição petista e tem até "outsiders" tipo Jair Bolsonaro.


Embora o Supremo Tribunal Federal tenha aberto a porteira para considerar ilegal também as doações recebidas pelo caixa 1 oficial, o fato de um parlamentar ou governante ter recebido dinheiro de doadora que esteja metida na Lava Jato ou em outra operação policial não o torna automaticamente suspeito de nada. Nem mesmo quem recebeu de quatro ou cinco empresas investigadas, como é o caso de alguns deputados. Pode ser coincidência.

Também vale ressalvar que frigoríficos estão em grau de cozimento diferente dos empreiteiros. Uns são condenados confessos, outros estão sob investigação. Podem ser inocentados.

Feitas as ressalvas, o fato é que quem bancou a maior parte das campanhas eleitorais de praticamente todos os partidos em 2014 está encrencado com a polícia, com a Justiça ou com ambas. E essa encrenca está diretamente ligada às relações dessas empresas financiadoras da política com o poder público: seja para ganhar concorrências, seja para evitar fiscalização.

O dinheiro dos espetados foi tão determinante no resultado de 2014 que as doações empresariais acabaram proibidas em 2016. Com o argumento de que a proibição estimulou o caixa 2 e favoreceu os ricos, "master chefs" de todos os Poderes articulavam o retorno do financiamento empresarial em 2018. Mas isso foi antes de sentirem o cheiro de churrasco da Carne Fraca. Agora, o menu de mudanças da legislação eleitoral e partidária deve mudar.

Multiplicação bilionária dos pães no mal fiscalizado Fundo Partidário e o voto em lista para o Legislativo entraram no cardápio. Juntas, essas medidas dão poder inédito aos donos dos partidos. Eles poderão ditar quem se elege e com quanto.

É a receita para afastar de vez a clientela das urnas, piorar ainda mais a reputação da política e estimular curandeiros e suas poções milagrosas. Os ingredientes desse cozidão eleitoral já estão na panela. Só falta acender o fogo.

Gente fora do mapa

Melvyn Goldstein (National Geographic Creative)

Churrasco oferecido por Temer só com cortes estrangeiros

Rodrigo Carvalho, um dos gerentes da churrascaria Steak Bull, afirmou que o restaurante não serve carne bovina brasileira, “só trabalha com corte europeu, australiano e uruguaio”. Disse ele: “A gente trabalha com transparência, quando a senhora vir aqui, pode me procurar que eu mostro a nossa câmara fria, mostro nosso açougue”.

temer churrascaria
A gente não trabalha com marcas nacionais, mesmo porque a qualidade delas caiu há três anos, é só marketing mesmo.
O presidente Michel Temer levou neste domingo uma comitiva de embaixadores para a Steak Bull com o objetivo de referendar a qualidade da carne nacional, após a Operação Carne Fraca, da Polícia Federal, revelar irregularidades envolvendo frigoríficos.
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Depende de nós

Goste-se de Lula ou não, há que se reconhecer sua capacidade de enxergar adiante e de usar a seu favor tudo que possa desfavorecê-lo. Foi assim quando acusou o Congresso de abrigar 300 picaretas.

De novo quando chamou o pagamento de propina a deputados de simples caixa dois. E mais uma vez ao propor uma reforma política que introduziria o voto fechado em listas apresentadas pelos partidos.

Está sendo assim outra vez quando Lula se exibe como vítima de perseguição movida por Sérgio Moro.

Se no passado se oferecia como um político diferente dos demais para melhor, agora torce para que o eleitor pelo menos admita que ele é igual e não lhe negue o voto.

Seria uma versão atualizada do “rouba, mas faz” do ex-governador paulista Adhemar de Barros. “Rouba, mas faz pelos pobres”.

Essa é conversa para outro dia. De volta ao início.

Em 1993, candidato a presidente no ano seguinte, Lula cometeu a frase que lhe reforçou a fama de bom moço: “Há uma maioria de 300 picaretas no Congresso que defendem apenas seus próprios interesses”. Foi também bom observador.

Àquela altura, concluíra que sem os picaretas jamais chegaria lá. Por paradoxal, espancá-los seria uma forma de atrai-los mais tarde. Como ficou demonstrado.

