domingo, 12 de fevereiro de 2017

Uma leitura das ruas

Num mundo que enlouquece celeremente, o Brasil deu sua cota na semana passada com a greve dos PMs no Espírito Santo: mortes, saques, assassinatos e assaltos dominaram as grandes cidades capixabas. O medo se ampliou com a possibilidade de outras PMs, notadamente Minas e Rio, seguirem o mesmo caminho. No auge da crise, o governo como sempre se omite, e o próprio ministro da Justiça pede demissão para se dedicar à sabatina para ocupar o STF.

A fórmula de sempre é mandar o Exército, com sua grande força psicológica, baseada na simpatia popular pela instituição. Mais psicológica do que real, uma vez que há 2.000 homens para cobrir a ausência dos 11 mil PMs em greve. Por trás do drama cotidiano, uma grande máquina, açucarada e viscosa, move-se não apenas para neutralizar a Lava-Jato, mas para garantir o poderoso esquema de corrupção que une políticos e empresários no Brasil. O ministro indicado para o STF escreveu uma tese dizendo que presidentes não deveriam escolher seus auxiliares porque passariam a ficar dependentes desse favor.

Ao aceitar o cargo, Moraes é mais uma demonstração de que na prática a teoria é outra. Sua tese acadêmica é correta. É tão simples que a ouço nas próprias conversas de rua: “E o Temer, hein? Indicou o careca”. “Para quê?” “Hahaha”


O interessante é que muitas pessoas inteligentes passaram a defender a escolha do ministro da Justiça, argumentando que houve outros casos assim. É verdade. Mas nossa experiência de redemocratização resultou numa ruína. Apoiar-se nas mesmas práticas envelhecidas é apenas insistir num modelo caduco. Um novo ministro teria de expressar as aspirações de agora: qualidade intelectual e independência. A máquina se move com muitos braços. No Supremo, Gilmar Mendes quer rever as prisões da Lava-Jato. Ele tem condições para fazer isso, uma vez que, como presidente do CNJ, sempre se bateu para alterar o quadro das prisões preventivas, horizontalmente, entre os presos comuns. Mas sua fala se dá num momento em que alguns críticos da Lava-Jato avançam inclusive com a ideia da libertação de Eduardo Cunha. Sem questionar intenções, supondo sempre que as pessoas querem interpretar corretamente a lei, considero uma posição perigosa.

Eduardo Cunha é mestre em eliminar provas e intimidar testemunhas. Fez tudo para esconder os dados de computadores da Câmara que o incriminavam. Seus prepostos ameaçavam a família de testemunhas, como o fizeram com Alberto Youssef, que depunha na Câmara, nessa condição. A máquina se move até em espaços solenes, como o de um funeral. “Como deter a Lava-Jato, como colocar o Supremo contra ela?”, sussurram vozes que deveriam ser de dor e saudade. Para o mundo político, governo inclusive, toda essa tragédia que se desenrola nas ruas brasileiras é apenas um cenário distante. Todos se empenham em garantir sua zona de conforto, a possibilidade de continuar enriquecendo à custa do povo brasileiro. A única mudança que alguns parecem admitir é o ocaso do PT, considerado um rato magro, que ao ganhar o governo foi vítima de indigestão por sua fome acumulada. A tentativa de restaurar o esquema de sempre, e seguir a vidinha política do Congresso como se não estivéssemos numa profunda crise, é comovente. Digo isso porque eles parecem não compreender a gravidade do momento. Assassinatos, saques, cabeças decepadas, tudo isso se transforma num imenso mosaico policial, capítulo à parte em que a sucessão das atrocidades acaba suavizando-as. Em tese, não é nada confortável em ser governo num momento tão tenso no qual a corrupção é detestada.

O Rio está vivendo este drama com intensidade. É governado por um remanescente do grupo que assaltou e quebrou o estado, sem condições políticas de tirá-lo da crise. Mas não larga o osso. Existe uma dificuldade muito grande em perceber que algo acabou, que a sociedade não aceita mais esses padrões. Todo esse gigantesco esforço para retroceder o Brasil ao que havia antes da Lava-Jato é patético. Se olhassem atentamente para o que acontece no Espírito Santo, veriam que estamos no fio da navalha, habitando uma tênue fronteira com a barbárie. Quanto mais tempo perderem maquinando tramas para fugir da Justiça, mais a situação se agrava nas ruas. É urgente adequar as práticas às novas aspirações da sociedade brasileira. Temer deu um pontapé nelas ao nomear Moreira Franco ministro para garantir o foro privilegiado. E com a outra perna chutou a nomeação do próprio ministro da Justiça para o STF. Tantas historinhas na imprensa, mas o que fica para mim é que foram movidos pelo medo da Lava-Jato. Só isso justificaria o desgaste da nomeação. Ou será que vou acreditar que Temer, Padilha e Franco acordam e dizem: um belo dia para levar pancadas; vamos dar o foro privilegiado para o Moreira.

Eles sabiam que iam apanhar e o fizeram com um objetivo claro de autodefesa. Ou desvio de finalidade, visto por um ângulo legal. A tentativa de segurar o país num esquema do passado pode nos custar muito caro. Sobretudo para quem manobra nessa direção. Meu humilde conselho da planície para o planalto: é melhor aceitar a justiça do Estado do que enfrentar a justiça das ruas. E qualquer tentativa de neutralizar a justiça significa um perigo maior de cair nas mãos de pessoas enfurecidas.

Fernando Gabeira

No navio de Temer, mais suspense que no Henrietta

Júlio Verne poderia ter dado um pouco mais de suspense e de emoção à corrida final da Volta ao Mundo em 80 Dias se o herói Phileas Fogg tivesse um ataque de insensatez ou, pelo menos, fizesse algumas besteiras no comando do Henrietta. Mas só houve ousadia, nenhuma besteira. Ele fez queimar na fornalha do barco os mastros, pedaços de camarotes e mais um monte de madeira para ganhar velocidade até o porto de Liverpool. Reduzido quase só ao casco e ao motor, o navio chegou a tempo e foi possível cumprir o prazo da aposta. Mas a história poderia ser mais acidentada. E se Phileas Fogg, além de ter comprado a tripulação, tivesse distribuído responsabilidades de forma imprudente e assumido o risco de um naufrágio a algumas centenas de milhas da costa britânica?

