sábado, 25 de fevereiro de 2017

O 'jeitinho' e a insegurança jurídica

“Aos amigos, tudo; aos indiferentes, a lei; aos inimigos, a lei e seus regulamentos.” Meu pai gostava dessa citação para alertar contra brigar com a burocracia: são tantas leis, tantos decretos, portarias, acórdãos, instruções normativas, regulamentos que quem os aplica tem grande latitude para facilitar ou infernizar a vida de quem a ela recorre.

Não deixa de ser paradoxal: ao mesmo tempo que se afogam num oceano de regras, os brasileiros têm de navegar numa realidade com regras sempre fluidas e situações muitas vezes resolvidas caso a caso.

Essa realidade traz graves prejuízos à economia. Por exemplo, força as empresas a gastar significativos recursos para conhecerem e cumprirem todas as regras. Fazer negócios vira um pesadelo: basta ver os resultados do último Doing Business, em que o Brasil figura entre os últimos colocados em itens como “abrir um negócio”, “pagar impostos” e “conseguir uma licença de construção”.


A corrupção e o tráfico de influência são outros resultados dessa realidade. Essas são formas de buscar “amizade” no local certo: com quem vende “facilidades”, contrata obras e serviços, fiscaliza, dá empréstimos, redige medidas provisórias, etc. A corrupção prospera não só porque quem decide tem muita latitude, mas porque a ausência de regras claras dificulta julgar se a decisão foi tomada de boa ou má-fé.

Se facilita a corrupção, essa realidade dificulta a vida do gestor honesto. Os gestores públicos têm de tomar decisões com base na interpretação das regras, mas essa interpretação nem sempre é a mesma dos órgãos de controle. Assim o gestor está sujeito a penas sérias, mesmo quando age com boas intenções. Isso incentiva o imobilismo, a não decisão, problema que se está alastrando.

Essa flexibilidade interpretativa também eleva o risco de investir e operar no Brasil, o que reduz o investimento, o emprego e a produção. Atividades reguladas e/ou dependentes de contratação, como finanças, inovação tecnológica e infraestrutura, têm dificuldade de prosperar nesse quadro.

O Brasil funciona na base do “jeitinho” há bastante tempo. Mas a falta de previsibilidade parece estar se agravando, entre outros motivos, pelo crescente número de brasileiros que buscam um “amigo” no Judiciário. O resultado é a crescente judicialização dos conflitos: em 1988 houve ação judicial em 45% dos conflitos, em 2009 essa taxa subiu para 70%.

Isso ajuda a explicar por que a Justiça recebeu 29 milhões de casos novos em 2014. Muitos desses casos trazem o conflito e os problemas sociais para dentro da Justiça, pondo os magistrados numa situação em que a norma e o drama pessoal aparecem em lados diferentes. E com o drama à porta nem sempre é a norma que prevalece. Em que pesem as boas intenções, porém, a pulverização das soluções não tem resolvido os problemas. Em parte, porque o que pode fazer sentido no caso individual pode não o fazer no coletivo.

A judicialização da saúde pública é um exemplo. Magistrados mudam a ordem das pessoas na fila de transplante, ordenam gastos elevados com remédios caros e impõem tratamentos de última geração, às vezes no exterior. Somadas as decisões, constata-se a alocação de parte relevante do orçamento público da saúde para um subgrupo de pacientes, deixando outros desassistidos e atrapalhando a gestão da saúde pública pelo Executivo.

A área de falências é outro exemplo. Alguns magistrados relutam em decretar a falência de empresas que deram errado, receando causar desemprego. O resultado disso, e da alta informalidade, é um número elevado de empresas ineficientes, que puxam a produtividade do País para baixo. Se decretada a falência, esses trabalhadores iriam se ocupar em outras empresas, onde sua produtividade seria mais alta.