"O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente", disse Lula em julho de 1995. O escândalo do mensalão ameaçava tirá-lo da presidência. A renúncia ao cargo estava no seu radar.

Esperto, quis transformar o caso de desvio de dinheiro público para a compra de apoio no Congresso na infração eleitoral batizada de caixa dois. É ou não é o que fazem, hoje, os enrascados na Lava Jato?

O mensalão levou Lula a propor uma reforma política que substituísse o voto no candidato de livre escolha do eleitor pelo voto na lista fechada de candidatos dos partidos.

Com isso, o PT tentaria salvar suas estrelas atingidas pelo escândalo. Elas se elegeriam sem que você votasse diretamente nelas. Não deu certo. A ideia foi resgatada para salvar os citados na Lista de Janot.

Se vivo fosse, PC Farias, ex-tesoureiro da campanha presidencial de Fernando Collor em 1989, os chamaria de “hipócritas”.

PC calou seus inquisidores na CPI da corrupção em 1992 ao levantar a voz e proclamar sem meias palavras: “Nós estamos todos sendo hipócritas aqui”. Para defender-se da acusação de roubar, garantia que tudo não passara de caixa dois.

Não ponha fé na punição rigorosa dos sem escrúpulos. Ao estrago das delações em sua imagem capaz de varrê-los da vida pública, tentarão opor a anistia ao caixa dois, o voto em lista fechada e o aumento milionário da verba para o fundo partidário.

Em ilegítima defesa, até chantagearão a Justiça com a ameaça de desvendar quantos togados ganham mais do que a lei autoriza.

Sem chance de a Justiça condenar em definitivo antes das próximas eleições um único suspeito de prevaricar.

Os juízes não limitam suas decisões ao estrito cumprimento da lei. Detêm-se sobre a conjuntura política do país. Não foi assim quando escolheram engolir a afronta de Renan Calheiros que ignorou ordem de se afastar da presidência do Senado?

Que o que se passa no Brasil sirva para orientar o eleitor na hora de votar. Em 1996, uma CPI recomendou a cassação dos mandatos de 69 deputados e de três senadores suspeitos de superfaturar o preço de ambulâncias.

Nenhum foi cassado. Mas dois deputados renunciaram. E dos 67 restantes, só cinco se reelegeram. Dos três senadores, só um.

Quem pagou comício de Lula no São Francisco?

Alguém já disse que a verdade é algo tão precioso que às vezes precisa ser protegida por uma escolta de mentiras. Ao discursar no megacomício que Lula realizou na cidade de Monteiro, no Cariri da Paraíba, o anfitrião Ricardo Coutinho (PSB), governador paraibano, disse o seguinte:

“Aqui, no território livre da Paraíba, o povo sabe o que é verdade, o povo tem a coragem de ir às ruas. […] Eu agradeço aos meus companheiros, prefeitos aqui da região. Botaram a mão na massa. Fizeram, efetivamente, de burro, de carroça, de carro, de ônibus, de qualquer jeito criaram as condições para que muita gente estivesse aqui. Não foi gasto um centavo de dinheiro público, não foi gasto nada, a não ser o sentimento de gratidão que o nosso povo tem.”

Imagem relacionada

Coutinho revelou-se um grato cego. Não viu a superestrutura ao redor. Entre outros itens, o aparato montado para Lula reinaugurar o pedaço da obra da transposição do Rio São Francisco que Michel Temer já havia inaugurado há nove dias incluiu: o palanque, as tendas, o equipamento de som, as grades de proteção, o jatinho para o candidato e uma frota de ônibus para levar aclamação até os ouvidos de Lula. Essas coisas não costumam ser custeadas pelo “sentimento de gratidão”. Mesmo no “território livre da Paraíba”, os fornecedores só quitam as faturas mediante pagamento em dinheiro.

As imagens veiculadas abaixo indicam que o evento custou caro. Como Coutinho assegurou que não há verba pública no lance, ficou boiando sobre as águas transpostas do São Francisco uma interrogação: quem pagou as despesas relacionadas ao megacomício de Lula?