O Henrietta alcançou o porto, devastado, mas com o casco inteiro, e a aventura foi um sucesso. Porém os leitores de Júlio Verne, assim como os expectadores do filme de 1956, premiado com o Oscar, tiveram menos emoções que os brasileiros de hoje, incapazes de dizer como o governo e o País chegarão a 2018, depois da complicada travessia iniciada no meio de 2016. Os 12 meses finais do prazo, se forem alcançados, poderão ser especialmente perigosos, por causa das eleições.

Phileas Fogg queimou os mastros para ganhar
tempo. Temer se arrisca a destruir o barco

O prazo atribuído ao presidente Michel Temer é na prática tão curto quanto os 80 dias fixados na aposta sobre a volta ao mundo. Temer só teve poderes para de fato governar depois do afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff. Escolheu gente com bom currículo para cuidar do conserto das finanças públicas. Mas competência no Ministério da Fazenda e no Banco Central poderiam ser insuficientes. O tempo muito curto e o desafio complexo requeriam habilidade política, astúcia, firmeza e ousadia comparáveis, talvez, às de Phileas Fogg.

Alguma esperteza foi demonstrada, tanto nas barganhas iniciais com a base aliada quanto no encaminhamento de projetos politicamente difíceis, como o do teto de gastos e o da reforma da Previdência. Alguns analistas têm apostado nessa esperteza como garantia de sucesso até o fim do mandato. Pode ser uma aposta muito otimista.

O presidente falhou, para dizer algo suave, nas escolhas da maior parte de sua equipe. Os currículos de vários ministros eram inexpressivos. Os de outros eram preocupantes. Alguns escolhidos caíram em pouco tempo. Houve gente suspeita de envolvimento nos crimes investigados pelo pessoal da Operação Lava Jato. Um secretário afundou, de forma grotesca, depois de uma conversa inoportuna sobre um apartamento em Salvador. Pode-se discutir se essa figura pecou por falta de decoro ou por ingenuidade, mas nenhum dos dois atributos combinava com suas funções administrativas e políticas. Outros auxiliares prejudicaram o governo falando demais e na hora errada. Um dos trapalhões notabilizou-se por suas atitudes infelizes durante a crise nos presídios. Já havia cometido erros indisfarçáveis. Acabou premiado com uma indicação para o Supremo Tribunal Federal (STF).

O próprio Temer tropeçou, bisonhamente, ao classificar a matança no presídio de Manaus como um acidente trágico. Tentou-se consertar a bobagem, depois, caçando no dicionário os sentidos da palavra acidente. Um de seus auxiliares, o secretário nacional da Juventude, condenou as críticas à matança. “Tinha era que matar mais, tinha que fazer uma chacina por semana”, declarou o moço. Sua demissão foi inevitável. O escândalo impediu o presidente de ser tão tolerante quanto em outros casos.

Temer extinguiu ministérios, como o da Cultura, em nome de um programa de reorganização do governo, mas acabou recuando, depois da reação de grupos interessados. Poderia ter resistido a essa e a outras pressões, mas foi, aparentemente, incapaz de avaliar os lucros e perdas. Os lucros teriam sido certamente consideráveis se houvesse alguma demonstração de firmeza. O presidente exibiu a mesma pobreza de avaliação ao cancelar a viagem a Davos, deixando de comparecer à reunião do Fórum Econômico Mundial. A reunião, segundo um de seus auxiliares, seria esvaziada pela posse, na sexta-feira da mesma semana, do presidente Donald Trump.

O encontro de Davos foi aberto, na primeira sessão plenária, pelo presidente Xi Jinping, governante da segunda maior economia do mundo. Seus assessores deviam ter informações diferentes daquelas obtidas pelos auxiliares de Temer. A primeira-ministra Theresa May, do Reino Unido, também apareceu, acompanhada de seu ministro do Tesouro, para falar a respeito do Brexit. O presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, já premiado com o Nobel da Paz, apareceu para receber mais uma distinção. Muitos outros políticos, como sempre, bateram ponto em Davos em busca de espaço político e de investimentos. Trump, ainda sem ocupar oficialmente o governo americano, mandou um dirigente da equipe de transição para defender sua imagem num fórum globalizado.

Como Phileas Fogg, Temer tem queimado mastros e pedaços importantes do navio, mas, ao contrário do inglês, tem tornado mais difícil e mais incerta a travessia. Sua última façanha foi atribuir o status de ministro ao secretário Moreira Franco, num gesto comparado à tentativa da presidente Dilma Rousseff de garantir foro especial a seu amigo Lula.

Certa ou errada, a comparação seria inevitável e Temer acabou sendo convocado para se explicar ao ministro Celso de Mello, do STF. Enquanto isso, no Senado, aliados de Temer, também na mira da Lava Jato, ocupavam a presidência e várias cadeiras da Comissão de Constituição e Justiça, encarregada de sabatinar o novo candidato a juiz do STF, o ex-ministro da Justiça Alexandre de Moraes. A menos de dois anos do fim da travessia, a queima continua, mas sem alimentar a caldeira do navio. Em matéria de suspense, Júlio Verne era um amador.

Imagem do Dia

Harbour of Kowloon, Hong Kong, China, 1952 © Werner Bischof / Magnum Photos:
Kowloon, Hong Kong, foto de Fan Ho (1952) 

O complô

A morte de Teori Zavascki abalou a solidez da Lava Jato, e a substituição da cadeira no STF vem ocorrendo exatamente no pior sentido possível, convocando-se o agora ministro licenciado da Justiça. Por sua vez, o cargo de ministro está próximo de ser ocupado com mais uma indicação que pode mudar o rumo da história.

O grupo dos réus e dos investigados está unido neste momento, mais do que por amizade, para escapar das penas que já se abateram sobre ex-colegas e ex-intocáveis. Outros, para salvarem a própria pele, depois de tentativas anteriores de anistias e arquivamentos terem fracassado. Nunca se sentiu uma união tão sólida e concatenada contra a Lava Jato.

Na era Dilma, perdeu-se o controle por parte do Planalto das então submissas polícias e Procuradoria da República. A metralhadora acabou sendo conquistada pelas instituições do Judiciário, voltando-se contra os “antigos donos”, que nunca pensaram ou se precaveram de autonomia e alinhamento das instituições de controle.



A luta para desarmar a Polícia Federal e o Ministério Público e embrulhar o STF é daquelas que ocorrem em silêncio, dissimuladas, minando e desarticulando os centros nevrálgicos que deixam de funcionar corretamente.