A crescente judicialização da política é outro fenômeno que eleva a incerteza. Cada vez mais o conflito político se concentra nos tribunais. Hoje parece que as colunas de política dos jornais falam mais do STF que do Congresso.

É difícil ser otimista acerca desse processo: essa entropia tende a se autoalimentar. Na saúde, decisões favoráveis aos pacientes estimulam mais demandas judiciais. Na política, se o poder se concentra nos tribunais, é para lá que a briga pelo poder vai migrar.

Reverter esse processo é difícil. Por exemplo, no caso da Justiça, a grande latitude para sustentar variadas decisões com base em princípios constitucionais sugere que não se trata de aprovar novas leis. E o fato de os magistrados decidirem de forma monocrática, livres de regras do precedente, limita, ainda que não elimine, a influência da jurisprudência dos tribunais superiores. Não há sinal de que isso vá mudar.

Além do mais, há claros ganhadores com esse estado de coisas, que vão brigar contra mudanças. A tendência é que quem está fora também busque dar um “jeitinho”, um “amigo” que manda; ou, então, tente criar e implementar suas próprias regras. Há também um componente cultural, que valoriza a flexibilização das regras e desconsidera suas implicações sociais e econômicas.

Ainda assim, há medidas que talvez possam mitigar esse processo – quem sabe, até interrompê-lo. Por exemplo, cobrar autodisciplina dos órgãos públicos quanto à edição de regras, exigindo que para cada nova norma outras sejam eliminadas. Também pode ajudar a criação de um Fórum Nacional da Segurança Jurídica, envolvendo os três Poderes da República, que promova a clareza, a estabilidade, a impessoalidade e a previsibilidade das regras e de sua aplicação.

O Executivo, o Congresso, o Judiciário e a sociedade civil têm grandes pensadores. É hora de eles e elas mergulharem no problema de como melhorar a nossa segurança jurídica. Sem ela o nosso desenvolvimento econômico continuará devagar, quase parando.

Armando Castelar

O país do Carnaval, em marcha

E, de repente, em meio a tanto desgosto, tanta dor e violência, eis que chega o carnaval, espargindo confete e purpurina sobre as nossas vidas. Como se essa festa, tão mais velha que o Brasil, quisesse provar que, apesar de nossos múltiplos pesares, ainda conseguimos vestir e viver fantasias. É graça dada aos carnavalescos a pele colorida dos arlequins que, vestida na infância, vai vida afora em busca de alguma alegria possível. O carnaval tem leis que só os carnavalescos reconhecem e respeitam.

O carnaval começa hoje trazendo sátira e polêmica, com alta voltagem de politização. Aquela em torno das marchinhas de velhos carnavais é o reflexo de uma questão mais complexa, a relação entre a História e a Cultura. A História não se reescreve, o que foi, foi e continuará tendo sido. As rupturas históricas são ruidosas. Já a cultura vai mudando dia a dia, em movimentos imperceptíveis, até que um dia se percebe que o que foi já não é.

O Brasil dos anos 50 cantava a “Nega maluca”. Um tempo em que era comum um homem, sem culpas, engravidar a empregada negra. Feliz, ia jogar sinuca. Era então que “uma nega maluca” vinha com o filho no colo dizendo pro povo que o filho era dele. A marchinha contava uma historia que acontecia, de fato. Ele sempre repudiando essa “nega maluca” que, na vida real, tinha ingressado no bloco das mães solteiras. A música, uma sátira social, é, há 60 anos, um grande sucesso do carnaval. Ainda hoje há quem continue jogando sinuca e renegando os filhos que faz mas, em tempos de DNA, a “nega maluca”, seja ela branca, mulata ou negra, já era.

Nos anos 60, as famílias bem pensantes se perguntavam, sim, se o Zezé, com a sua longa cabeleira, seria gay. Se fosse, que horror! A ordem era cortar o cabelo dele, um transviado, acentuando bem as últimas sílabas. A música animava bailes infantis e sacudia o Gala Gay, um baile disputadíssimo, frequentado por gays e não gays. Os gays se esbaldavam no carnaval, cantando a cabeleira do Zezé.