De duas, uma: Ou o morubixaba do PT dispõe de meia dúzia de mecenas dispostos a financiar no caixa dois sua campanha fora de época ou o governador da Paraíba cometeu algum engano. Esse é o tipo de engano que costuma virar matéria-prima para ações judiciais. Em tempos de Lava Jato, o brasileiro já não se importa com enganos. Ele apenas não suporta ser enganado.

Como se tornar um grande exportador mundial

A face oculta

A Lava Jato desvendou a face oculta da democracia brasileira, tal como foi implementada na última década. Uma organização criminosa, disfarçada de ideias esquerdistas, tomou de assalto o Estado, trabalhando em benefício próprio e no de seus comparsas, que enriqueceram nessa apropriação partidária do público.

Seria simplesmente hilário o fato de os responsáveis de tal apropriação dizerem que o atual governo subtrai “direitos”, não fosse o caso de alguns ainda lhes darem ouvidos. Contentam-se estes com o velho chavão de não haver problemas com a Previdência, bastando repetir-lhes as velhas fórmulas carcomidas que levaram o País a este buraco.


Foram precisamente os erros passados que conduziram o País a este descalabro de depressão econômica e social, para não dizer psicológica dos que perderam o emprego e nada têm a oferecer em casa a seus filhos. Os autores desse desastre já deviam ter sido responsabilizados, condenados e presos. Posam, entretanto, de “oposição”, num claro sintoma de podridão do sistema político.

Um fato merece ser ressaltado, por ser revelador de certa concepção de democracia. Quando do enterro da ex-primeira-dama, Lula recebeu pêsames de vários adversários, por ele até considerados inimigos, entre eles Fernando Henrique. Tal ato de solidariedade veio acompanhado de “propostas” de diálogo em nome do Brasil e da democracia, como se o líder de uma organização criminosa fosse um interlocutor privilegiado. No caso, parece até que as ideias esquerdistas comuns de antanho orientariam esse tipo de diálogo, como se elas pudessem encobrir os crimes perpetrados contra o Estado.

Trata-se de uma nuvem de fumaça que deixa transparecer um diagnóstico completamente equivocado do que aconteceu com o Brasil nos 13 anos de governo lulopetista. Não houve “erro político”, mas sequestro da representatividade política e dos bens dos contribuintes. É uma tentativa de reatar com um passado que simplesmente não existe mais.

Mas eles não estavam sozinhos nesse empreendimento, contaram com o apoio da maioria dos partidos políticos, destacando-se o PMDB, o PP e o PDT, numa salada partidária de causar inveja aos maiores chefs pela diversidade ideológica e pelo fisiologismo.

A nova lista de Janot é de estarrecer até os mais incautos, por envolver seis ministros atuais mais quatro anteriores do atual governo, os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff, quatro de seus ministros, incluindo dois da Fazenda. A lista estende-se, agora, também a dirigentes do PSDB, incluindo potenciais candidatos à Presidência da República. Isso sem contar os presidentes da Câmara e do Senado e um número expressivo de senadores e deputados.

A classe política foi literalmente dizimada, deixando de exercer a sua função de representatividade. Como pode uma democracia sustentar-se sem uma adequada representação política, respaldada por partidos idôneos e com ideias de nação?

A situação é bem mais problemática do ponto de vista institucional porque a linha sucessória presidencial será atingida se os presidentes da Câmara e do Senado forem condenados.

Não se trata de fazer um juízo de valor sobre essas pessoas, que têm seu direito legítimo de defesa, mas de apontar uma questão da maior gravidade, qual seja, a de uma democracia que pode tornar-se acéfala. Uma sociedade sem alternativas pode rumar para aventuras, agarrando-se a qualquer pessoa que lhe apareça como uma âncora, por mais falsa que seja.

A sociedade hoje percebe a classe política como um bando de corruptos, não faz mais a necessária distinção entre bons e maus. Coloca-os todos no mesmo saco, como se não houvesse diferença a ser feita.

Por seu lado, parlamentares e ministros em nada ajudam, pois pensam apenas em sua própria salvação. Algo chamado Brasil ou bem público simplesmente desaparece do horizonte. O sucesso do governo Temer torna-se tributário da aleatoriedade de tais movimentos, pois estratégia vem a significar sobrevivência.

