quarta-feira, 15 de março de 2017

Um drama etnológico

“Quando eu era professor do Museu Geral - contou-me, fumando seu inseparável charuto, o velho e sábio antropologista Felisberto Pimenta -, participei do exame de promoção a professor titular de Tribuno Lins. Naquela época, ele tinha uns 50 anos, era tímido, mas decidido, competente e, como você verá, muito sagaz. Bem acima da banalidade nacional. Era tido como velho, mas hoje seria uma criança, porque a velhice não está no tempo, mas na cabeça, como diz a nossa imbecilidade digital.” E o professor soltou um vulcão de fumaça na minha cara.

“Dos cinco professores examinadores - continuou -, o dr. Sinfrônio Frazão era durão. Criticava todo mundo, mas não conseguia escrever uma linha. Seu sadismo não permitia que ele distinguisse examinar de humilhar. Era um materialista radical capaz de reprovar o que achava, mesmo sem saber, ser um trabalho simbolista, culturalista ou idealista. Na banca, estava também a professora doutora Paulina Pavão, uma poliglota que sabia tudo, menos sair de si mesma. Os outros examinadores eram normais. Incapazes de matar uma mosca, como diziam abertamente Sinfrônio e Paulina com abusivo sarcasmo.”

“A banca foi cordialmente instalada pelo elegante dr. Leonardo Junqueira e logo se revelou por inteiro a ojeriza que o trabalho de Lins causara em Sinfrônio e Paulina. ‘Não tem valor, nem originalidade! É muito simbolismo; muita fumaça e pouco fogo, dizia o primeiro; enquanto a segunda o chamava de lixo! Era lamentável...” -, rememorava o velho Felisberto, tragando o seu interminável charuto.

“Fizemos as avaliações! A excelência de Tribuno não impediu a má-fé dos colegas. ‘Vamos ver a conferência final. Nela, ele se estrepa!’ - disseram os dois do contra. Diante disso, eu rompi com o regimento e decidi falar com Tribuno. Num intervalo de um dos 30 ou 50 cafezinhos, disse francamente ao rapaz que sua sorte estava selada. Sinfrônio o reprovaria por antipatia teórica, Paulina por inveja. O plano, entreguei sem papas na língua, é reprovar a conferência e com isso anular o exame usando a letra H, da alínea J, do parágrafo 12 dos Estatutos Acadêmicos Gerais. Tribuno ouviu e respondeu-me sem piscar: ‘Pode ser. Eu vou mudar tudo’.”

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“Na sala repleta de mestres e alunos entendidos de sociologia comparativa - prosseguiu Felisberto - foi dada a palavra ao candidato que calmamente iniciou sua conferência: ‘Como sabemos, no coletivo Brasa-Bela, os rituais de iniciação masculinos são extremamente cruéis. Implicam a ablação do prepúcio, lutas corporais e corridas, além de jejum e dolorosas escarificações no tronco e nas pernas. Mas - continuava Tribuno - um noviço convertido ao cristianismo entrou em desespero e fugiu no exato momento em que deveria realizar o teste mais importante: a prova do formigueiro’. O candidato proferiu a frase e eu percebi que no rosto de Sinfrônio e Paulina, seus inimigos intelectuais, fulgurava surpresa’.”

“O jovem - diz, dobrando calmo mais uma página o candidato conferencista - foge com a intenção de tomar o santuário na casa do missionário local. Ali, encontraria repúdio a um ritual pagão. A esposa do missionário, porém, desencantada de tanta cegueira diante do pavor causado pela força do simbolismo humano, admite-o contra a vontade do marido. Isso feito, marido e mulher têm uma violenta discussão na frente do fugitivo que, apavorado, assiste ao inesperado: o missionário que pregava amor e perdão, aparece-lhe possuído pelo ódio. Um sentimento humano abominável que os ritos de passagem objetivavam precisamente inibir e controlar. Passada a discussão, entretanto, em plena madrugada, a mulher do missionário tem um acesso de melancolia e tenta matar-se. Outra surpresa para o nativo noviço, que esperava serem os cristãos mais coerentes com suas crenças. Finalmente, quando raia o sol, o noviço retorna para seu povo, pedindo para ser reiniciado, convicto de que sua sociedade era mais humana no tratamento dos desencontros.”

“Ele havia percebido - refletiu, olhando suas notas - que se tudo é arbitrário, então era melhor ficar com a sabedoria dos seus ancestrais. Mas seu gesto é rechaçado pelos anciãos, que o expulsam da tribo. Agora, sem ser adulto ou criança, sem poder assumir um papel nem dentro ou fora da tribo, o rapaz - arremata o candidato olhando para um silente público - anda bêbado pelas ruas de Amazonópolis. De quando em vez, pronuncia algo como rituais, coragem, covardia e dever...”

“Terminada a conferência, o prof. Sinfrônio e a dra. Paulina tinham os olhos cheios de lágrimas. O rito de passagem havia removido o orgulho e o ódio dos seus corações. Mas mesmo assim - concluiu o velho Felisberto - e, quem sabe, precisamente por tudo isso, o candidato foi reprovado!”

Roberto DaMatta

Futebol de torcida única

Fica assim combinado: alguém que eu admiro não pode jamais, a qualquer pretexto, frequentar festa, dividir mesa ou assemelhado com alguém que não está no meu campo de admiração.

Nessas circunstâncias não pode, principalmente, cair na armadilha de registrar em selfies o deslize praticado. Se o fizer, perde minha admiração, leva muito pau, será meme e renderá gifs e mais gifs da torcida onde sou filiado e ele até parecia simpatizante.

Mais grave, perderá quilos de seguidores nas redes sociais. Seguidores e likes, claro, resultam em fama e renda. Dindim.

Perder admiração é ruim, mas é também da vida. Adultos são – ou deveriam ser - responsáveis por suas atitudes. Inclusive pelas inocentes. Ou as que envolvem o direito de ir e vir. Ou de, sendo do lado A, frequentar socialmente o lado B. E ali até se divertir, se o caso for de uma festa, por exemplo, onde convidados não precisam apresentar carteirinha do time, camisa ou bandeira. Todos ali sabem quem é quem. E o que professa.

A proibição desse tipo de convivência social, lá pelos anos 80 do século passado, foi batizada de patrulha ideológica. Na minha lembrança muito praticada e, então, também enfrentada com galhardia. Tipo, eu lá estive e isso não significa que esteja rezando naquela cartilha ou que não continue demarcando meu campo de atuação, minha crença.

Os que não foram indignos, se não eram perdoados, acabaram respeitados no seu sagrado direito de ir, vir, pensar e agir conforme bem entender – sem matar, nem roubar ou falsear. Até contrariando seguidores, fãs.

Indignidades, é bom lembrar, não tem lado, nem ideologia, dispensa carteirinhas. É triste e livremente praticada, sem distinção de campo de atuação, desde o início dos tempos. No recente processo de impeachment assistimos on-line ou ao vivo incontáveis indignidades.