A autoestima ferida por fatos bem mais graves do que a marchinha deu a volta por cima e hoje desfila em clima carnavalesco nas marchas paradas do orgulho gay, um bloco animadíssimo, que já arrastou três milhões de pessoas em São Paulo. Ninguém mais precisa perguntar se o Zezé é ou não é, ele mesmo, quando quer ser, se apresenta. Ou não, quando não quer dar satisfações sobre a sua cabeleira. A marchinha, um sucesso incontornável, fica como crônica de um Brasil ultraconservador.

O carnaval nunca poupou nada nem ninguém. Tem um espírito similar ao da caricatura. Não existe caricatura a favor. O barbudo vestido de mulher com seios enormes e travesseiro no traseiro, as pernas peludas apertadas na meia arrastão, empunhando um escovão à guisa de estandarte ou vestido de noiva, jogando o buquê para o povo, pode ser um prato cheio para um psicanalista ou simplesmente uma sátira dirigida às mulheres. Lá vai ele, abraçado de um lado a uma louríssima índia de espanador, do outro, a uma Helena de Troia negra. Lá vai o Brasil, rindo de si mesmo.

“O teu cabelo não nega” é racista? É, quando diz “mas como a cor não pega, mulata”. Não é, quando diz “mulata, eu quero teu amor”. Esse é o segredo da população brasileira, uma admirável paleta de todos os matizes de pele. Felizmente, salvo talvez uma minoria ridícula que não frequentaria blocos, a última coisa que somos é brancos, orgulhosos de sê-lo. A música é quase um hino na história do carnaval.

A questão racial no Brasil é das mais complexas, um dos nós do conflito original dos brasileiros, que consiste em sermos essa mistura de brancos, índios e negros. Filhos de três civilizações com histórias diversas, cosmogonias contraditórias, deuses diferentes, que se misturaram e que se aceitam e se recusam ao mesmo tempo, nutrindo uma eterna ambiguidade e insatisfação consigo mesmos. A identidade do Brasil é a diversidade: esse é o nosso paradoxo e maior riqueza, nossa comunidade de destino.

Mulatas e cachaça são grandes temas do carnaval. Em tempos de Lei Seca, letras como “as águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar”, ou “pode me faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão, (...) só não quero que me falte a danada da cachaça”, poderiam ser ouvidas como desacato. Todos cantam, e nem por isso somos um povo de alcoólatras que dirigem bêbados.

A Lei Seca pegou. O racismo é justamente punido, a homofobia condenada. Marchinhas são antes reminiscências do que uma ofensa atual a quem quer que seja. São o país do carnaval em ritmo de marcha, cantando... e se contando.

Rosiska Darcy de Oliveira

A pinguela está balançando

Às vésperas do carnaval, o governo se vê diante de mais um terremoto ministerial. As denúncias do advogado José Yunes, ex-assessor especial de Michel Temer e seu amigo há mais de 50 anos, de que serviu de “mula” (receptor) ao chefe da Casa Civil, Elizeu Padilha, em pagamento de propina da Odebrecht, afastam de vez do governo o principal ministro e conselheiro do presidente.

E não apenas: respingam no próprio Temer, íntimo de ambos, que os teve e manteve no assim chamado núcleo duro palaciano. Fica, no mínimo, a suspeita de que não ignorava os fatos, que, por sinal, também o incluem nas delações de Marcelo Odebrecht.

O presidente é acusado de ter pedido e recebido R$ 10 milhões para a campanha de seu partido, o PMDB, que então presidia. O dinheiro teria sido pago em caixa dois, e parte dele teria sido destinado a Padilha, nos termos da narrativa de Yunes.