Exemplo particularmente gritante se encontra nas mais diferentes tentativas de anistia (ou melhor, autoanistia, o que seria logicamente contraditório) do caixa 2, ampliando-a para as doações eleitorais legais, independentemente de sua origem. Os envolvidos na Lava Jato procuram tão somente safar-se de condenações e da cadeia.

Evidentemente, cada caso é um caso, cuja decisão cabe aos juízes e ministros, que discriminam as responsabilidades individuais, assegurando a todos o direito à legítima defesa.

Contudo não estão clamando pelo Estado Democrático de Direito, mas pelo “estado de salvação individual”. Pretendem ocultar todo o sistema de corrupção que os levou ao poder. É como se os crimes da Odebrecht e de outras empreiteiras e dos frigoríficos fossem corriqueiros na vida brasileira. O anormal mudou de nome.

Façamos a seguinte analogia. Se o narcotráfico tivesse irrigado as campanhas eleitorais, os partidos e os bolsos dos políticos, não se deveria investigar a origem dos recursos? Seria tudo considerado legal, porque devidamente declarado aos tribunais eleitorais? Os Odebrechts seriam simplesmente substituídos pelos Fernandinhos Beira-Mar e tudo estaria “normal”?

A situação da democracia brasileira é deveras preocupante. O que a Lava Jato está mostrando é a existência de um propino-Estado, equivalente a um narco-Estado, numa versão mais branda e, aparentemente, politicamente aceitável. Não convém, porém, desconhecer a gravidade da situação, edulcorada pela cordialidade da classe política entre si, que dá as costas para o País.

Há um divórcio crescente dessa classe política em relação à sociedade, cuja opinião é de condenação moral generalizada. Ninguém é poupado. E a democracia encontra-se ameaçada se passos importantes não forem dados no sentido da moralidade pública pelo governo, pelo Senado e pela Câmara dos Deputados.

O joio e o trigo

Assim que foram homologadas as delações de Odebrecht, começou um movimento para anistiar o caixa dois e separar o joio do trigo. Se me lembro bem da parábola em Mateus, todos, mesmo os mais simples de espírito, queriam separar o joio do trigo. A sabedoria de Cristo foi indicar quando isso era possível, o momento em que, realmente, se separa o joio do trigo. Na crise do sistema político brasileiro também existe um momento adequado para separar o joio do trigo: o fim das investigações.

De nada adianta construir um arsenal de leis protetoras antes que as investigações precisem o que representa cada caso. Muitos acham que essa teia de proteção é necessária para preservar o sistema político. Mas qualquer tentativa nesse sentido vai arrasar ainda mais sua credibilidade. Disseram, por exemplo, que a Lava-Jato estava criminalizando as doações oficiais e que esse erro foi seguido pelo Supremo, que tornou réu o senador Valdir Raupp. Todos sabem que não é bem assim. Não se criminalizou doação oficial. O que estava em debate era o uso da doação oficial para mascarar propina.


Se aceitamos essa tese, o comércio de joias também foi criminalizado no Rio. No entanto, as joias continuam sendo vendidas com liberdade. O que foi denunciado em alguns joalheiros foi o uso de sua estrutura legal para esconder a fortuna de Sérgio Cabral. Além disso, toda essa história em torno do caixa dois não cola. Aliás, não cola desde o mensalão, quando as doações eram chamadas de “recursos não contabilizados”.

É difícil convencer de que algo enraizado na cultura política brasileira não seja crime. Se acreditassem nessa complacência cultural não usariam mensageiros e senhas para camuflar a operação. Talvez o jogo de bicho, com as banquinhas na rua, possa reclamar essa tolerância social. Caixa dois, não. Se examinarmos, friamente, a perspectiva dos políticos, eles estão invertendo as prioridades. Em primeiro lugar, possivelmente, serão julgados pelos eleitores. Só depois é que serão julgados pelo Supremo. Ao se lançarem numa prematura batalha jurídica, inclusive com aquelas leis da madrugada, vão ser julgados com muito mais severidade no universo da política.