Pois no pacote de indignidades incluo os pedidos de desculpas e as justificativas proferidas nesses dias por quem, sendo do lado B, participou de uma festa do lado A, ou manifestou “admiração” por um desamado do lado contrário dos fãs.

Essas desculpas e justificativas abrigam o ridículo e levam ao obrigatório pensamento/sentimento: cagão! E por cagão, vacilão, conseguiram perder o respeito de todos. Feio, aviltante, indigno. Se foi e fez, sem crime, por que se desculpar ou justificar? Adulto, não sabe agir como tal?

Sobre atitudes e vacilos, alguém escreveu que em momentos graves é preciso escolher o lado certo da História. O lado certo da História é delimitação pessoal e intrasferível.

À parte os indignos, que flutuam ao sabor de poderes e vantagens, o lado certo da História é relativo para quem respeita a democracia e a liberdade de opinião. Pode ser o B pra mim, o A pra você, o C pra ele. Certo pra mim, errado pra eles outros. E vice-versa.

Perdendo ou ganhando, eu sigo, defendo e pratico o caminho das minhas crenças – meu lado certo da História. Posso não admirar os meus opostos, não vou compactuar com eles e seus métodos, mas preciso reconhecer o democrático direito de pensar e agir diferente, segundo o que defende, pensa, acredita. Meu adversário. Não necessariamente meu inimigo.

O contrário disso é a intolerância – essa maldita que, no óbvio, fomenta ódios, violência e guerras. O histórico desse passo a passo abriga a patrulha – a que vivemos em 80, que se repete agora. Sempre e historicamente praticada por movimentos totalitários à direita e à esquerda. E não só a ideológica, mas as de comportamento, que castigam intensamente fumantes, gays, periguetes, santas e putas.

Repetindo o futebol, estamos pretendendo jogo de uma torcida só. O que, além de ser uma ode a chatice, é profissão de fé na intolerância.

A pressão é democraticamente legítima. A intolerância não. Não resistir à patrulha, não tendo cometido crime previsto em códigos de lei ou de ética, é fraqueza principalmente de caráter.

Desculpa aí, mas foi mau - fez mal para o deputado e para o filósofo. Faz mal para a História.

Gente fora do mapa

O Velho e a Flor:

O gene dos políticos

O gene egoísta, de Richard Dawkins, publicado em 1976, é uma síntese dos estudos sobre o surgimento e a diversidade das espécies, cujo ponto alto é análise do comportamento dos indivíduos. A tese central é de que somos uma máquina de sobrevivência de um gene egoísta perpetuador da espécie. Apesar da importância dos grupos e organismos (arranjos biológicos), o gene é que comanda. O altruísmo é apenas uma estratégia de sobrevivência: os organismos interagem entre si e com o mundo inanimado, e assim alteram seu ambiente e promovem a propagação de genes presentes em outros corpos.

As delações premiadas da Odebrecht revelaram no Congresso o gene egoísta de deputados e senadores. O melhor exemplo de gene egoísta é o comportamento do cuco, que não faz ninho nem toma conta das crias. Em vez disso, procura o ninho de outra ave. O cuco espera que esta se afaste do ninho. Quando tal acontece, retira um dos ovos e coloca o seu. O ovo é semelhante aos outros em cor e tamanho, para que o truque não seja percebido. A cria do cuco é a primeira a nascer; a ave enganada não nota a diferença e alimenta-a como se fosse sua. É aí que o filhote de cuco mostra sua genética: lança os ovos da outra espécie para fora do ninho para se livrar da concorrência e ser o único a receber comida.


É mais ou menos essa a operação em curso no Congresso. Parlamentares de todos os partidos discutem uma estratégia comum de salvação dos mandatos. Há um consenso de que as delações premiadas, diante do número de políticos envolvidos com o caixa dois da Odebrecht, ameaçam a sobrevivência da elite política do Congresso e podem implodir o sistema partidário. Não se trata apenas da criminalização do caixa dois. O desgaste político que pode inviabilizar a sobrevivência eleitoral dos citados, ainda que consigam se safar ou empurrar com a barriga os processos da Lava-Jato. Trata-se, isso sim, de garantir a própria sobrevivência eleitoral.

Por uma dessas ironias da política, o relator da comissão especial da reforma política na Câmara é o deputado Vicente Cândido (PT-SP). Sua indicação é resultado de um acordo feito entre a bancada do PT e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), por ocasião de sua primeira eleição. Para os deputados enrolados na Operação Lava-Jato, o petista é o cara certo, no lugar certo e na hora certa. Por uma simples razão, o PT sempre defendeu o financiamento público de campanha e o voto em lista. Ninguém poderá acusá-lo de adotar um expediente para se safar das delações premiadas.

Mas é disso que se trata, quando os demais partidos começam a aceitar a proposta. Diante do tremendo desgaste causado pela Lava-Jato, o voto em lista é como o ninho invadido pelo cuco. Essa pode ser a única possibilidade de os políticos que controlam os grandes partidos assegurarem a sobrevivência eleitoral. O eleitor vota numa lista, na qual são eleitos os primeiros da fila, na proporção da votação de cada partido. Atualmente, são eleitos os mais votados de cada chapa, embora a proporcionalidade também exista. Assim, seria possível o político queimado viabilizar sua eleição com base na votação da sua lista partidária, dependendo da posição que nela ocupe e do número de vagas conquistadas pela legenda. Com certeza, vai tomar o lugar de alguém com a ficha limpa, como aquele filhote de cuco que não admite concorrência no ninho.

Reforma política
O presidente Michel Temer entrou de cabeça na operação para salvar a elite do Congresso. Amanhã, vai discutir a reforma política e o financiamento de campanhas eleitorais com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia; do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE); e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes, de quem partiu a iniciativa. O financiamento público de campanha, testado nas eleições municipais, impediu o financiamento de empresas, mas não a existência de caixa dois; além disso, criou uma situação que favorece candidatos apoiados por organizações religiosas e meios de comunicação. O ministro Gilmar é a favor do financiamento privado, votou contra o financiamento público no Supremo Tribunal Federal (STF).

O fato concreto, porém, é que a discussão não ocorre motivada pela necessidade de renovação política. Pelo contrário, a articulação tem um caráter regressivo. Seu objetivo é exatamente o contrário: bloquear o surgimento de uma nova elite parlamentar. A política é velha no Brasil não somente pelos costumes, mas também pela falta de renovação de suas lideranças. Talvez a reeleição tenha empurrado a fila para trás. Uma simples comparação com os principais líderes mundiais torna evidente a necessidade do surgimento de uma nova geração de políticos. Há muitos jovens parlamentares no Congresso, mas a maioria foi catapultada pelas respectivas oligarquias, basta conferir os sobrenomes.