Pedilha escondidp debeixo da saia de temer jose yunes denuncia propina PMDB caixa dois PGR

Temer nega o caixa dois e garante estar tudo registrado na Justiça Eleitoral. As denúncias, óbvio, carecem de comprovação, embora Marcelo Odebrecht as sustente com convicção, não ocultando a origem ilícita do dinheiro. Podem não gerar – e não vão – providências imediatas, de ordem jurídica, mas politicamente configuram mais um abalo para o presidente e seu governo.

Se fosse apenas isso, já seria muito. Mas há mais, muito mais. A essas denúncias, somam-se as de outras empreiteiras, igualmente implicadas na Lava Jato – Queiroz Galvão, Andrade Gutierrez, OAS, Delta, UTC -, prenunciando uma quaresma mais barulhenta e predadora que o próprio carnaval. A pinguela está balançando.

Aguarda-se, na sequência imediata do feriado, a divulgação, pelo Ministério Público, dos demais nomes mencionados pelos 77 executivos da Odebrecht, já homologados pelo STF.

Não se sabe quantos são; sabe-se apenas que são muitos, quase duas centenas, a maioria gente do governo anterior e do atual, indo em cheio ao coração do Congresso.

Não por acaso, um dos temas mais ruidosos na Câmara e no Senado, no curso da semana, foi, mais uma vez, o foro privilegiado. O país quer o fim do foro; os políticos, não. O líder do governo no Senado, Romero Jucá, tentou estender o princípio de intocabilidade do presidente da República, que não responde por atos praticados fora de seu mandato, aos presidentes da Câmara e do Senado.

Perdeu. E acabou por se referir ao foro como “uma suruba”, em que ou todos dela participam ou então ninguém, deixando claro que quer a generalização, nada de “suruba selecionada”. Um momento de rara elevação verbal no Parlamento.

Em meio a tamanha algaravia, Temer viu a nomeação do novo ministro da Justiça, Osmar Serraglio (PMDB-RS), gerar atritos em sua própria base parlamentar. O deputado Fábio Ramalho (PMDB-MG), coordenador da bancada mineira, que queria no cargo alguém de seu estado, anunciou ter rompido com o governo.

Ramalho não é nenhuma sumidade – é, antes, um ente do baixo clero -, mas ocupa a 1ª vice-presidência da Câmara; é o sucessor imediato de Rodrigo Maia que, citado na delação da Odebrecht e agora também por Fernando Cavendish, da Delta, como beneficiário de propina, corre risco potencial de deixar o cargo.

Nessa hipótese, ainda vaga (mas nada é tão vago na atual conjuntura quanto o próprio governo), Temer teria um inimigo à frente da Câmara; Ramalho seria o seu Eduardo Cunha, embora sem o mesmo talento predatório deste. Mas, quando se cruza uma pinguela, o peso de uma piaba pode fazer toda a diferença.

De quebra, o governo perdeu, subitamente, um de seus quadros mais expressivos, o ministro das Relações Exteriores, José Serra, que, alegando questões de saúde, demitiu-se. Serra havia imprimido à política externa grandes transformações, a começar pelo rompimento com o bolivarismo e a abertura de novos mercados. Seu sucessor deverá ser também um tucano.

Em resumo, ao fim dos tambores de Momo, voltam a rufar os da Lava Jato, dando continuidade ao calvário da classe política.

Imagem do Dia

Plitvice Lakes National Park, Croatia. So beautiful!:
Parque Nacional dos Lagos (Croácia)

O Carnaval das palavras

Se a polêmica é com a palavra “mulata”, até dá para discutir. Alguns amigos negros e mestiços a consideram racista e pejorativa. Tim Maia a detestava, se orgulhava de ser negro e dizia que mulato era cor de mula quando foge.

Nos Estados Unidos não existe: ou é branco ou é negro. Mas se o caso for a marchinha imortal que há 85 anos é cantada e dançada com alegria por brancos, pretos e mulatos, o papo é outro.