A PF se desvencilhou no primeiro governo Lula do controle da Presidência da República quando agiu sob o comando de Márcio Thomaz Bastos nos pastos políticos, mais do que na repressão aos crimes que estão sob sua tradicional jurisdição. Aprendeu e ganhou autonomia, louvada e incensada pelos mandatários. Daí em diante, o processo se tornou irreversível. O tiro saiu pela culatra.

Com a saída de Bastos, que deixou centenas de milhares de pessoas grampeadas a qualquer pretexto, acabou se expondo o sistema da corrupção de todos os lados. Perdeu-se a capacidade de separar os amigos dos inimigos, como no caso do caseiro que denunciou Antonio Palocci. O fogo amigo passou a ser considerado “autonomia”. Sem querer, abriu as portas para que se fortalecesse a saga investigatória.

Nesse contexto, desencadeou-se uma guerra “fria” de bastidores entre partidos e polícias “partidárias”. Alguns Estados montaram seu sistema guardião para ter munição para ataques aos inimigos.

Não é por acaso que a queda de sete ministros do governo Dilma ocorreu nos primeiros seis meses de 2011 – início do mandato dela. As vítimas apareciam flagradas por arapongas (que trabalhavam ao soldo de alguém), expostas na mídia por meio de dossiês distribuídos pelo contraventor Carlinhos Cachoeira à mídia.

Os mensalões tomaram a luz e colocaram em maus lençóis todos os partidos mais poderosos. A corrupção praticada em ampla escala transformou o sistema numa cleptocracia de gigantescas “operações estruturadas” e propinodutos.

Entre gregos e troianos da política nacional, os mercadores persas se colocaram a serviço de todos, transformando-se nos maiores beneficiários da corrupção. Apenas Odebrecht declarou ter pagado R$ 2,6 bilhões em propinas, isso na primeira rodada de delações.

A morte de Zavascki, a queda da principal peça, fez com que a realidade do tabuleiro mudasse. Novos atores entram em cena para colocar em xeque a Lava Jato. Eunício Oliveira no Senado, Rodrigo Maia na Câmara, Alexandre de Moraes no STF, Edison Lobão na CCJ do Senado e novos diretores da Polícia Federal alteram o equilíbrio de força.

E não é por acaso que se fortalece a tese da revelação em bloco único das delações. Como se diz na Itália, “Mal comune, mezzo gaudio”, ou o mal que atinge todos é uma meia alegria. Com isso, uma caterva de acusados pulveriza a indignação, generaliza, dilui, impossibilita descrever e analisar tantos crimes.

Não paira dúvida de que a Lava Jato continua de pé, mas o ambiente em que tenta sobreviver e avançar se encontra minado para que, a cada passo, esbarre num problema sério. Mais grave ainda é verificar que as forças contrárias se uniram para salvar a própria pele, dispostas a arriscar tudo.

Vive-se um momento decisivo na dura guerra contra a corrupção. A continuação, cada vez mais, liga-se aos movimentos populares de apoio à Lava Jato. E a certeza é que, quanto mais for profunda a limpeza, maior e mais acelerado será o crescimento.

Por isso, o que se espera é que as ruas respondam à altura da gravidade do momento.

A verdade crua dos fatos

Há não muito tempo se dizia assim. Porque havia fatos. E havia verdade. Aliás, os fatos eram, por conta própria, verdadeiros ou falsos. O nosso trabalho era retirar as cascas, as capas, as crostas, e deixar a verdade nua em plena praça. Ela não era a burca dos fatos, para esconder sua nudez. Eles gostavam de andar sem roupa. Era quando podiam mostrar a polpa. Escorrer sumos. Dizia-se: serem objetivos. Não se diz mais. Falar da objetividade dos fatos, hoje, pode indicar uma de três coisas: despreparo filosófico (ignorância); crença na consistência do mundo (ingenuidade); atraso no acompanhamento da marcha da ciência e da tecnologia (desatualização). Porque os fatos (dizem) perderam objetividade e relevância.

Interpretações, pontos de vista, perspectivas, versões, isso sim. Verdade é isso. O diabo é que (dizem também) a verdade acabou. Então, nem o mel nem a cabaça.

Já imaginou que o  grumpy cat na verdade pode ser o Garfield ? Ou que o Alien pode ser o E.T? Ou mesmo que a Elza pode ser o Sub-Zero loiro? Por tudo isso voc:
Pontos de vista são importantes, quem negaria? Vamos por uma trilha na montanha e vemos, aqui, isso; mais adiante, aquilo. Depois nos encontramos com os companheiros e dizemos: tem lagoa aí embaixo; não, tem um raso de pedras secas; nada, é tudo mata virgem. Esquecemos de explicar onde estávamos quando olhamos. Estávamos num ponto. De lá tivemos uma vista. Outros, de outros pontos, viram outras imagens. E estão todos certos. A verdade daquele lugar é a totalidade dos pontos de vista. Se isso não for reconhecido vão todos discutir apenas as suas próprias visões. E que vença a melhor. A mais convincente. E a paisagem, coitada, cheia das riquezas que cada ponto de vista percebeu, fica lá, abandonada. Perdeu objetividade. É como se não importasse. A verdade é que não damos mais conta dela.

Toda realidade é hipercomplexa. Tem lisuras e asperezas, é luminosa e opaca. Cada coisa é muitas. A graça está nisso. É por isso também que nos enganamos tanto: a multiplicidade do real nos enreda, ficamos mareados. E aí, para não nos perdermos de vez, simplificamos. Escolhemos um aspecto, concentramo-nos nele, descrevemos, relacionamos, interpretamos. E tudo isso é muito bom. Só não podemos é, depois, nos esquecer de todas as complexidades que precisamos deixar de lado. É não voltar à coisa concreta, às suas boas multiplicidades. Ficarmos simplistas. Sabendo tudo de um pedacinho de nada da realidade complexa. Mas é isso que andamos fazendo. Há muito tempo.

Mas lá um dia o mundo se aborrece. Nossas simplificações intelectuais deixam de ser relevantes. Ele volta a nos impor sua natureza complexa e contraditória, objetiva, que um dia, há muito tempo, já fez a nossa alegria de pensar. Entramos em pânico. E fazemos como o homem que pegou a mulher prevaricando no sofá: tiramos o sofá da sala. Entrincheiramo-nos nas nossas brilhantes abstrações. E nos dizemos, para nos tranquilizarmos: “Qual objetividade, qual nada! Da verdade dos fatos só Deus, olhando totalmente de fora, poderia saber. E Deus (Nietzsche falou) morreu. Fatos, fatos mesmo, de fato, à vera, não existem, pelo menos não para nós. Esqueçam. Estamos pós-verdade-pós-fatos”. — Isso ocorre sobretudo nas ciências humanas, na filosofia. E é triste. Não tem mais mundo aí.