Ao depor como réu, Lula se equiparou a Deus

Em seu primeiro depoimento como réu em processo da Lava Jato, Lula se colocou no lugar de Deus. Disse ao juiz Ricardo Augusto Soares Leite, da 10ª Vara Federal de Brasília, que o primeiro-amigo José Carlos Bumlai não estava autorizado a discutir negócios. O magistrado perguntou se Bumlai poderia ter usado o nome de Lula. E o interrogado: “Doutor, se o senhor soubesse quanta gente usa o meu nome em vão! De vez em quando eu fico pensando pras pessoas (sic) lerem a Bíblia, pra não usar tanto o meu nome em vão.”

Lula decerto se referia aos dois trechos da Bíblia que anotam os Dez Mandamentos que Deus entregou ao seu marqueteiro, o profeta Moisés, para que ele os propagandeasse. As Tábuas da Lei estão disponíveis em Êxodo 20,2-17 e Deuteronômio 5,6-21. Incluem o seguinte preceito: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão.”
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Se pudesse, Deus talvez escolhesse viver no Brasil. Como a onipresença obriga o Todo-Poderoso a estar em toda parte, Lula o representa no território nacional. Mas a divindade petista não se sente obrigada a observar todos os mandamentos. Dá de ombros, por exemplo, para o “Não Furtarás”. A certa altura do depoimento, disse: “Me ofende profundamente a informação de que o PT é uma organização criminosa.”

Lula talvez não tenha notado, mas ele próprio já frequenta as páginas de cinco ações penais na posição de protagonista. De resto, o sistema carcerário de Curitiba está apinhado de petistas: José Dirceu, Antonio Palocci, João Vaccari Neto, Renato Duque…

Casta púbica

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Dos 13 milhões de desempregados que existem hoje no país não tem nenhum do setor público. A catástrofe que foi o governo petista incidiu apenas no setor privado. No setor público criou-se uma casta

Antissocial

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A associação causal entre saúde e as condições de vida e trabalho foi estabelecida no século XVII. Mudanças nos padrões de emprego e renda afetam positiva ou negativamente a morbidade, mortalidade e longevidade. A comprovação científica contribuiu para a passagem à modernidade, fundamentada nas declarações de direitos humanos. Os sistemas públicos de saúde foram constituídos pela justaposição das acepções sobre os direitos inalienáveis dos indivíduos, independentemente das leis vigentes aqui ou ali ou do pertencimento a grupos sociais, à substituição de parte das atribuições da caridade por instituições públicas com acesso universal.

Sempre houve contestação. Mas as decantadas contradições entre liberdade e igualdade não impediram que o direito à condição plena de ser humano tenha se integrado ao vocabulário político internacional. Políticas econômicas e sociais administradas em conjunto deveriam garantir, de um lado, plena utilização dos recursos disponíveis e aumento da capacidade produtiva. De outro, a possibilidade de dispor de bens e serviços de qualidade.

O abismo entre as generosas constituições nacionais e as ásperas realidades de sociedades desiguais como a brasileira era atribuído a bases econômicas e circunstâncias históricas que poderiam ser superadas. A transformação da estrutura produtiva e ocupacional e demográfica e a crise econômica passaram a ameaçar não só a sustentabilidade, como também o significado de inalienável dos direitos humanos. Os serviços ocupam cada vez mais espaço na distribuição de postos de trabalho e ofertam empregos muito diferenciados, quanto ao grau de sofisticação, porém nem sempre estáveis e bem remunerados. O trabalhador não é mais aquele cuja contribuição para a Previdência era ininterrupta e relativamente maior. O aumento da esperança de vida e a redução da fecundidade resultam no envelhecimento populacional, e cresceu o número de famílias monoparentais, especialmente mães solteiras ou divorciadas que assumem a criação de seus filhos. Fontes geradoras de despesas para benefícios previdenciários e serviços de saúde foram ampliadas. A solução é turbinar as receitas ou “dar um perdido” nas políticas sociais.

A definição do que deve ou não ser direito não é objetiva, está sujeita a interpretação acerca do lugar no mundo dos cidadãos, identificação das fontes de insegurança e das condições necessárias para que os seres humanos sejam autônomos. Depende, portanto, das afinidades de quem decide a incorporação ou retirada dos direitos na ordem jurídica com determinados grupos e interesses.

Há quem considere que direitos propriamente ditos seriam os de propriedade, realização de contratos, liberdade de expressão, locomoção e julgamento igualitário perante tribunais isentos. Aqueles relacionados com o bem-estar social não passariam de nobres intenções, cuja efetividade ficaria condicionada aos recursos disponíveis. A insistência em apresentar planos de saúde baratos e com restrições de coberturas, acesso a escolas privadas mal avaliadas e previdência privada como soluções vantajosas não é imparcial. A outra face da segregação de uma sociedade iníqua é a superinclusão dos segmentos privilegiados. Empresas privadas de saúde, preocupadas com a redução de receitas, puseram em três páginas, sem nenhuma justificativa técnica, uma descrição sumária dos produtos que querem comercializar. Pretendem vender planos mais baratos com menores garantias de acesso e uso e se livrarem solenemente da parte dos pagamentos assistenciais. A demanda empresarial foi absorvida integralmente pelo Ministério da Saúde. Apesar de existir uma farta literatura contendo evidências contrárias ao racionamento da atenção à saúde, o modo obsequioso de acolhimento das demandas de setores empresariais incapacita as autoridades públicas para o exercício de normas básicas da democracia e da transparência. Cortes de recursos para a Saúde (redução real de 2,2% entre 2014 e 2015), combinados com barreiras para a obtenção de benefícios previdenciários para pobres e miseráveis, são políticas irresponsáveis. Crianças, pré-idosos (menos de 70 anos) de famílias de desempregados, semiempregados, sem renda e doentes terão imensas dificuldades para iniciar e dar continuidade a tratamentos de saúde. Serão os novos “nem, nem”. Não poderão pagar atendimento por profissionais de saúde, hospitais e remédios, e não disporão de atenção pública gratuita adequada.

Uma vida civilizada requer que as crianças tenham as mesmas oportunidades, seja lá qual for sua origem, das facilidades ou dificuldades de suas famílias, e garantia de independência de indivíduos em idade avançada. Direitos sociais não pressupõem a perda de eficiência para ganhar solidariedade, podem estimular sinergias que assegurem maior produção e melhor distribuição da riqueza. O debate sobre saúde e Previdência Social, em um país com 13 milhões de desempregados e persistência de disparidades regionais gritantes (em 2015 a taxa de mortalidade infantil no Maranhão foi 22,4 e a do Rio Grande do Sul 9,9), não é uma escaramuça entre inconsequentes perdulários e circunspectos poupadores. Imprudência mesmo é ressuscitar o fracassado e corrupto modelo de financiamento público e controle privado de atividades sociais.

Ligia Bahia 

Releitura de um clássico

Só a rua salva a Lava-Jato

No seu depoimento ao juiz Sergio Moro, Emílio Odebrecht soltou uma palavra que reflete a ansiedade da oligarquia nacional diante da Lava Jato. Discutia-se a identidade do “Italiano” das planilhas de capilés do empreiteiro e ele esclareceu que o apelido é muito comum, mas era possível que se referisse também ao “nosso Palocci”. O uso do “nosso” não indica propriedade, mas apenas familiaridade.