“O teu cabelo não nega” é, antes de tudo, uma exaltação às mulheres mestiças, começando pelo título brincando com o cabelo crespo e o liso, gozando as que o alisavam a ferro quente para disfarçar a negritude. O autor gostava do cabelo crespo, é como se dissesse “não negue a raça, fique com seu cabelo como é, é dele que eu gosto”.

Na época, eram os racistas que diziam que a cor da pele era “contagiosa”, mas o autor da marchinha nega, e mais, quer o amor da mulata! Quem quer o amor de quem despreza?

É um alegre tributo à negritude e à mestiçagem de que é feita a nacionalidade. Em um contexto histórico.

“Pancadão”, nos anos 30, era gíria para mulher bonita e gostosa, e os que a inventaram, dessa cor, com esse cabelo e esse suingue, foram os portugueses e os africanos, que no final da música a disputam em “concorrência colossal”, os lusos do Vasco da Gama e os marinheiros pretos do Batalhão Naval.

“Tens um sabor bem do Brasil/Tens a alma cor de anil/Mulata, mulatinha, meu amor/Fui nomeado teu tenente interventor.”

É um deboche com a ditadura de Getúlio Vargas, que foi levado ao poder pelo golpe militar de 1930 e se tornou ditador, nomeando tenentes golpistas como interventores estaduais em substituição a quase todos os governadores.

Finalmente, a marchinha foi criada pelos compositores pernambucanos João e Raul Valença, em 1929, e Lamartine Babo a ouviu no Recife e gostou tanto que fez algumas modificações e a lançou com espetacular sucesso no carnaval de 1932, como se fosse sua. Os Irmãos Valença chiaram e partiram para a briga, e Lamartine teve que incluí-los na parceria. Para não deixar dúvidas quanto às suas intenções, os irmãos Valença eram, com todo o respeito, mulatos.

Paisagem brasileira

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Carybé

Baile dos mascarados

Dois sujeitos se esbarram em uma tradicional festa de Carnaval da cidade.

– Ei, é você!
– Hã?
– Não se lembra de mim?
– Acho que eu nunca te vi.
– Claro que lembra, faz um esforço! No ano passado a gente se encontrou aqui mesmo, neste bloco. Eu estava vestindo uma mistura de Osama bin Laden com Carmen Miranda.
– Sim, é claro! Com bananas de dinamite no meio do chapéu de frutas!
– Isso!
– Aquela fantasia era demais. Por que mudou neste ano?
– É que bebi muito na festa. Na hora de ir embora, um sujeito vestido de Saddam Hussein botafoguense me desafiou, dizendo que era mais terrorista do que eu.
– E aí?
– Aí fiz minha demonstração de homem-bomba: encharquei o chapéu de cachaça e o explodi. O personagem estava tão perfeito que, depois, todo mundo saiu a minha procura. Tive de me esconder por um bom tempo, até as coisas se acalmarem. Foi um estouro!
– Aposto que foi.
– Mas, desta vez, decidi usar algo mais simples.
– Deixa eu tentar adivinhar. Óculos redondos, bigode e barbicha, camiseta vermelha com a frase “Back in the U.S.S.R.”. Hummm… Não sei, desisto.
– John Lenin!
– Genial.
– Lembro que no ano passado você também estava vestido de maneira bem original. De Pica-Pau, né?
– Não, de Neymar.
– Desculpa, só me lembrei do penacho.
– Tudo bem.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

A conversa dos dois é brevemente interrompida por um trenzinho que passa no meio dos dois. Um clone do Sidney Magal puxa a fila com uma rosa na boca, enquanto um bigodudo vestido de Mulher-Gato sapeca beijos de batom roxo na bochecha de ambos.