Há outro modo de torcer os fatos, praticado mais pelas ciências “duras” e experimentais: a observação “isenta”. Existe por exemplo uma disciplina chamada neuroteologia. Faz experimentos assim: pluga-se o cérebro de uma pessoa; quando certas conexões neuronais acontecem, a pessoa entra em um estado místico; ocorre, naquele cérebro, o que antigamente se chamava fé. Como eles sabem que a ordem dos acontecimentos é essa? Porque as conexões neuronais são observáveis. Há uma região do cérebro que se acende. Enquanto que a fé, resultado dessas conexões, é nebulosa e complexa, cheia de sinuosidades e recônditos. Não pode ser conhecida como um fato. Mas, e se for o contrário? Se, quando uma pessoa alcança um estado místico, o cérebro ativa certa região sua para dar sustentação a essa experiência não cerebral? Se esse, justamente, for o fato? Ah, não... Aí não estamos no campo da ciência. Não podemos medir. Não há inteligência para dar conta de uma coisa dessas. A fé não é um fato. — É o que, então? — Não sabemos. E diante do que não pode ser dito deve-se calar. (Wittgenstein disse. Muita gente acreditou.)

E ficamos assim, entre os modelos mentais que fabricamos, porque não acreditamos em “fatos externos”, e o silêncio do vasto mundo que a ciência não sabe observar. Jogamos o mundo fora! E entramos na ciranda das opiniões. O modelo mais recente delas chama-se “fatos alternativos”. Ainda não se generalizou. Mas já tem adeptos nos lugares mais altos do poder. Daí para se tornar lei e nos impor obrigações é um passo.

Ora, “fatos alternativos” é o mesmo que “mentira deslavada”. Está entrando na moda. Preciso dizer mais?

Marcio Tavares D'amaral

A Lava Jato como 'soft power'

Nesta semana, numa roda social em Nova York, o jornalista Charlie Rose, sujeito dos mais bem informados do mundo, batia papo com um grupo de brasileiros.

Rose, âncora do melhor programa de entrevistas da TV norte-americana, queria saber: “quando o país de vocês vai levantar-se novamente”?

Há sete anos, o entrevistador recebia em seu programa um símbolo da ‘Brasilmania”, à época disseminada por toda parte —Eike Batista.

Hoje, Rose seguramente lamenta que o soberano do “Império X” esteja na cadeia. Eike era visto por tantos na elite global como símbolo da arremetida brasileira. Um copiloto do Cristo Redentor decolando do Corcovado rumo à constelação das grandes potências, conforme a famosa capa de “The Economist”.

Eike está na prisão. E o Brasil, em círculos acadêmicos e empresarias mundo afora, vem tendo seu status de “país emergente” severamente questionado.



Há muitas formas de metrificar o declínio brasileiro. Temos nos últimos três anos a pior performance dentre as economias do G20. Não existe um “modelo” de crescimento brasileiro com a garantia de inclusão social que possa referenciar outras nações.

A combinação de populismo tarifário, renascimento da política de substituição de importações, desonerações tributárias e gigantismo no gasto público precipitou uma tragédia da qual países querem distância. Exceção a isso é a Trumponomics, que mantém parentesco de primeiro grau com nossa “Nova Matriz Econômica”.

Na segurança pública, não nos legitimamos para concretizar ambições maiores no campo da segurança coletiva. Os mais de 50 mil homicídios por ano ultrapassam o número de óbitos em conflitos na África e no Oriente Médio.

O alarmante nível de violência em centros urbanos como Rio de Janeiro e Vitória e o horror nos presídios brasileiros não credenciam o país, por exemplo, a assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, tradicional bandeira de nossa politica externa.

É claro que, na América Latina e na África, programas de cooperação técnica ajudam a projetar influência. Contudo, é o peso relativo do Brasil, e não o sucesso de políticas públicas, que continua a sustentar o desejo de fortalecer laços com o país.

Mesmo iniciativas como o Bolsa Família, cujo modelo se pensou “exportável” para países de renda baixa, tem sua viabilidade e atração limitadas num contexto em que a economia não cresce.

Nos últimos meses, muitos argumentam que o pior já passou. Provavelmente é verdade.

Na macroeconomia, o país parou de piorar. A inflação cai. Petrobras, BNDES e Eletrobras estão bem administradas. Algumas reformas estruturais avançam. O terceiro-mundismo na diplomacia ficou para trás.

É certo que boa gestão monetária, fiscal e governança aprimorada nas estatais ajuda na credibilidade do país. Da mesma forma, uma politica externa que não veja, no plano global, a divisão “Norte/Sul” como pertencente à mesma lógica do maniqueísta discurso interno do “nós/eles” habilita o país a parcerias menos ideologicamente orientadas.

Mas isso tudo não é mais que fazer a obrigação. Boa governança e diplomacia pragmática são pré-condições, não diferenciais.

É como se subdesempenho econômico, arquitetura de corrupção sistêmica e desencanto com a política partidária tivessem subtraído do pais seu acervo de “casos de sucesso”. Por essa ótica, o Brasil oferece pouco do que se orgulhar, muito a se envergonhar.

Assim, no campo das relações internacionais, o país supostamente encontra-se exaurido no estoque de “soft power” —o “poder suave”.

O criador desse conceito, Joseph Nye, cientista político de Harvard, define-o como “a capacidade de um país influenciar e persuadir por meio do poder de inspiração e atração, em contraposição ao poder militar ou de coerção (‘hard power’, ou poder ‘duro’)”.

Dentre atributos geradores de poder suave, Nye identifica a admiração que se tem pela cultura ou língua de um país, mas também seus valores, instituições e a maneira pela qual tal nação busca resolver seus próprios problemas.

Se é assim, em meio ao que já chamei nesta coluna de “eclipse global do Brasil”, o “soft power” brasileiro está se projetando graças a uma dinâmica incidental: a Operação Lava Jato.

Nesta semana, em debates na Universidade Columbia e na New School, em Nova York, a grande maioria dos acadêmicos, formadores de opinião e tomadores de decisão no campo econômico demonstrou entendimento de que a Lava Jato é mais do que motivo de orgulho para os brasileiros. É importante ferramenta para o Brasil nivelar sua capacidade de competir internacionalmente.