É enorme a admiração de Odebrecht pelo doutor Antonio, ex-ministro da Fazenda de Lula e da Casa Civil de Dilma Rousseff. Em poucos minutos doou-lhe nove adjetivos, entre eles “inteligente”, “bem informado”, “homem de visão de estadista”.
A lista da Procuradoria-Geral da República contém os beneficiários de capilés da “nossa” Odebrecht. Empresários de todos os calibres, políticos de todos os grandes partidos, os três ex-presidentes vivos e pelo menos dois ministros do Supremo Tribunal Federal formaram um coro destinado a embaralhar a discussão dos capilés. Caixa dois seria uma coisa, propina seria outra, dinheiro embolsado seria uma coisa, dinheiro gasto na campanha, bem outra. Jurisconsulto de renome, o doutor Gilmar Mendes fica devendo uma tabelinha capaz de diferenciar urubu de carcará.


A principal estridência desse coro ocorre quando se vê que se planeja uma anistia para delinquentes que se recusam a confessar. Todos operam no caixa dois, diz o coro, mas eu nunca operei, responde cada um dos cantores.

A Lava Jato foi na jugular da oligarquia politica e de boa parte da oligarquia empresarial do país. (Está na memória nacional o pato amarelo que ficava diante da Fiesp, do “nosso” Paulo Skaf, mencionado em colaborações da Odebrecht como receptáculo de R$ 6 milhões.) Ferida, essa oligarquia joga com o tempo, com as peças de Brasília e com o cansaço da choldra. Afinal, um dia a Lava Jato haverá de ser um assunto chato, se já não é.
A grande pizza começa a ser assada fabricando-se um tipo de anistia parlamentar e/ou judiciária para o caixa dois. Em seguida as propinas virarão caixa dois e estamos conversados.

Mas isso não pode ser tudo. Se o caixa dois é uma anomalia da contabilidade das campanhas eleitorais, deve-se criar um novo modelo. Qual? O do financiamento público.

Como dizia Renato Aragão, você da poltrona que já paga impostos para receber (se receber) obras superfaturadas pagará as campanhas eleitorais dos candidatos que mordem as empresas para botar ou tirar jabutis de Medidas Provisórias.
Parece maluquice, mas já desengavetaram um corolário do financiamento público: o voto de lista. Assim, o sujeito paga pela obra superfaturada, financia a campanha dos candidatos e ainda perde o direito de votar em quem quer. (Pelo sistema atual o sujeito votava em Delfim Netto e elegia Michel Temer, mas indiscutivelmente votara em Delfim, não em Temer.) Junte-se a isso que nenhum dos listados pela Procuradoria Geral irá a julgamento em menos de quatro anos.

Só a rua pode evitar que assem a pizza. Não é coisa fácil, pois uma parte da turma do “Fora Temer” tem o pé esquerdo na “nossa” Odebrecht e parte do coro do “Fica Temer”, tem o pé direito. Sem a rua, a oligarquia unida jamais será vencida. Ela fez esse milagre no século 19 e o Brasil foi o último país independente das Américas a acabar com a escravidão.

Nunca recebi propina

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               I
O cabra vivia com fome,
Morrinhando gasolina,
Filava cana e cigarro
(Até mesmo das meninas),
Ficou rico e ainda diz:
- Nunca recebi propina!

             II
Comprou uma casa na ilha,
Apartamento em Paris,
Uma quitinete em Miami
Para uma bela meretriz
E diz pelo microfone:
- Defendo o povo infeliz!

             III
Não sabia o que era carne,
Nem sequer tinha lembrança
Das vezes que foi mijar
No tempo que era criança,
Mas fala, enganando os bestas:
- Tudo ganhei de herança!

             IV
Nasceu numa casa de taipa,
Rodeado de besouro,
Barbeiro, pulga e potó,
Desses que arrancam o couro,
E espalha que foi nascido
Em grande berço de ouro.

            V
Passou a mão na viúva,
Que ficou o rebotalho;
Raspou o fundo do pote,
Porém balança o chocalho,
Se gabando que é rico
Em virtude do trabalho.

            VI
Ergue uma taça de champanhe
(Um brinde bem merecido),
Faz uma cara de herói
Que na guerra tem vencido
E diz: - Eu me fiz por “si”,
Deveras bem-sucedido!

           VII
Nunca deu um prego em nada,
Só fez jogada furtiva,
Ostenta, porém, um jeito
De pessoa bem altiva,
Legítimo representante
Da classe mais produtiva.

           VIII
Comprou votos de São Paulo
Até Quixeramobim,
Deu também sarapatel
Na Feira de São Joaquim,
Mas diz e bate no peito:
- O povo gosta de mim!

            IX
Prometeu melhores dias
Para um bocado de gente,
Vivia quase montado
No pescoço do vivente,
Mas, na hora de comer,
Só comeu quem foi parente.

            X
Agora no xilindró,
Com saudade do faisão,
Come pão com margarina
E almoça rubacão
E diz: - Esse povo ingrato
Inda beija meu retrato
Nessa próxima eleição!

A água, a luz e o asfalto no sertão

Eu tinha 15 anos e morava em Campina Grande quando as águas do Rio São Francisco apareceram na cidade sertaneja onde nasci: Uiraúna, a 480 quilômetros de João Pessoa, no mar, e 360 da Rainha da Borborema, que recebeu dia 10 a notícia alvissareira da chegada do Velho Chico a suas torneiras. Em 1966, o rio “da unidade nacional” chegou ao sertão do Rio do Peixe na forma de eletricidade 24 horas por dia. E a água santa se fez luz.

Caatinga-Morro do Chapeu----BRASIL!!!!:
Pertenço, portanto, a uma geração de transição. Nasci à luz mortiça do candeeiro na casa de meu avô materno, Chico Ferreira, na zona rural do ainda distrito de Antenor Navarro, hoje São João do Rio do Peixe de novo. Dois anos depois, Uiraúna virou sede municipal, mas a iluminação da nova cidade era escassa: às 18 horas, quando o céu estava bem escuro, o maquinista Cabrinha ligava o motor a óleo diesel e este transmitia a energia mecânica para o dínamo combater a treva. O vigário, cônego Anacleto, ligava a difusora da matriz de Jesus, Maria e José e rezava a Ave Maria com o fundo musical da canção homônima na qual Gounod transformou uma fuga do gênio de Bach. Minha mãe nos reunia na calçada e dizia versos de Castro Alves no mormaço atro do Semiárido.

Àquela altura, o progresso tinha nome composto: Paulo Afonso, à época distrito de Glória, na Bahia, onde havia sido inaugurado o complexo hidrelétrico às margens da cachoeira do mesmo nome no Rio São Francisco a caminho do mar. Quando a eletricidade de 24 horas chegou àqueles confins em que a Paraíba cruza em seu extremo oeste com o Ceará e o Rio Grande do Norte, o lugarejo baiano era município e a Camargo Corrêa construía desde Cabedelo, cidade portuária da Grande João Pessoa, a BR-230, primeiro trecho da Transamazônica, símbolo da megalomania militar.