– Mas e neste ano? Não se fantasiou, por quê?
– Quem disse que não me fantasiei? Repara bem.
– Tá me parecendo normal: sandália, bermuda, camiseta.
– Vim de político foragido.
– Mas claro! Como não tinha percebido? Você é mesmo a lata daquele cara que está sendo procurado pela polícia!
– Nem me diga.
– Ei, olhando bem, é você mesmo que está sendo procurado pela polícia! Tô te reconhecendo!

Nesse instante, o trenzinho passa novamente e o sujeito trata de entrar atrás da Galinha Pintadinha. Logo em seguida, vem a Cleópatra e segura em sua cintura. E a turma desaparece no meio da multidão, cantando “me dá um dinheiro aí!”.

Daniel Cariello

A morte poupou Juquinha de ver o fim do fundador da Cabrair

Em julho de 2013, uma reportagem de VEJA revelou a farra aérea que tornara ainda mais desfrutável a vida mansa de Sérgio Cabral. Para os deslocamentos entre o Rio e a casa de praia em Mangaratiba, o governador requisitava helicópteros oficiais com espaço suficiente para abrigar também a primeira-dama Adriana Ancelmo, dois filhos, duas babás e o cachorro Juquinha. Caprichando na pose de inocente injustiçado, Cabral declarou-se vítima de perseguição da imprensa. Dali a pouco, revidou um post aqui publicado, Juquinha iria protestar contra o bullying que lhe moviam os cães da vizinhança, mortos de inveja do único exemplar da espécie que passeava no helicóptero do governo todos os sábados e domingos.

A coluna errou feio, informou a subsecretaria militar da administração fluminense num relatório solicitado pela Polícia Federal: as idas e vindas de Juquinha e seus parceiros entre os muitos endereços da família na capital e a mansão no litoral não se limitaram aos fins de semana ─ e por pouco não atingiram a extraordinária marca de 1.500 voos. A Cabrair começou a operar com regularidade em 2007. Intensificou o ritmo em 2011, depois que o fundador comprou por 15 milhões de reais um portentoso Agusta igualzinho ao que lhe emprestara o empresário Eike Batista. As incursões foram reduzidas pela reportagem de VEJA, mas só cessaram de vez em abril de 2014, quando Cabral antecipou a entrega do gabinete no Palácio Guanabara ao vice Luiz Fernando Pezão.

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Entre um pouso e uma decolagem na rota Rio-Mangaratiba, o governador encontrou tempo para divertir-se nos jantares em Paris com a Turma do Guardanapo, transformar a primeira-dama numa vitrine ambulante de joalheria, bajular Lula e Dilma nas frequentes visitas presidenciais ao Rio, achacar empresários, fraudar licitações bilionárias, inaugurar obras inventadas por Eike Batista, abrilhantar comícios de delinquentes e gerenciar uma das maiores lavanderias de dinheiro sujo do mundo. Até o momento, as investigações da Operação Calicute, um dos desdobramentos da Lava Jato, descobriram 332 casos de lavagem criminosa. Com tantos afazeres, é compreensível que Cabral não tenha reservado espaço na agenda para cuidar do Rio.

Agora engaiolado em Bangu, nosso Usain Bolt da bandidagem está menos gordo e bem mais triste. “Ele sente muita falta da vida aqui fora”, confirmou um amigo depois da recente aparição de um Cabral claramente abatido. Faz sentido. A mesma síndrome de abstinência estendeu as sombras da depressão a Adriana Ancelmo, presa a poucos metros do marido. A morte poupou de tais dissabores o cachorro Juquinha, atropelado em dezembro de 2014 por um carro da família pilotado por um segurança desatento. Se continuasse vivo, o cão voador decerto acharia muito sofrido o sumiço do helicóptero (e dos donos). E estaria latindo de medo da Lava Jato.

O nome do problema do governo não é Padilha

O problema do governo tem nome e sobrenome. Nas últimas horas, políticos e jornalistas o chamam de Eliseu Padilha. Se estivessem certos, a solução seria simples. Bastariam uma esferográfica para a assinatura do presidente e uma folha para o ato de exoneração do chefe da Casa Civil. Mas estão todos enganados.