Parece expandir-se a percepção, manifestada pioneiramente pelo economista de Harvard, Dani Rodrik, há um ano e meio, de que o Brasil se encontra subestimado perante agentes econômicos e a opinião pública mundial. Ele saudou, num debate público, como promotores e juízes estão combatendo a corrupção no marco da lei, com maturidade política e sem paixões partidárias.

Se este é o caso, então o Brasil não está destinado, como enfatizou o juiz Sérgio Moro na palestra em Columbia, a perenemente sucumbir como vítima indefesa à corrupção. E, tampouco, deve-se entender esse mal como uma espécie de “doença tropical”.

Bem ao contrário, o movimento de combate à corrupção no Brasil pode servir como modelo de mudança de paradigma no âmbito da economia política mesmo de nações industriais mais avançadas.

É bem provável que, dada a sua escala e múltiplas frentes, a operação cometa erros. No entanto, os males que a Lava Jato causa são menores que os males que ela cura.

Apenas o êxito da Operação não basta para responder à pergunta de Charlie Rose sobre quando o Brasil se reerguerá. Além de boa gestão, o país precisa de estratégia para inserir-se competitivamente no turbulento mundo contemporâneo.

Ainda assim, o Brasil sinaliza que, quando o assunto é corrupção, muitas instituições, com apoio da maioria de seus cidadãos, estão fazendo a lição de casa.

Isso inspira, e portanto influencia, outros países. Liderar pelo exemplo —eis a essência do “soft power”.

Paisagem brasileira

1
Ilha do Araújo, Paraty (RJ)

Suspeita e culpa

Todos os suspeitos têm de ser investigados, mas nem todo inquérito transforma o investigado em réu. Essa sequência, embora simples, tem sido perigosamente confundida, seja por aflição, ignorância ou má-fé.

Políticos acusados usam a posição de investigados para se eximir de qualquer culpa. Promotores e desafetos dos políticos sob suspeição utilizam o mesmo princípio para condená-los. Partidários de um lado e de outro neste país dividido fazem igual.

No meio dessa balbúrdia, o distinto público não quer nem mesmo olhar para o cesto, quanto mais enxergar as poucas maçãs que não estão podres ou severamente bichadas.

Animado pelo sucesso da Lava-Jato, que tem conseguido investigar, condenar e prender poderosos, o país assiste a uma histeria por punições, com ou sem culpa provada. No tribunal popular condena-se o suspeito citado em uma delação antes do início das investigações, e, portanto, antes mesmo de o delatado virar réu.

Na primeira instância, os processos correm com celeridade. E não só na Curitiba de Sérgio Moro, mas também no Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal. No STF, o ritmo se difere. Nem sempre, como apressados se arvoram a dizer, por culpa do Supremo, mas do próprio ritmo das investigações.

Os procedimentos, em qualquer instância, têm um extenso caminho após as investigações policiais. No caso dos políticos com mandato, que têm privilégio de foro, o Ministério Público Federal formula a denúncia e o STF autoriza, ou não, a investigação. Só aí o processo começa a ser montado, mas ainda sem que o suspeito seja considerado réu. Se existirem provas suficientes contra aquele denunciado, o MPF envia a peça novamente ao Supremo para que o investigado seja indiciado.

Foi o que aconteceu com Renan Calheiros (PMDB-AL) e Gleisi Hoffmann (PT-PR), que, de investigados, tornaram-se réus em ações no STF. Com Humberto Costa (PT-PE) deu-se o contrário. Investigado, ele foi inocentado por falta de provas.

Ainda que dezenas de indícios apontem culpas de outros senadores – alguns aparentemente mais do que enrolados em práticas ilícitas –, Renan e Gleisi são os únicos réus de fato com assento, e na suplência, na nova composição da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).

Quer o público goste ou não, os demais integrantes da CCJ fervem em outro caldeirão, ainda que malcheiroso. Por mais que se suspeite que não sejam santos, não se pode condená-los por ditos de um ou outro delator, indícios, antipatias.

O presidente da Comissão, Edison Lobão (PMDB-MA), Jader Barbalho (PMDB-PA), Lindbergh Farias (PT-RJ) e Romero Jucá (PMDB-RR) estão entre os investigados; Benedito Lira (PP-AL) e Fernando Collor (PTC-AL) foram denunciados. Podem causar arrepios, mas ainda não são réus.

Eduardo Braga (PMDB-AM), relator da indicação de Alexandre Moraes para o Supremo, e Aécio Neves (PSDB-MG) foram citados em delações, mas nem mesmo tiveram pedidos de inquérito protocolados no STF. Antonio Anastasia (PSDB-MG), vice-presidente da CCJ, foi investigado e teve seu processo arquivado, não chegando a ser denunciado. Outros 17 membros titulares da CCJ não constam de investigações.

Quase 200 dos 513 deputados federais e 32 dos 81 senadores são alvos de investigações. É muito, demais. Vários dos inquéritos abertos se perderam pelo prazo, contam-se nos dedos os que foram concluídos e que tiveram réus condenados.

Um defeito escancarado do sistema de privilégio legal.

Sem foro especial, não haveria Dilma Rousseff tentando aliviar o dorso de Lula da Silva nem Michel Temer nomeando Moreira Franco. Dois casos deploráveis, ainda que em situações diferentes, de ministros de ocasião ungidos para colher regalias que os demais brasileiros não têm.

Todos os suspeitos têm de ser investigados, mas nem todo inquérito transforma o investigado em réu. E assim como ninguém deveria ser condenado a priori, é inadmissível a existência de réu de luxo.

Copo meio cheio, meio vazio

Alguém já disse que o Brasil é o país do oito ou oitenta. Para nós, passar do pessimismo ao otimismo e vice-versa é como trocar de camisa. Tudo no vapt-vupt, como um pêndulo acelerado. É bem isso o que acontece em nossos debates sobre as instituições políticas. Um dia afirmamos peremptoriamente que nunca superamos o estágio das capitanias hereditárias, tempo de Sarney e Renan Calheiros. No dia seguinte nos ombreamos com as democracias mais avançadas, temos o melhor sistema político do mundo, os melhores partidos, lideranças admiráveis.