Até então, chegava-se a Campina Grande por uma estrada de terra esburacada numa viagem que exigia pernoite em Café do Vento, no centro geográfico do Estado. Só no dia seguinte chegava-se ao asfalto na Praça do Meio do Mundo, na Farinha, na subida para o Planalto da Borborema, onde os tropeiros paravam suas tropas de burro para lhes dar de beber no Açude Velho da Vila Nova da Rainha. Hoje na via pavimentada o trajeto faz-se em cinco horas, mesmo sem exagerar na velocidade.

A rede elétrica e a rodovia, contudo, em nada interferiram no regime de águas do sertão distante. A seca de 1958, em que testemunhei sertanejos famintos saqueando armazéns de mantimentos para não morrer de fome, repetiu-se em ciclos causando martírio e êxodo de pobres lavradores.

Na sexta-feira 10 de março de 2017, as águas do São Francisco, que iluminam o sertão paraibano inteiro desde 1970, interromperam a angústia de 400 mil almas de Campina Grande, que bebem água do açude de Boqueirão de Cabaceiras. Este foi inaugurado em 1957 por Juscelino Kubitschek para resolver o crônico problema de falta de água da segunda maior cidade do Estado, até então atendida apenas pelo açude de Vaca Brava, no Brejo, que hoje nem água tem. Quando Michel Temer foi a Monteiro, no Alto Paraíba, para receber as águas da transposição, restava 3,7% do volume morto no reservatório, que tem o mesmo nome de uma obra-prima da literatura regional brasileira, o romance O Boqueirão, escrito em 1935 pelo pioneiro José Américo de Almeida.

Ainda assim, Michel Temer foi recebido de forma hostil. O governador do Estado, Ricardo Coutinho, que se opôs ao impeachment de Dilma Rousseff e o chama de golpista, compareceu à visita do presidente. Mas fez questão de registrar sua opinião de que o pai da obra não era o paulista de Tietê, mas o pernambucano de Caetés. O presidente não aceitou a pecha de usurpador e disse que a paternidade da transposição não era dele e de nenhum outro político, mas do povo brasileiro em geral e do povo nordestino em particular. Afinal, a transposição foi bancada por dinheiro público. Parece barretada demagógica, mas o fato é que o direito autoral político cobrado pelos devotos do PT é, no mínimo, duvidoso.

Atribui-se o patronato da transposição ao imperador D. Pedro II, que, em 1850, comovido pelo testemunho da seca ao visitar o Ceará, disparou uma bravata: “Venda-se o último brilhante da Coroa, contanto que um brasileiro não morra de fome”. Wanessa Campos, biógrafa de Maria Bonita, mulher do cangaceiro Lampião, não perdoa a demagogia imperial: “A Coroa continua intacta e muitos brasileiros ainda morrem de fome”.

A briga pela água no sertão ultrapassou os limites do Semiárido e pôs em discussão a sustentação ecológica do rio doador. O bispo de Barra, Bahia, Dom Luiz Flávio Cappio, fez greve de fome contra a obra. Paraibana, sertaneja do Vale do Piancó, a cantora Elba Ramalho não pôde apresentar-se num trio elétrico em João Pessoa por manifestar preocupação com o mesmo tema. O pároco de Uiraúna, meu amigo de infância, Padre Domingos Cleide Fernandes, também foi execrado por se preocupar com a possibilidade de a transposição degradar a vida do rio nascido em Minas.

O baiano Antônio Carlos Magalhães, adversário da obra, desafiou seu amigo e colega cearense Tasso Jereissati a apresentar um estudo sério sobre o tema. Se o convencesse, o próprio ACM apoiaria a obra. Lula presidente mandou iniciar a transposição em 2007. Pressionado pelos ambientalistas, garantiu em 2009 que encomendaria um estudo a respeito.

Muito antes disso, em 1998, o tucano Tasso reuniu em Fortaleza respeitáveis especialistas em águas do mundo inteiro para debater o assunto. Os técnicos criticaram o projeto. Em suas palestras, contaram que água é um insumo muito caro para ser desperdiçado na evaporação em canais abertos como os que levam a água do “rio da unidade nacional” para Sertânia e Monteiro, assim como o que Ciro Gomes, sucessor de Tasso, construiu para levar água potável para a capital do Ceará. E previam que os nordestinos seriam execrados no futuro por terem empregado milhões de reais para desviar a água que desemboca no mar entre Alagoas e Sergipe para desaguar em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Em 24 de maio de 1998, o Jornal da Tarde publicou meu relato sobre o seminário no texto O açude de sal e o trem da água. Nele escrevi o seguinte: “Os 1.500 maiores açudes nordestinos guardam um volume calculado em 21 bilhões de metros cúbicos de água, 10 vezes a Baía da Guanabara, 100 vezes a Represa de Guarapiranga, que responde pelo abastecimento de 3 milhões de pessoas. Ou seja, teoricamente (e só em teoria, pois nunca se pode usar totalmente a água de um açude), esta seria água suficiente para o consumo de 300 milhões de pessoas, quase o dobro da população do País inteiro. Só que, segundo o secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio-Ambiente, Fernando Rodrigues, especialista em água, mas não em seca, apenas 20% do que poderia ser usado o é de fato, ficando 80% para contemplação estética e evaporação”.

Esta é a realidade dos fatos, mas quem liga pra ela? Da mesma forma, o aviso dos técnicos não foi ouvido na algaravia da guerra ideológica da pós-verdade na política brasileira. Levada aos trancos e barrancos sob Lula e descontinuada (como se diz hoje) sob Dilma, a transposição foi inaugurada pelo vice que assumiu o lugar dela depois do impeachment. É improvável que seus custos não tenham sido anabolizados pela corrupção avassaladora nos 13 anos, 4 meses e 12 dias dos dois desgovernos petistas. Mas prevalece a versão do senador Humberto Costa (PT-PE) ao Valor Econômico: “Todo o pessoal do governo, que nunca colocou uma pá de terra na obra, está querendo tirar uma casquinha”.

Com base no “dane-se a realidade” desse argumento parcial e irreal, Lula visitará o São Francisco correndo no leito do Alto Paraíba em 19 de março, data que os sertanejos consideram como limite para chuvas que interrompem quaisquer períodos de estiagem. Se não chover até então, fechar-se-á o mais prolongado ciclo de seca da História. E o padim Lula conta com a fé religiosa do povo para ressuscitar o mito de sua invencibilidade.