O único fator que poderia dar mais celeridade ao processo jurídico seria o fim do foro especial. Nesse caso, seria possível contar com julgamentos políticos e jurídicos mais próximos um do outro, antes das eleições de 2018. Esta semana, revelou-se mais um vez como os políticos jogam com o foro privilegiado como um escudo. O governador Pezão nomeou secretária uma ex-deputada, Solange de Almeida, acusada de ser cúmplice de Eduardo Cunha. Ela assinava os requerimentos com os quais Cunha pressionava empresas em busca de propina. Pezão tem foro especial. Trouxe Solange para seu círculo de detentores de foro especial e, com ela, procurava livrar Cunha de, pelo menos, um processo nas mãos de Sérgio Moro.

Pezão voltou atrás. Mas as pegadas são de um gigante. Inicialmente disse que não se importava com Solange ser ré porque também ele, Pezão, era investigado. Em seguida, afirmou que cancelou a nomeação porque soube que Solange já estava condenada em segunda instância, por improbidade administrativa. Se fosse condenada apenas em primeira instância, talvez ele aceitasse. Na verdade, não está se importando mais com o que pensam os eleitores. Assim, como, aliás, não estão mais se importando alguns senadores que decidiram ocupar todos os espaços para se defender da Lava Jato, inclusive escolhendo Lobão como presidente da CCJ.

A manobra fracassada de Pezão apenas serviu para mostrar que o foro privilegiado é o instrumento preferido para proteger alguém da Justiça comum. É um método que ficou célebre com o Bessias levando o documento de posse para Lula e, de uma certa forma, se repetiu na nomeação de Moreira Franco por Temer. As coisas estão ficando muito nítidas. E eles já não estão se importando com isso. A tentativa de novas leis de proteção revela o desespero de quem não já não se contenta apenas com o foro privilegiado. Um líder do PT chegou a dizer que a Justiça não sabe o que é ou não é crime, logo era preciso fazer leis específicas para orientá-la nesse universo da corrupção política. E esta é a grande tentação pelas quais passam nesse momento. Criar as leis que possam salvá-los da Justiça, pois têm como certa a hipótese de que se salvam nas eleições.

Provavelmente vão se ferrar, tanto numa como na outra. Mas se julgam os caras mais espertos do Brasil. Curitiba e Bangu estão cheios de gente esperta, mas, ainda assim, estão de braços abertos para novos candidatos.

Bolsa ditadura


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Outro dia Lula revelou que desde 1996 recebe uma Bolsa Ditadura que hoje vale R$ 6 mil mensais. É a indenização devida por 31 dias que passou na cadeia.

Feita a conta, Nosso Guia embolsou algo como R$ 1,5 milhão.

Não se pode comparar o tamanho da bolsa da Viúva brasileira com a da alemã. Também não se pode comparar os 21 anos da ditadura brasileira com os 44 da ditadura comunista da Alemanha Oriental, durante a qual foram presas 250 mil pessoas.

Na Alemanha as vítimas da repressão receberam uma indenização equivalente a R$ 1 mil para cada mês de prisão. Se o cidadão passou mais de 180 dias na cadeia e depois da unificação vivia com necessidades financeiras, habilitava-se para uma pensão mensal de uns R$ 900.

A Bolsa Ditadura de Lula rendeu-lhe R$ 41 mil para cada dia que passou na cadeia.

Elio Gaspari

Paisagem brasileira

Cambará do Sul (RS)

O poder no banco dos réus

A longevidade de um delito, como é óbvio, não o legitima. No entanto, esse é o argumento central com que políticos e financiadores de campanhas reclamam inocência – e exigem absolvição -, diante dos crimes de caixa dois e derivados.

“Sempre se praticou”, dizem uns; “desse jeito, ninguém escapará”, dizem outros. As variantes são nesse rumo.


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O próprio Emílio Odebrecht, pai de Marcelo, em depoimento ao juiz Sérgio Moro, espantou-se com o fato de tal prática estar sub judice. E não escondeu que sua empresa a endossa desde sempre e que ele próprio - assim como seu falecido pai e fundador do grupo, Norberto Odebrecht - não via nenhum problema nisso.

A Lava Jato não desconhece a tradição da prática, mas, digamos assim, diverge conceitualmente dos Odebrecht. Está convencida de que não apenas é preciso erradicá-la, como o único meio de fazê-lo é punindo os que a praticaram. O país concorda.