Resultado de imagem para brasil bipolar charge

Em certos momentos, somos bipolares. Sustentamos avaliações opostas ao mesmo tempo, como se fosse a coisa mais natural do mundo. A presente conjuntura é desse tipo, e, convenhamos, a bipolaridade faz pleno sentido. No polo positivo, o governo Temer está conseguindo pôr alguma ordem na casa. Aproveitando-se da tremedeira que tomou conta do Congresso Nacional, vai aos poucos consertando o estrago deixado pelo populismo de Lula e Dilma Rousseff. Aprovou uma medida importante, a PEC do Teto de gastos, e está para sancionar a reforma do ensino médio – reforma tímida, mas melhor que nada. No polo negativo, carnificinas nos presídios, greve da Polícia Militar e desordem no Espírito Santo, febre amarela batendo às nossas portas. Sem esquecer a dengue, a chikungunya e a zika.

Voltemos, porém, à questão das instituições. À parte a avaliação folclórica que nos remete de volta às capitanias hereditárias, a maioria das (vá lá) “elites” brasileiras tem uma visão razoavelmente otimista. Considera que avançamos bastante na construção de uma democracia representativa. Eu compartilho essa opinião, e vou mais longe. Ao contrário do que às vezes se afirma, nossa democracia não é “jovem”. Não nasceu anteontem e da noite para o dia, depois dos governos militares. Iniciada ao tempo da Independência, ela aos poucos se firmou. Nessa acepção histórica ampla, faz sentido afirmar que temos instituições políticas bastante robustas. Mas dizer que são robustas não significa que estejam totalmente consolidadas, a salvo de retrocessos ou rupturas. Se até os americanos vivem hoje um pressentimento de crise institucional, quem em sã consciência dirá que o desenvolvimento democrático brasileiro é irreversível?

Entendamo-nos quanto à ideia de instituição. Numa democracia institucionalmente forte, Lula, João Santana e meia dúzia de empreiteiras não seriam capazes de provocar um retrocesso como o iniciado em 2010, quando puseram a senhora Dilma Rousseff na Presidência da República. Onde há instituições de verdade, não há como restringir e falsificar naquele grau o processo sucessório. Considerem-se os partidos políticos. Um partido só se qualifica como instituição na medida em que consegue se contrapor aos grupos de interesse, sobrepondo-se a eles e impedindo-os de impor seus particularismos ao conjunto da sociedade. O partido-instituição existe para frear tais particularismos, submetendo-os ao crivo de critérios mais abrangentes. Mas no Brasil de hoje, como todo mundo sabe, uma única empreiteira botou no bolso quase todo o sistema partidário, a começar pelo outrora orgulhoso PT e pelo ainda poderoso PMDB.

E o avanço do crime organizado, o caos que ora se observa no Espírito Santo, as epidemias, o que indicam, afinal, senão a declinante capacidade do Estado de cumprir algumas de suas funções precípuas? O que, senão um grave decréscimo na “estatalidade” (stateness) de nossa estrutura de governo?

Os mais otimistas dirão que tudo se resolverá logo que implantarmos uma boa reforma política. Mas uma “boa reforma política” o que é, exatamente? Não estaremos a perseguir uma miragem?

Por definição, instituições são estruturas estáveis. Organizações que mudam a toda hora não desenvolvem uma identidade própria, a ideia de uma missão que lhe é inerente, objetivos e um modus faciendi específicos. Visto por esse ângulo, o problema com o Estado brasileiro é o emaranhado de compromissos corporativistas que lhe servem de base. É uma classe política que parece ter perdido por completo a ideia da política como uma vocação nobre. Sua estabilidade é, pois, inercial, conservadora no mau sentido do termo. Uma estabilidade quase irreformável.

Esta hipótese, se for correta, tem uma consequência importante. Significa que o Brasil dificilmente se beneficiará de um empuxo, uma inflexão política mais forte, que o liberte da chamada “armadilha da renda média”. Supondo um crescimento anual médio do PIB de 3%, levaremos uma geração inteira para alcançar os países mais pobres da Europa – Grécia e Portugal. E podemos dar de barato que lá chegaremos com bolsões de pobreza e desigualdades de renda muito piores do que os prevalecentes em tais países.

Os três países mais importantes entre os que se industrializaram tardiamente se beneficiaram de fortes empuxos políticos. Na Alemanha, o empuxo da unificação e da vitória militar sobre a França, em 1870-1871. Nos Estados Unidos, a vitória do Norte contra o Sul na guerra civil de 1861-1865, a ocupação do Oeste e uma reforma educacional abrangente, sem paralelo no mundo, por meio dos chamados land grant colleges, voltados para o desenvolvimento de tecnologias. No Japão, a restauração da mística monárquica do período Meiji e a consequente ascensão de uma elite jovem, que reformou o país de alto a baixo em menos de uma década, quebrando a espinha dorsal da casta samurai, implantando um sistema nacional de educação e abrindo o país ao exterior, buscando know-how por toda parte.

As mulheres de Vitória no poder

Faz tempo são múltiplos os exemplos da desmoralização do poder público, desde as manifestações dos chamados black blocs nas ruas de São Paulo e outras capitais, até a baderna que há semanas sucede-se no Rio, defronte à Assembleia Legislativa. Nem se fala dos arrastões verificados nas praias e em subúrbios da antiga capital. Tomem-se as rebeliões nos presídios do país inteiro, com a degola de presos e, apesar de a imprensa omitir, até cenas de canibalismo.

O último capítulo dessa novela de horror acontece pela iniciativa das mulheres de policiais militares, certamente também dos próprios, deixando as cidades entregues ao crime, às depredações, assaltos e assassinatos.


Analisando-se as causas de por que todos esses movimentos acontecem, chega-se ao óbvio resultado de que a maioria de seus participantes tem razão. Policiais sem salário, jovens sem emprego, presidiários tratados como animais, cidadãos sem esperança – é natural que na falta de iniciativas do poder público, insurjam-se também outras forças, apesar de em muitos casos prevalecer a criminalidade. Essa é a primeira grave falha dos que nos governam, incompetentes e empenhados em satisfazer seus próprios interesses.

Mas a segunda falha é mais profunda, na demonstração da incapacidade de o governo reagir. Por isso, desmoraliza-se. Deixa de aplicar os mecanismos postos a seu dispor para manter a ordem. Tenta dialogar como se o dialogo fosse entre a guilhotina e pescoço, contribuindo para a falência do Estado organizado, que abdicou de suas obrigações. Mostra-se, a administração Temer, incompetente para cumprir os objetivos de sua própria existência.

Tanto na Grécia Antiga quanto no Brasil Colonial, as mulheres agiram, interditando suas camas aos maridos derrotados, até que voltassem com a vitória. Jamais agredindo a sociedade com sua impotência, tornando impossível a vida ao seu redor.