Na semana passada, choveu em Uiraúna, e o açude da Capivara, cujo nome homenageia meu bisavô, Coronel Alexandre Moreira Pinto, ganhou dois metros de água. Ou seja: alcançou 5% de seu volume morto. Como se vê, resta pouco a comemorar e muito a temer. Afinal, o Velho Chico, transposto para o Paraíba ainda não pereniza o Rio do Peixe, em cujas margens secas nasci e fui menino. Nem faz tanto tempo assim.

Adeus, renovação política

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Feito o lobisomem que aparece nas noites de lua cheia, caiu no Congresso, mais uma vez, a proposta da eleição de deputados em lista fechada, na discussão da reforma política. O eleitor não votaria no candidato de sua preferência, mas na sigla de um partido cujos caciques comporiam a relação dos companheiros dignos de receber os votos. Imagine-se quem os dirigentes partidários colocariam nos primeiros lugares: eles mesmos, ainda que se fosse para ser votados individualmente, ficariam na rabeira.

Trata-se de mais uma vigarice dos mesmos de sempre.

Fica estranho que depois de a Câmara dos Deputados haver rejeitado a sugestão, tempos atrás, ela retorne impávida pela manobra dos mesmos de sempre. Quem puxa a fila, agora, é o presidente do Congresso, Eunício Oliveira, por sinal o senador mais votado no Ceará.

A reforma política segue os passos da vaca: vai para o brejo, ainda que se tenha a certeza de sua rejeição pelo bom senso.

A reforma política ressurge em meio à crise gerada pela tentativa de aceitação do caixa dois, outra agressão abominável. Suas Excelências imaginam que uma das duas excrescências acabará aprovada, coisa que lhes basta para continuar boiando no esgoto.

Nada de novo acontece sob o sol. Porventura aprovada a lista fechada, seria inócuo o desvio de recursos ilícitos do caixa dois para a preservação dos mandatos dos controladores dos partidos. Garantiriam seus lugares, verdadeiramente o que lhes interessa. A renovação ficaria para as calendas, em todas as legendas.

Carlos Chagas

Paisagem brasileira

Caboclo, distrito de Afrânio (PE)

Anatomia de um desastre

Só agora, com a divulgação da queda do PIB de 2016, temos a verdadeira dimensão da tragédia construída ao longo dos governos Lula-Dilma, que fez a economia brasileira retroceder aos níveis de 2010, com uma queda nunca vista em nossa história. Não deixa de ter razão o jornalista Clovis Rossi ao caracterizar a queda em 10% da renda dos brasileiros e a geração de um exército de treze milhões de desempregados como um crime de lesa pátria.

Atribui-se à ex-presidente Dilma Rousseff a autoria pela maior recessão da história do país. É verdade, mas em parte. As bases de uma catástrofe anunciada foram lançadas nos anos Lula, com sua política de subsídios seletivos, de expansionismo fiscal, de abandono dos fundamentos econômicos, da política dos campeões nacionais, de namoro com a inflação, de intervencionismo e dirigismo estatal.


E também das pedaladas, do represamento de preços, do populismo tarifário, do aparelhamento do Estado e da utilização do BNDES como financiador de um projeto de poder – o chamado Estado-Odebrecht; como apropriadamente o caracterizou outro conhecido articulista, Demétrio Magnoli.

Criador e criatura legaram ao país uma terra arrasada.

Como foi possível chegar a isso?

A resposta está no livro “Anatomia de um desastre”, lançado no final de 2016 e escrito por três grandes jornalistas econômicos: Cláudia Safatle, diretora-adjunta de redação e colunista do Valor Econômico, João Borges, repórter e comentarista de economia da Globonews, e Ribamar Oliveira, repórter e colunista também do Valor. Trata-se de leitura obrigatória para quem quiser entender os descaminhos da economia nos treze anos do lulopetismo e saber como, um por um, foram destruídos os fundamentos da boa economia que, se não tivessem sido descontinuados, teriam proporcionado aos brasileiros o ingresso no grupo dos países com crescimento sustentado e com índices mais palatáveis de desenvolvimento humano.

Vamos a alguns lances do livro, lançado no final de 2016.

Na manhã de 19 de fevereiro de 2003 o Copom se reunia pela segunda vez no governo Lula para decidir qual seria a taxa de juros básicos. Um mês antes, a equipe de Henrique Meirelles, então presidente do BC, deu prosseguimento à política de aumento da Selic adotada pelo seu antecessor, Armínio Fraga. Os juros tinham subido em janeiro para 25%, com o respaldo dos três homens fortes do governo – Antonio Palocci, José Dirceu e Luiz Gushiken.

Tudo conspirava para ser uma reunião tranquila. O time estava prestigiado. Mas, de repente, o ambiente ficou turvo. O presidente do BC é chamado para atender um telefonema no seu gabinete. A tensão se justifica. De acordo com o ritual do Copom, ninguém deixa a sala de reunião enquanto se discute a taxa de juros, a não ser para atender um chamado do presidente da República ou do ministro da Fazenda.

Os quinze minutos de espera pareciam uma eternidade. Quando Henrique Meirelles retorna à reunião sua expressão facial era a de um homem tenso. De forma enigmática, dá uma pista sobre o teor do telefonema: “Politicamente vai ser complicado aumentar os juros”.

Não diz quem estava no outro lado da linha, mas era fácil de intuir: Lula.

Com anos de janela, o diretor da área de Liquidações, remanescente da diretoria anterior, propõe uma interrupção para o almoço em conjunto para que fosse costurada uma decisão por unanimidade. Quando a reunião é retomada, o clima ameno tinha voltado. Ao final, o Copom divulgou a decisão de elevar a Selic para 26,5% e de aumentar o compulsório sobre depósitos à vista de 45% para 60%. Esse e outros episódios do embate desenvolvimentistas e ortodoxos (ou neoliberal, como os xingava Guido Mantega) no interior dos governos lulopetistas são dissecados de forma magistral pelos autores de “Anatomia de um Desastre”. A corda sempre rompeu do lado dos “ortodoxos” por uma simples razão: a cabeça de Lula sempre esteve mais para a Carta de Olinda, que preconizava a ruptura com o “modelo neoliberal de FHC”, do que para o “Lulinha, paz e amor” da Carta aos Brasileiros, com sua promessa de respeito aos contratos e aos fundamentos macroeconômicos.

A reunião do Copom de fevereiro de 2003 foi a última grande vitória dos ortodoxos. Como o livro revela, a adesão de Lula a uma política econômica responsável foi apenas um movimento tático, pois a partir de 2006 a economia passou a se subordinar à política, ou melhor, aos objetivos políticos do caudilho, a começar por sua reeleição e posteriormente à eleição de Dilma

Dramaticamente, o livro narra como o país perdeu, em 2006, oportunidade de ouro de sanear suas contas com a adoção do déficit nominal zero – proposta de Palocci e de Delfim Neto – e de baixar a meta da inflação para 4%, o que aumentaria a credibilidade da política econômica e reforçaria o grau de confiança dos investidores.