Chama-se Michel Temer o problema do governo. Ele chegou ao Planalto como solução constitucional para a autocombustão que consumiu o mandato de Dilma Rousseff. Virou um problema ao cercar-se de amigos tóxicos e subordinar sua administração à vulgaridade. Temer se absteve de perceber que o jogo político no Brasil mudou de fase.

Nesta sexta-feira, o presidente mandou sua assessoria divulgar uma nota. Nela, admitiu novamente ter pedido dinheiro à Odebrecht em 2014. Mas reiterou que “não autorizou, nem solicitou que nada fosse feito sem amparo nas regras da Lei Eleitoral.” Contabilizou o repasse da construtora ao PMDB em R$ 11,3 milhões. “Tudo declarado na prestação de contas ao Tribunal Superior Eleitoral”, enfatizou a nota. “É essa a única e exclusiva participação do presidente no episódio.”

O “episódio” que o texto do Planalto preferiu não esmiuçar envolve a Odebrecht, uma dezena de milhões reais e os dois maiores amigos do presidente da República: o ex-assessor da Presidência José Yunes e o chefe da Casa Civil Eliseu Padilha. O fato comporta pelo menos quatro versões: a de Temer, a de Yunes, a de Padilha e a versão verdadeira.

Nesse contexto, a manifestação divulgada pela assessoria presidencial apenas empurrou Temer para dentro de um Brasil alternativo. Um país fictício em que nada de reprovável aconteceu. Para que a nota oficial ficasse em pé, todos os brasileiros adultos teriam de aceitar a tese segundo a qual Temer não tem nada a explicar e que a crise que acaba de cair no seu colo está encerrada.

Nesta ficção que nenhum novelista assinaria para não passar por improvável, os brasileiros teriam de se fingir de bobos e ignorar o seguinte roteiro: o amigão Yunes recebeu em seu escritório envelope das mãos do doleiro Lúcio Funaro, um portador que o amissíssimo Padilha jura que nem conhece. No envelope que Yunes assegura ter recebido a pedido de Padilha, podia haver qualquer coisa, menos os milhões em verbas sujas que Temer renega, mas que os delatores da Odebrecht sustentam ter providenciado a seu pedido.

São tantas as confusões em que se mete o governo de Michel Temer que as coisas vão assumindo proporções inaceitáveis. Embaraços vão se transformando em hábitos. Descalabros vão virando parâmetro. De repente, nada precisa ser muito explicado. Dá-se de barato que os brasileiros se fingirão de mortos pelo bem da República.

Em nome da continuidade das reformas, ninguém perguntará: Onde Temer está com a cabeça que ainda não rompeu com Yunes, o amigo da onça? Pela estabilidade do condomínio partidário que dá suporte congressual ao governo, ninguém questionará: Afinal, Temer ainda não demitiu Padilha por que não quer ou por que não pode?

Costuma-se dizer que o brasileiro não tem memória. Michel Temer parece acreditar que os patrícios não têm mesmo é muita curiosidade.

Três astros da alegria

A lista sai no Carnaval?

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Melhor oportunidade do que o Carnaval não há para a divulgação das acusações que envolvem mais de cem parlamentares incluídos na lista da Odebrecht. Mais da metade do país nem tomaria conhecimento dos deputados e senadores citados pelos ex-diretores da empreiteira. Com Câmara e Senado fechados, a repercussão seria menor, ainda mais porque levaria meses a abertura de processos contra os acusados, no Supremo Tribunal Federal.

Sendo assim, por que a demora? Fica evidente estar havendo manobra protelatória. Por parte de quem? Não seriam os ministros da mais alta corte nacional de Justiça, apesar de alguns manifestarem cuidados diante da operação Lava Jato. O palácio do Planalto carece de meios para influir na decisão, até porque muitos ministros empenham-se em escapar dos holofotes. Os novos presidentes da Câmara e do Senado estão incluídos nas acusações e ficarão em cone de sombra.