Se, na área penal, antiguidade fosse posto, ou mesmo servisse de atenuante, homicídio não seria crime, ou pelo menos não tão grave, já que inaugurado com Caim, na origem da humanidade.

As delações dos 77 executivos da Odebrecht, cuja divulgação é aguardada, não encerram – antes inauguram – a principal fase da Lava Jato, a que vai ao coração do Congresso e do governo, este e o que o precedeu. Não se trata nem sequer de saber quem vai preso. Trata-se de expor as entranhas de um sistema que liquidou o país.

Os delitos, de fato, não são iguais, nem da mesma gravidade; uns devem ser presos, outros não; uns misturaram caixa dois com propina; outros só o caixa dois; outros lavaram a propina no caixa um. Etc. O dano político, porém, é geral. Não absolve ninguém.

De cara, os presidenciáveis de sempre – uma geração em fim de carreira, distribuída nos principais partidos – já foram citados e estão na condição que o falecido Antonio Carlos Magalhães considerava a mais letal a um político: ter de se explicar. Têm tentado, mas encontram compreensão apenas entre colegas.

Isso explica o ressurgimento do voto em lista fechada exatamente neste momento em que os políticos temem o contato com as ruas. Trata-se de poupá-los do cara a cara com o eleitor. Este votaria apenas na legenda, ficando o encargo de preencher a lista por conta do próprio partido – ou por outra, dos caciques do partido.

É piorar o que já não é bom. O argumento dos que querem as listas fechadas é de que criam um elo mais forte entre eleitores e partidos. Vota-se no partido, não em candidatos. Em tese, sim, mas com esses partidos? De quebra, a novidade os reduziria – há hoje 35 legendas, 28 com assento no Congresso, o que faz com que cada votação seja precedida de um imenso toma lá dá cá.

Mas, se houvesse mesmo interesse em reduzir o número de partidos, bastaria extinguir as coligações nas eleições para deputado.

O que se contempla, neste momento, é uma desesperada tentativa de sobrevivência da velha política, diante da renovação compulsória que o fenômeno da Lava Jato vem impondo.

O strip-tease moral é avassalador e, quando se pensa que já se viu tudo, surge outro escândalo com conexões políticas: a carne envenenada. Atinge em cheio o setor mais produtivo do país, o agronegócio, responsável, de algumas décadas para cá, pelo superávit da balança comercial.

O escândalo é localizado, no segmento carne, mas suas consequências, não: desmoralizam as certificações oficiais do Brasil indistintamente, com reflexos profundos nas exportações.

De quebra, outro problemão para o presidente Temer: seu recém-empossado ministro da Justiça, Osmar Serraglio, estaria envolvido na história, acusado de apadrinhar um dos mafiosos. Mesmo inocente, terá dificuldades de ordem moral e política para prosseguir no cargo. E assim caminha o governo, num entre e sai de ministros, respingados pela lama da corrupção. Antes assim.

A Lava Jato chega ao terceiro ano e não tem data para terminar. O país oficial continua no banco dos réus.

Realidade da mentira

Pinocchio illustration by Sara Fanelli
A realidade atual iguala-se à mentira elaborada pela arte de todos os tempos
Nélida Piñon

Se a carne é fraca, isto só acontece porque a Justiça brasileira também é fraca

Mais esse triste fato do escândalo do grupo Friboi nos faz lembrar aquela conhecida tese de que “é preciso privatizar todo o país para que os brasileiros deixem de ser roubados”, tantas vezes levantada aqui neste espaço da Tribuna da Internet. Acredito que este novo caso seja mais uma prova de que não é o fato de uma empresa ser estatal ou ser privada que deixará de roubar a população. O que faz os dirigentes de uma empresa, seja pública ou privada, deixar de roubar a população é a existência de um Poder Judiciário ágil e de tribunais não cúmplices de bandidos.

Se os antigos fraudadores do leite tivessem ido para a cadeia, dificilmente essas atuais quadrilhas se atreveriam a cometer o mesmo crime contra a população. Mas aqui no Brasil se insiste na prática de com facilidade colocar criminosos em liberdade, impunes, a pretexto de serem “reinseridos na sociedade” que ajudaram a envenenar ou de roubar, tal qual está acontecendo com a Adriana Ancelmo, mulher e principal cúmplice de Sérgio Cabral.