Nas páginas do livro desfilam figuras impagáveis, que serão apreciadas pela história, para o bem ou para o mal. Delas, Henrique Meirelles sai como um servidor com muitos serviços prestados à pátria. Guido Mantega como um bufão, um Polyana que só meteu os pés pelas mãos. E Dilma e Lula – com maior peso para o caudilho - como os grandes responsáveis pelo desastre anunciado.

Há também figuras menores, desconhecidas do grande público, mas com um poder imenso no reino do lulopetismo. Uma delas, Arno Augustin, “um trotskista no comando do Tesouro”. Era a alma gêmea de Dilma, iguaizinhos no estilo voluntarista, centralizador e autoritário. Era pela boca de Arno que Dilma enquadrava os demais membros da equipe econômica.

Quem ler o livro deve ficar atento a uma ilustração bem no miolo. É uma reprodução da entrevista de 2009 do então ministro da Fazenda Guido Mantega às páginas amarelas da Veja, na qual faz a seguinte premonição: ”Ninguém mais quer saber de déficit público e inflação. Se no futuro for eleito um presidente irresponsável ele terá de se submeter às regras do jogo ou será impichado.”.

E não é que Mantega acertou uma.

Sociedade dos Políticos Mortos

A condenação moral, dada às atuais circunstâncias do país, é tão grave ou pior do que uma condenação futura pela Justiça. A moral é de imediato, e seus efeitos se farão sentir no curto prazo. A futura, além de incerta, demorará muito. A história política do país, do fim da ditadura militar para cá, está repleta de exemplos disso

Continua a luta por um mundo de igualdade contra todas opressões

A greve geral das mulheres no 8 de Março passado, com a adesão de mais de 60 países, incluindo o Brasil, onde ocorreu mais de uma centena de manifestações, nos dá muitas esperanças na força e no poder do internacionalismo feminista, apesar dos atropelos machistas e misóginos que nos cercaram na data em nosso país.

Um deles, o goleiro Bruno, condenado por feminicídio, em 2010, a 22 anos e três meses de prisão, foi solto! “Tirou” apenas seis anos e sete meses de cadeia! Ele recorreu da sentença, e sua condenação virou prisão preventiva, pois o recurso não foi julgado até a data da soltura, 24.2.2017. Todo pimpão, declarou à TV Globo Minas: “Independente do tempo que eu fiquei também, eu queria deixar bem claro, se eu ficasse lá, se tivesse prisão perpétua, por exemplo, no Brasil... não ia trazer a vítima de volta”.

Como se cadeia fosse para ressuscitar quem os assassinos mataram! É um assassino tirando onda de filósofo! Em 10 de março, ele foi contratado pelo Boa Esporte, de Varginha (MG), a cidade dos ETs. Faz sentido. É um escárnio, acobertado pela lei. É a segunda vez que o Estado acaricia o criminoso goleiro: Eliza Samudio foi assassinada porque o Estado brasileiro, quando instado por ela a proteger sua vida, se omitiu: não compareceu para dar limites ao agressor, acariciando assim a onipotência dele.

Há quase três anos não moro em BH, todavia, na tarde de 7 de março, fui “achada” por uma defensora pública de Uberlândia (MG), que conduz um caso de gravidez pós-estupro e pedia socorro porque não encontrara nas “muitas Minas” quem realizasse o aborto! Conforme relato da defensora pública: “Uma moça de 20 anos está grávida após estupro. Desde então, vem em peregrinação por hospitais da rede pública, para se submeter ao procedimento de interrupção da gravidez, e todos se recusaram.

Ela chegou a ser encaminhada para um hospital em BH, mas foi negado o atendimento porque supostamente este seria atribuição do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, que, por sua vez, já informou que não o faz”.

A valorosa defensora já entrou com uma ação pedindo que o Estado providencie a interrupção da gravidez; no entanto, não conseguiu a informação sobre quais hospitais em Minas Gerais são credenciados para tanto. Cadê o governador de Minas Gerais? Até 2010 havia lista pública de serviços de aborto prevista em lei no Brasil, mas um ministro fundamentalista proibiu a divulgação dela! Só sabemos que são 65 serviços e a lista sumiu!

A terceira miséria foi o chamado nem tanto subliminar do atual presidente da República à formação das fiscais de Temer, ao dizer: “Ninguém melhor do que a mulher para indicar desajustes de preços no supermercado”, em meio a um discurso das entranhas da Idade Média, bem ao estilo família “comercial de margarina”, ignorando as novas configurações familiares no Brasil, onde 40% dos domicílios têm mulheres como pessoas de referência, conforme a pesquisa “Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça”, do Ipea. “Tenho absoluta convicção, até por formação familiar e por estar ao lado da Marcela, do quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Do que faz pelos filhos...” Ninguém merece ser reduzida ao papel de mulher-mala, aquela cujo valor divino são os rebentos que pode carregar na barriga!

É um atraso que padrões culturais retrógrados dominem mentes que têm poder e que, por dever de ofício, deveriam estar em sintonia com a peleja “por um mundo de igualdade contra todas as opressões”.

Um país na tempestade

Não sabia que gente viva morria. Os mortos de que ouvira falar até os meus cinco anos, eu os conhecera depois de morridos ou matados. No desassombro de criança curiosa que espreita mistérios, fugi da cozinha do casarão de minha tia-avó levando o prato de banana-da-terra cozida com canela que mamãe me servira no lanche da manhã. Na sala grave, com o relógio carrilhão de pé desativado, espelhos cobertos, quadros virados, cadeiras dispostas como uma plateia de frente para a sólida mesa imensa enfeitada pelo caixão onde meu tio-avô jazia, eu me sentei com o prato no colo, balançando os pés enfiados em meias curtinhas de renda e sapatinhos rosa envernizados. A ventania anunciando chuva me deu o pretexto de ir até o janelão na cabeceira do caixão e olhar mais de perto o conteúdo. De costas para meu tio-avô, olhando a chuva oblíqua, eu o ouvi me chamar cortando o barulho do aguaceiro: essa menina!

II

Na semana passada, intelectuais assinaram um manifesto pela candidatura daquele que o Ministério Público Federal apresentou (mas não prendeu!?) como o comandante máximo da organização criminosa que sequestrou o Estado e arruinou o país. A irrelevância de intelectuais desmoralizados no instante mesmo em que submetem o pensamento ao lulo-banditismo restringiu o vexame ao território onde um país ainda tenta existir. Falou-se, com razão, da precariedade moral e gramatical do texto, mas faltou perguntar àqueles signatários o que fizeram pelo conhecimento no país que não tem nenhuma universidade entre as 150 melhores do mundo. A defesa de um bandido que depreda o conhecimento, o apego a boquinhas em guildas ideológicas nas mofentas universidades públicas e tantas privadas de onde pontificam quem vive e quem morre nos meios editorial e acadêmico-cultural, a substituição da leitura/pesquisa pela burocracia universitária? O confronto foi oportuno, mas o essencial para o país não se fez ouvir no alarido.