São dessas situações inusitadas: ninguém é culpado, mas o processo não anda. Quanto mais demore, melhores condições terão os implicados na corrupção para safar-se. Estão de olho na reeleição do ano que vem. Mesmo sabendo que não receberão os fartos recursos das empreiteiras, como no passado, imaginam empurrar com a barriga as dificuldades que os tornariam inelegíveis. Acreditam ser curta a memória do eleitorado.

Brasil vive entre a euforia do mercado e a realidade de milhões de desempregados

O Brasil vive mundos paralelos quando o assunto é economia. Enquanto a fila do desemprego aumenta entre os cidadãos comuns e a paralisação de servidores levou o caos a estados como Espírito Santo, o otimismo tomou os economistas brasileiros. Apesar da profunda recessão que o país vive há dois anos – “a maior desde os anos 30”, como se repetiu exaustivamente, – a divulgação da melhora de alguns indicadores da combalida economia brasileira tem trazido entusiasmo ao que se costuma chamar de ‘mercado’. O preço de algumas commodities, como o minério de ferro, melhorou, a inflação caiu abaixo do teto da meta, e o Congresso aprovou reformas indigestas, como a do teto de gastos no final do ano. Não por acaso, a Bolsa de Valores de São Paulo valorizou mais de 14% desde o início do ano, e o dólar chegou ao patamar de 3,05 reais nesta semana, o menor desde 2015.

Até mesmo a recessão teve seu lado positivo, ao deixar ativos brasileiros mais baratos e atraentes para investidores estrangeiros, tornando a entrada de capital externo recorde no início deste ano. Contribui para a maré de otimismo a certeza de que a Reforma da Previdência vai avançar até o meio do ano. Assim, nas tesourarias dos bancos vê-se uma indisfarçável onda de euforia nos últimos dias. “Os investidores estão confiantes na aprovação das medidas do ajuste e têm convicção que o juros no Brasil vão continuar caindo já que a inflação está em queda livre”, explica Pablo Stipanicic Spyer, diretor de operações da Mirae Asset. Para ele, “o pior ficou para trás”.

Mas se o futuro traz esperanças ao sistema financeiro, o presente de milhões de brasileiros mostra-se bem diferente. O desemprego, que hoje afeta 12,3 milhões de brasileiros e deve continuar aumentando neste ano, pode ser medido no número de desistências de planos de saúde. Só em janeiro, 200.000 pessoas cancelaram seus planos, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Desde 2015, são 2,5 milhões de contratos a menos, de acordo com a agência.

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Assim, cada boa notícia celebrada entre os investidores reflete uma realidade distinta para a população. É o caso da inflação em queda. Nos 12 meses até janeiro, o IPCA registrou uma alta de 5,35%, sendo que, no ano passado, esse número passava de dois dígitos. A boa nova estimulou o Banco Central a reduzir pela quarta vez seguida a taxa de juros nesta quarta-feira, de 13% para 12,25%, o menor patamar em dois anos. A queda, entretanto, mostra que a população está cortando gastos em casa, e por isso mesmo deixando de consumir. De acordo com a pesquisa da "Pulso Brasil", divulgada nesta quarta-feira pela Fiesp, 31% das famílias do país se consideram tão endividadas no início deste ano quanto estavam no mesmo período do ano passado.

Com o orçamento apertado, muitas famílias veem-se obrigadas a promover seus ajustes orçamentários. Maria Helena de Araújo, professora de uma escola estadual da zona oeste de São Paulo, conta que o número de alunos vindos de instituições privadas aumentou no início deste ano. "Tenho algumas turmas em que 50% dos alunos vieram das particulares. Nunca tinha visto uma proporção assim. Claro que é um efeito dessa crise que continua muito forte", diz.