Afinal, a Justiça do Brasil só faz medo na primeira instância. Até mesmo o goleiro Bruno e o Gegê, o número 2 da facção o PCC, foram recentemente beneficiados pelo Supremo Tribunal Federal, em flagrante desrespeito à legislação do país, conforme ficou claro nos artigos do jurista Jorge Béja, publicados aqui na TI.

As autoridades e as pessoas que ainda têm alguma voz neste país precisam perceber que manter bandido na cadeia não é “assunto de pobre” ou do programa do Datena, nem coisa de país atrasado. A criminalidade, mais cedo ou mais tarde, acabará atingindo a todos que morem por aqui.

Manter bandido na cadeia, seja pobre ou seja rico, é coisa de país civilizado. Manter bandido na cadeia é coisa daqueles países que as autoridades e as pessoas que têm condições financeiras costumam visitar durante as férias, admirar, andar de mãos dadas pelas ruas e comprar produtos com qualidade. É a impunidade que está transformando o Brasil num inferno tropical.

Se eu fosse um líder do crime organizado, minha primeira providência seria infiltrar algum comparsa (ou melhor, vários) no Poder Judiciário (principalmente no Supremo Tribunal Federal), para dar cobertura às minhas ações e dos meus camaradas em nível local e nacional.

Só depois de tal providência é que o crime poderá ser chamado de “organizado”.

Na Suécia, escândalo nas mancheses é 'desvio' de R$3,8 mil

Enquanto no Brasil o esquema de corrupção descoberto na Operação Lava Jato pode ter gerado mais de R$ 40 bilhões de prejuízo aos cofres públicos, na Suécia o escândalo que domina as manchetes dos jornais é bem mais modesto.

O deputado Tomas Tobé usou, em benefício próprio, as milhas acumuladas no cartão que o Estado fornece a parlamentares para uso gratuito de trens e transportes públicos no país.

Tomas Tobé
Secretário-executivo do Partido Moderado (conservador), Tobé usou os pontos de seu cartão para pagar um pacote de amendoins, uma refeição, vinho e água, além de oito bilhetes de trem para viagens de caráter pessoal. O valor total da imprudência: 10.865 coroas suecas (cerca de R$ 3,8 mil).

No entanto, ele violou um princípio do Manual de Viagens dos Parlamentares suecos, que dita as regras a serem cumpridas pelos deputados. Diz o parágrafo 44: "Um parlamentar não pode usar em benefício próprio os pontos de milhagem acumulados em viagens feitas a serviço, em avião ou trem".

Os pontos devem ser utilizados para baratear os custos com viagens a serviço do próprio parlamentar ou de algum outro deputado do Parlamento.

A insensatez de Tobé pode parecer, comparativamente, uma infração menor. Mas na visão da Agência Nacional Anticorrupção da Suécia, não deve haver distinção entre pequena e grande corrupção.

"Especialmente quando se trata de políticos e autoridades públicas, não importa se o crime é grande ou pequeno. Iremos sempre investigar e, desde que tenhamos as evidências necessárias, processar o responsável em nome do interesse público", disse Kim Andrews, promotor-chefe da agência sueca, em entrevista à BBC Brasil.

"Porque é essencial, em uma sociedade, manter a confiança da população nos representantes que tomam decisões em nome dos interesses dos contribuintes. Trata-se, em última análise, de proteger o interesse público e a democracia."

O caso de Tobé já está sob investigação dos promotores da agência - apesar de o deputado ter se apressado em corrigir o deslize e devolver o dinheiro. "É crime usar dinheiro que nao é seu. Portanto, em princípio o deputado cometeu um crime", afirmou o promotor-chefe.

Mais importante do que a dimensão dos escândalos políticos, é preciso atentar para a questão moral de qualquer ato impróprio, de acordo com Andrés Puntigliano, diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade de Estocolmo.

"É claro que existe uma grande diferença, por exemplo, entre o caso do deputado Tobé e o escândalo de corrupção da construtora Odebrecht e suas ligações com políticos do Brasil, em que milhões teriam sido desviados", ele observa.