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III

Ninguém adivinharia que o duro começo de vida de mascate pelo sertão daria ao meu tio-avô o único armazém da região, o Tend Tudo; o casarão na avenida principal da encantadora cidadezinha encarapitada nas serras pernambucanas; viagens e conhecimento; estudo e ilustração; prestígio e a amizade infectada pela adulação em graus diferentes do delegado, do padre, dos políticos e dos comerciantes das redondezas; o respeito e a afeição dos demais habitantes. O custo foi desgraçado: a morte dos quatro filhos. O casal de gêmeos ainda bem novinhos foi levado por uma combinação de misericórdia divina e disenteria quando a fome e a miséria grassaram por ali numa estiagem de quase cinco anos. Dos outros dois, já adolescentes, um ataque tenebroso de uns cangaceiros deu cabo. O acontecimento gravou no espírito dos meus tios-avós tão fervoroso repúdio à violência que a brutalidade da execução de Lampião relembrou a dor pelo avesso. E eles, tão crentes meus Deus, se recolheram em jejum e preces para sobreviver àquele dia. Enquanto ela se entregaria à caridade e à adoção informal das crianças do populoso ramo pobre da família, ele entregou o coração à ideia fixa de que a morte não o surpreenderia.

IV

Há 10 dias, Marcelo Odebrecht estarreceu o país, em transe diário, revelando que entregou R$ 300 milhões de propina ao PT entre 2009 e 2014, operados por dois ministros de Estado, Palocci e Mantega – a isso a seita nefasta rebaixou a nação. Precisamente nessa redução e na incompetência dolosa dos petistas, os políticos metidos até o último voto com a ética 2 do caixa 1 e os vícios do caixa 2 se diferem daqueles que saquearam o Estado patologicamente, tecendo uma rede internacional com regimes eleitos por grana roubada e com delinquentes de colarinho branco Estado-dependentes. Igualar crimes de caixa 1-2 ao esbulho institucional da súcia lulo-petista derrotará a Lava Jato e o país, malogro para o qual contribui a gritaria estrepitosa em torno do delito menor que o agiganta até que se dilua a obra medonha do PT. E, assim, restaremos entre Guilherme Boulos e Marina Silva: é essencial lembrarmos que não há santos na política, nem fora dela.

V

Homem parrudo, de quase 2 metros, pacífico, meu tio-avô só saia de casa armado; dizia que por cautelar persuasão. Nunca disparou um tiro, mas quase matou a mulher de susto quando vieram entregar em casa o caixão. De pé ao lado da peça intrusa entre a mobília preciosa, um braço estendido ao longo do corpo miúdo enquanto a mão oposta ajeitava o cabelo curto impecável, Adalgisa perguntou com o fio de voz que o choque permitia o que diabos era aquilo, homem de Deus. Honorato contou que o melanoma se confirmara e o médico lhe dera só três meses, se tanto, para colocar a vida em ordem. A vida tem a ordem possível, doutor, eu vou é organizar a morte.

VI

MO disse também que Michel Temer lhe pediu doação para a campanha sem falarem de valores e, finalmente, que não fez doações ilegais a Aécio Neves. Tão desolador quanto o depoimento ao ministro Herman Benjamin do TSE, foi contemplar a imprensa que conta, aquela que se agigantou resistindo à censura no regime militar, apequenar-se na rendição à patrulha petista e/ou à ideologia que a intoxica e pode matar o que ainda resta de jornalismo digno da definição. Deformando o que disse MO, portais de revistas e jornais fizeram de Temer e Aécio os presidentes do Brasil da última década que o acanalharam berrando como crimes o não-crime de pedir doações e o não-crime de ter recebido doações legais. Quando surgiu a notícia de que o tucano recebera R$ 9 milhões por vias legais, esse grão de areia limpo encobriu a montanha imunda dos 300 milhões dados ao PT. A imprensa é livre para não gostar de Temer, a imprensa é livre para não gostar de quem o apoia, a imprensa é livre para querer a volta das esquerdas, a imprensa é livre para perder eleitores, a imprensa é livre. Então, por que não se liberta?

VII

Meu tio-avô pediu pressa e esmero na fabricação do caixão. Daquele dia em diante, passaria algumas horas diárias dentro do esquife para se familiarizar, pois a morte não o pegaria de surpresa. Ninguém entendeu e Adalgisa pediu à mamãe, numa carta cheia de solidão, que a sobrinha – a filha que ela não teve – estivesse com ela, mandaria as passagens de avião; que venha com as três meninas, há boa acomodação e os ares verdes farão bem a elas, visse? Fomos e, vendo a chuva oblíqua, ouvi Honorato me chamar. Não sei se pela transição entre o mundo dos mortos e o dos vivos ou se por outra ausência que já se insinuava, ele esquecera o nome da sobrinha-neta afilhada.

VIII

Claro que o tal foro privilegiado tem de ser reformulado (via Congresso, ministro Roberto Barroso), mas a discussão perde-se do essencial: a impunidade não precisa do STF para triunfar, ela tem o território inteiro onde deveria haver um país. Não? Vejamos. O ex-goleiro Bruno foi solto porque a Justiça demorou cinco anos para não julgar um recurso; Pimenta Neves, o ex-diretor do Estadão que assassinou com dois tiros pelas costas a namorada diante de testemunhas, ficou 11 anos solto até ser preso por 7 meses e reconquistar a liberdade; o Mapa da Violência informa que míseros 8 de cada 100 assassinatos são levados a julgamento no Brasil. Tudo isso fora dos salões privilegiados do STF. Tudo isso num país com 140 mil servidores num Judiciário pesado de mordomias e incúria; com uma polícia que, obsoleta e mal paga, pouco investiga. O foro privilegiado é um privilégio de ricos (com seus advogados que protelam tudo) e de pobres (com a incompetência do Estado que protela tudo). É o privilégio do crime, especialmente do crime contra a vida, essa coisa sem valor nem serventia num país de trágicos privilégios impunes.
IX

Bela a tempestade de um mês atrás como espetáculo, com o granizo se granulando escandalosamente na pequena varanda de onde eu assistia a tudo. Voltava de uma visita aos meus amados Adalgisa e Honorato que se mudaram para São Paulo desde que o mal de Alzheimer se agravou e vi os olhos azuis-acinzentados vazios sem a sentinela que vigiava a morte. O melanoma não o levou, mas Honorato já não estava mais ali. No começo, a chuva era oblíqua e me lembrei do poema do Pessoa “Chuva Oblíqua”: “Não sei quem me sonho…”.

Depois, o peso de tanta água corrigiu o ângulo e o aguaceiro se endireitou e se adensou tão completamente que apagou a paisagem clara minutos antes, transformando-se no mundo. Não tem mais mundo, só tem a tempestade e este camarote meu, tão precário que me faz pensar em quem não conta nem com um assim e em quem, dispondo de abrigo muito mais bem protegido, grita repreendendo chuvas e ventos como se todo o espetáculo não tivesse sido preparado na anterior calmaria aparente. Gritando, só ouvem a si mesmos, e não o essencial.