Ministros vão e voltam do Espírito Santo e outros Estados, mas sempre dando provas de recuar diante da falta de autoridade de suas pálidas presenças. Só resta às mulheres de Vitória tomarem o poder…

A dança grega


Anthony Quinn e Alan Bates em "Zorba, o grego" (1964), de Michael Cacoyannis

Lagos vitais desaparecem pelo mundo

A escassez de água é um problema crescente, com a África sendo duramente atingida. Com aumento das temperaturas e redução das chuvas, os lagos secam. 

Regressão do lago Poopó, na Bolívia, nos últimos três anos

Lago Poopó

Barcos de pesca vazios estão encalhados na terra ressecada e rachada do outrora imponente lago Poopó, na Bolívia. A redução do nível de água do lago tem sido contínua durante anos, mas no início de 2016 secou quase completamente – um desastre para a vida selvagem e famílias dependentes dele para a pesca.

O lago Poopó sempre foi raso. Mas cientistas afirmam que, desta vez, ele pode não se recuperar. As mudanças climáticas fazem parte do problema. A precipitação diminuiu regularmente, e as temperaturas aumentaram dois graus Celsius nas últimas três décadas – um fator agravado pelo fenômeno El Niño, segundo os especialistas.

Mas o ressecamento do lago é um desastre também causado pelo Homem. A água do rio que alimenta o lago é desviada para a agricultura, assim como às minas de prata e estanho na região.

Lago Chade

O lago Chade chegou a ser um dos maiores do mundo. Durante séculos, tem sido uma fonte vital de alimento e água para as comunidades que vivem ao redor. Mas ele está desaparecendo num ritmo assombroso. Desde a década de '960, diminuiu de cerca de 25 mil quilômetros quadrados para 1.350 quilômetros quadrados – o que equivale aproximadamente ao tamanho de Belize, pequeno país caribenho. A área é agora um amontoado de lagoas, ilhas e vegetações rasteiras.

O que outrora era uma terra fértil virou poeira. Agricultura e reservas piscícolas entraram em colapso. Cerca de 30 milhões de pessoas em países que incluem Chade, Camarões, Níger e Nigéria dependem dessas águas. O encolhimento do lago mergulhou a bacia numa crise de alimentos e desnutrição "numa escala épica", de acordo com agências de ajuda humanitária.

Projetos insustentáveis de irrigação, desviando a água do lago e dos rios Chari e Logone, são parte do problema. Entre 1983 e 1994, a irrigação na área aumentou quatro vezes, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Mas as temperaturas elevadas e a diminuição das chuvas devido às mudanças climáticas também carregam culpa.

Mar Morto

O Mar Morto é, na verdade, um grande lago. É abastecido pelo rio Jordão e, embora não tenha nenhuma ligação com qualquer oceano, é tão salgado que nada além de alguns tipos de bactérias e algas conseguem sobreviver. Localizado na fronteira entre Israel, Cisjordânia e Jordânia, o Mar Morto é visitado por muitos banhistas e turistas devido às suas supostas propriedades de cura e à diversão de flutuar sem qualquer esforço.

O lago sobreviveu por milhares de anos porque a relação da água que evapora dele e aquela que flui nele permaneceu relativamente estável. Mas esse equilíbrio foi conturbado com o crescimento populacional na região. A água tem sido desviada para abastecer casas e também para o uso no setor químico e em plantações de batata. O nível está caindo cerca de um metro por ano, e o Mar Morto pode desaparecer completamente.

Carcaças de embarcações encalhadas em áreas
outrora banhadas pelo Mar de Aral

Mar de Aral

Carcaças enferrujadas se erguem da areia como monumentos fantasmagóricos – numa região que já fora um porto de pesca vívido e próspero. A cidade de Moynaq, no Cazaquistão, teve em seu auge dezenas de milhares de habitantes e estava localizada nas margens do Mar de Aral. Agora, as águas do que já foi o quarto maior lago do mundo estão a mais de cem quilômetros de distância, e a próspera indústria pesqueira e de alimentos em conserva da cidade desmoronou.

O Mar de Aral tem encolhido desde a década de '970. A água que fluía no grande lago foi desviada para irrigar a crescente produção de algodão do Uzbequistão, como parte do plano soviético de transformar a Ásia Central no maior produto mundial de algodão. Durante certo tempo, o país foi o maior exportador de algodão do mundo. Mas o desvio da água, juntamente com a construção de hidrelétricas e reservatórios, cobra o seu preço. É um desastre ambiental para as pessoas que vivem ao redor do lago e também para a vida selvagem.

O universo paralelo de Temer & Cia

 Ninguém pode dissociar a anarquia e a desordem no Espírito Santo, no Rio de Janeiro – e em outros estados mais ou menos falidos – da aparente irrealidade em que insistem em viver os políticos brasileiros. Os Três Poderes, capitaneados pelo presidente da República, Michel Temer, parecem se inspirar numa interpretação da física quântica que propõe a existência de múltiplos “universos paralelos” ou dimensões paralelas. Eles estão lá, e nós aqui.

O transtorno que acomete Temer & Cia. é grave e demolidor, para um Brasil que ansiava por um governo legítimo que não nomeasse ou blindasse suspeitos de corrupção. Um Brasil que foi às ruas por progresso, ética e ordem, e para tentar se livrar de figuras como Romero Jucá, Edison Lobão e outros menos cotados mas mais enlameados na Lava Jato do que a Peppa Pig.

Imagem relacionada

Quando se dá a Temer o crédito de ter retirado Jucá de seu ministério, não sei se a pessoa aderiu ao Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, ou se acredita no universo paralelo criado no Planalto, no Congresso e pelo Brasil afora. “É preciso estancar essa sangria”, disse Jucá em gravação já famosa, referindo-se à Lava Jato.

Jucá já não é ministro, mas se comporta como tal – o mais próximo talvez de Temer, fora Moreira Franco, que tem mudado de status a cada hora. A promoção a ministro deu a Moreira Franco foro privilegiado, assim como Dilma Rousseff tentou fazer com Lula e foi impedida. Tem toda a cara de blindagem, já que o “Angorá” foi citado em delações na Lava Jato. Desmentidos oficiais podem até convencer o Supremo, mas não convencerão a população, cansada de manobras para proteger a turma no comando, seja ela qual for. “Cia.”, abreviatura de Companhia, é o PMDB de José Sarney e Renan Calheiros.