"Mas é preciso destacar a gravidade do problema moral representado por casos como o de Tobé, em que o dinheiro público, ainda que em menor escala, é usado em benefício próprio pelos políticos."

Um arrependido Tomas Tobé pediu desculpas públicas por seu ato, ao enfrentar a fúria da mídia em uma entrevista no Parlamento sueco. O "pinga-fogo" foi reproduzido pelo jornal Dagens Nyheter:
Repórter - "Você não tinha conhecimento das regras?" (na Suécia, políticos são tratados como "você")
Tomas Tobé - "Eu deveria ter tido um controle melhor sobre o uso dos pontos de milhagem, uma vez que eu os acumulei através de viagens de trem a serviço. É totalmente errado usar esses pontos em benefício próprio, da forma como usei."
Repórter - "Mas você não sabia das regras?"
Tobé - "Claramente, eu não sabia bem o suficiente. Por isto, estou corrigindo meu erro."
Repórter - "Você chegou a comprar produtos com os pontos de milhagem?"
Tobé - "Durante uma viagem de trem, usei os pontos para pagar uma refeição, vinho e água. Acabo de informar a administração do Parlamento sobre isso, e eles vão descontar do meu próximo salário o valor dos gastos."
Repórter - "Você acha que tem condições de permanecer no cargo de secretário-executivo do partido?"
Tobé - "Sim."
Repórter - "E por quê você tem tanta certeza de que sim?"
Tobé - "Esta é a minha proposta. Estou corrigindo meu erro. Garanto que isso nunca mais vai acontecer. Peço desculpas por ter feito o que fiz."

A líder do Partido Moderado, Anna Kinberg Batra, deu um puxão de orelhas público no deputado: "Foi um ato impróprio, pois regras existem para serem cumpridas. Thomas Tobé deve, portanto, corrigir este erro. E assumir sua responsabilidade para que isto não se repita."

A revelação sobre o deslize de Tobé foi feita pelo jornal Expressen, que no início do mês procurou o deputado a fim de colher informações sobre o uso da milhagem feito em 2016.

Ato contínuo, o parlamentar começou a enviar informações sobre o uso dos pontos do cartão para o setor de administração do Parlamento, a fim de retificar o erro e devolver o valor correspondente aos gastos.

"A Suécia tem políticas extremamente rígidas de controle da corrupção, e o caso do deputado Tobé é um bom exemplo disso", diz Andrés Puntigliano, que destaca também a ocorrência ocasional de casos mais robustos de corrupção no país.

Na sua interpretação, são relativamente falhas as correlações que em geral associam baixos índices de corrupção ao alto grau de desenvolvimento de uma democracia.

"Também existem democracias desenvolvidas com graves problemas de corrupção. Exemplos disso são a Itália e a França, onde foi revelado recentemente que (o candidato presidencial e ex-premiê francês) François Fillon empregou a própria mulher como assessora-fantasma", relata.

Nomeada para o gabinete do marido na época em que ele era deputado, Penelope Fillon teria acumulado rendimentos de aproximadamente 500 mil euros (cerca de R$ 1,6 milhão) entre 1998 e 2012.

Por outro lado, observa o professor, também é uma generalização errônea caracterizar a corrupção como um problema típico de países latinos.

"Na própria América Latina, as experiências são bastante distintas. De um lado há o Brasil, com seus grandes escândalos, mas podemos citar o Uruguai como exemplo de democracia com baixos índices de corrupção em comparação com outros países, assim como o Chile", destaca ele.

E qual é o caminho para a construção de democracias menos corruptas, em que o fato de um deputado se aproveitar da milhagem do trem seja considerado um grande escândalo?

Para Puntigliano, a transparência dos atos oficiais é uma ferramenta-chave para controlar os excessos do poder. Mas ela deve estar associada a um elemento essencial: a educação da população.

"Não é possível atingir um nível de baixa corrupção em um país, como a Suécia, apenas pla implementação de leis e regras. É necessário, acima de tudo, um longo processo de educação de uma sociedade e de seus políticos, em termos do respeito que se deve ter ao uso do dinheiro público."

"Em outras palavras, a integridade de uma sociedade começa a ser construída nas escolas", afirma.