Diz-se que Temer decidiu jogar seu xadrez para não acabar no xadrez ele próprio. Nosso presidente da República lê o livro Sapiens, do autor israelense Yuval Harari, que resume a história da humanidade (vi em EXPRESSO do jornalista Murilo Ramos). Segundo Harari, o homem dominou o planeta porque conseguiu se organizar e por acreditar em produtos de sua imaginação, como deuses e dinheiro.

Temer tem muita fé em sua imaginação e em seu ideário conservador para indicar Alexandre de Moraes para a vaga de Teori Zavascki no STF. Nem é preciso lembrar as gafes verbais cometidas por Moraes como ministro da Justiça (uma delas foi a promessa de “erradicar a maconha”). Ou sua tese de doutorado na USP, em julho de 2000, na qual Moraes escreveu que ninguém em cargo de confiança do presidente da República poderia ser indicado ao Supremo Tribunal Federal, para evitar “gratidão política”.

Rasguem-se disposições em contrário, porque a gratidão está em alta e Moraes é amigo de Marcela Temer e de Gilmar Mendes. Moraes será sabatinado por uma comissão que inclui dez senadores investigados pela Lava Jato – entre eles Renan e Jucá, suspeitos de tentar mudar leis para atrapalhar os inquéritos. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) é presidida por Lobão, o mesmo maranhense que era fiel escudeiro de Dilma.

Lobão foi ministro de Minas e Energia de Lula e de Dilma, em todo o seu primeiro mandato. Foi Teori Zavascki quem autorizou abrir a investigação contra Lobão em março de 2015, tirando o sigilo do inquérito que apura achaques milionários de Lobão a empresas. Foi o único senador a se abster na votação para manter ou não Delcídio do Amaral na prisão.

Mudou afinal o que nessa dança indigesta das cadeiras? Todos continuam “à disposição da Justiça”, todos “negam irregularidades”, todos “apoiam a Lava Jato”. O governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, fez “a campanha mais transparente possível” e nada tem a ver com a rapinagem de Sérgio Cabral. O novo presidente do Senado, Eunício Oliveira, do PMDB, o “Índio” das planilhas de propinas da Odebrecht, não recebeu R$ 2 milhões em duas parcelas, pagas em Brasília e São Paulo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, não alimentou com R$ 1 milhão em propina da OAS a campanha de seu pai, Cesar Maia, ao contrário do que diz a Polícia Federal.

Temer diz não ter pressa de nomear um novo ministro da Justiça, numa semana em que a greve da Polícia Militar mergulhou o Espírito Santo na barbárie, deixando um estado refém de assaltantes e homicidas – e disseminando o pânico no resto da Federação. Mais uma prova de que Brasília criou um universo paralelo, sem conexão com o Brasil real.

Só se fala que a greve da PM é inconstitucional e ilegal. E é mesmo. Será que o mau exemplo vem de cima? Quando os partidos tentam aprovar na Câmara um projeto livrando a si próprios da Justiça Eleitoral, o país testemunha exatamente o quê? Respeito à letra da Constituição e ao eleitor?

O crescimento vertical das favelas

Contrapondo-se às dificuldades atuais das empresas imobiliárias, o mercado informal da construção civil se expande de maneira surpreendente nas favelas e loteamentos populares.

A oferta de unidades residenciais nessas localidades, seja para venda ou aluguel, vem respondendo à crescente demanda da população que não possui renda para obter financiamento e adquirir um imóvel no mercado oficial.

Se, em outros tempos, havia a preocupação quanto à expansão territorial dessas comunidades, hoje a atenção se volta para o seu espantoso crescimento vertical.

Maior favela vertical do mundo
 A maior favela vertical que já existiu foi Kowloon Walled City,
 em Hong Kong, surgida em 1950 e demolida em 1994
Enquanto as prefeituras adotam procedimentos kafkianos para aprovar projetos e licenciar obras, criando dificuldades e abrindo espaço para oportunistas venderem facilidades, o mercado imobiliário informal prospera sob o beneplácito de políticos corruptos e da marginalidade.

No cerne desta questão está o vertiginoso abismo econômico que separa nossas classes sociais.

Atualmente, falar em urbanização de favelas virou uma afronta aos interesses imediatistas dos governantes e empreiteiros, mais interessados em produzir habitação popular de péssima qualidade, em localidades distantes sem os requisitos mínimos de infraestrutura. A moradia, nesse caso, é tratada como um valor estatístico sem qualquer referência à qualidade do imóvel.

Recentemente, o governo federal anunciou a intenção de rever algumas diretrizes do programa Minha Casa Minha Vida. O objetivo seria induzir a construção de habitações para fins sociais em áreas urbanas dotadas de escolas, unidades hospitalares e um sistema integrado de transportes coletivos.

Pretende-se, assim, evitar a formação de guetos de pobreza nas áreas periféricas da cidade. Esta iniciativa, em princípio louvável, exige o acompanhamento rigoroso das ações do poder público municipal para impedir que a proposta seja deturpada.

Em meio aos mandos e desmandos que sobressaem em nosso cotidiano, os órgãos responsáveis por diagnosticar, avaliar e propor soluções para o problema das construções nas encostas e nos loteamentos populares se ressentem do apoio logístico para atuar nessas localidades.

Sem recursos disponíveis e diante da falta de uma política integrada com os governos estadual e federal, fica difícil fazer valer as normas edilícias em territórios controlados por traficantes ou milicianos.

O fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora representou, de fato, uma perda significativa para a reconquista desses territórios pelo Estado.

Agora, um novo desafio se apresenta para os governos municipais. Uma medida provisória editada recentemente pelo governo federal, facilitando a emissão de títulos de propriedade em habitações de interesse social construídas em terrenos informalmente ocupados ou — pasmem — em lajes nos pavimentos superiores das moradias existentes, representará, sem dúvida, um estímulo a mais para verticalização edilícia nessas comunidades. Certamente, a especulação imobiliária informal agradecerá penhorada essa iniciativa.

Tal decreto não faz qualquer referência às condições de estabilidade das edificações e aos aspectos geomorfológicos do terreno. Muito menos às precárias condições ambientais nas comunidades onde o esgoto circula in natura em valas negras ou em canais que deságuam nos rios, nas lagoas, nas baías e no mar. Não basta legalizar a habitação. É preciso que a cidade chegue a essas populações.

Ao que parece, o legislador tem o seu olhar voltado exclusivamente para as soluções de curto prazo, pouco se importando com os interesses futuros da sociedade e da própria cidade.