domingo, 5 de fevereiro de 2017

Pensar o futuro

Dever é defender o conjunto em que fomos criados e vivemos, a família, o bem-estar comum. E, se um pai se esforça para pôr o pão na mesa dos filhos a cada dia, preocupa-se também com a herança que deixará.

Bem por isso toma os cuidados para que os sucessores herdem um patrimônio confortável e administrável, e não dívidas impagáveis.

Hoje, infelizmente, o pão cotidiano ficou incerto e escasso. Pior, consolida-se para as próximas gerações a certeza inconteste de uma situação calamitosa. Já passou o momento de tomar medidas coerentes e mitigadoras, mas ao menos de evitar uma ruína avassaladora ainda dá tempo. O estrago está feito, limitar seu alcance ainda é possível.

Até então, não se instalou no Brasil uma preocupação sólida e difusa com a transferência de um conjunto explosivo para as futuras gerações, que deixará o país uma terra complicada e devastada.

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Os governos vivem tendencialmente o “carpe diem”, o tapa-buraco das contas públicas, recorrendo ao ilusionismo. Não se levanta a vista para o médio prazo para não entrar num pesadelo.

Para um governante, acabar um mandato sem ser linchado já está de bom tamanho. Aquela geração que agia como Sérgio Cabral, entre joalherias e viagens ao exterior, não é mais cogitada.

Explicar em claras letras à população que estamos falidos arrasa a reputação do corajoso. “Panis et circenses” continua sendo mais fácil que mostrar a crua realidade. Com isso, as medidas são empurradas, e o conjunto da obra fica cada vez mais assombroso.

A progressão dos déficits públicos é implacável. Os indicadores estão gritando para quem tem ouvido, sinalizam a perda de velocidade do avião e da cota.

Os vendedores de ilusões se apegam aos detalhes, aos direitos e aos derivados, mas não há mais como desconhecer que o déficit previdenciário, apesar de a população brasileira registrar apenas 14% de pessoas na faixa acima dos 60 anos, é espantoso.

A regra adotada nas aposentadorias públicas da União, dos Estados e dos municípios é um conto infantil com sabor de tragédia. Não há teto nem limite para os pagamentos, perdeu-se o atrelamento entre arrecadação e dispensação de benefícios. E a diferença ficará com quem?

Nenhum sistema desatrelado da sustentabilidade tem garantia de poder sobreviver para sempre. Chegará o momento da insolvência das “obrigações insustentáveis”.

Doa a quem doer, estamos em véspera da destruição do sistema público – com um PIB que cai e com o desemprego que não para de crescer. Sem sobras para investir, a depressão econômica continua a se agigantar.

O remédio, mesmo amargo, terá melhor efeito quanto mais pontual for a ministração.

Passou a hora de reformas corretas e realistas?

Enfrenta-se uma queda de arrecadação concomitante à incapacidade de se frear os gastos, exatamente num momento em que a população depauperada pelo desemprego e pela crise precisa de mais apoio.
Os Estados e os municípios, que criaram, por lei, seu regime previdenciário, com certeza não terão como honrar suas obrigações sem mudarem as regras e o atrelamento de receitas e despesas, hoje totalmente desencontradas.

Algo inadiável tem que ser feito para evitar a ruína que paira no horizonte. E, para que isso se possa realizar, deveria ser antecipado por um pacto que livre as tentativas e os acertos da demagogia. Afinal, o conjunto da nação e das próximas gerações é o que precisa ser preservado.

Paisagem brasileira

Juarez Aires

Pagamos auxílio-moradia (R$ 5,5 mil) de 65 senadores

As regalias no Senado parecem alheias à crise que desemprega 12 milhões de brasileiros. Dos 81 senadores, apenas 16 não recebem auxílio-moradia ou não ocupam imóvel funcional – sendo que três deles são os senadores da bancada do Distrito Federal. No ano passado, o Senado gastou quase R$1 milhão (exatos R$990 mil) só com auxílio-moradia, um acréscimo de R$ 5,5 mil aos vencimentos mensais. A informação é do colunista Cláudio Humberto, do Diário do Poder.
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Estão alojados em apartamentos funcionais em Brasília 50 dos 81 senadores. Cada unidade é avaliada, em média, em R$ 2,2 milhões.

Caso fossem vendidos, os apartamentos funcionais dos senadores renderiam R$107,8 milhões. Um alívio para as contas públicas.

Além de boa moradia, cada senador recebe R$ 45 mil por mês de verba indenizatória e R$ 33,7 mil de salário.

Lula discursa em velório como viúvo de comício

A morte é um evento caprichoso e unívoco. Não segue regras. E não se presta a interpretações. A morte simplesmente mata. É sua função. E ela a exerce quando e da maneira que bem entende. A vingança mais eficaz contra a compulsoriedade da morte é o protesto do silêncio. E a melhor homenagem aos mortos é não os esquecer.

De resto, reza a praxe que, na vigília aos mortos, os vivos tenham sempre no bolso uma oração ou meia dúzia de parágrafos sobre sentimentos como amor e saudade. Mas os tempos estão mudados. No velório de Marisa Letícia, Lula tinha à mão um comício. Esguichou lágrimas de Lava Jato:
''Marisa morreu triste porque a canalhice, a leviandade e a maldade que fizeram com ela…”, declarou Lula. “Acho que ainda vou viver muito, porque quero provar para os facínoras… Que eles tenham um dia a humildade de pedir desculpas a essa mulher. Esse homem que está enterrando sua mulher não tem medo de ser preso.”
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Considerando-se sua origem e trajetória, Marisa foi uma mulher notável. Na passagem por Brasília, deixou como legado a mais fabulosa marca que uma primeira-dama pode proporcionar: a invisibilidade. Por sorte, Lula ainda vai “viver muito”. Entre um e outro discurso contra os “facínoras”, há de encontrar tempo para explicar por que permitiu que sua mulher virasse matéria-prima para inquérito.

Numa das encrencas que lhe renderam indiciamento, Lula é investigado por ocupar uma cobertura vizinha à que mora, em São Bernardo. Para os investigadores da Lava Jato, o imóvel foi comprado com dinheiro de corrupção. A defesa de Lula alega que a cobertura foi alugada. O contrato de locação traz a assinatura de Marisa.

Um dia Lula talvez tenha “a humildade de pedir desculpas a essa mulher” por ter permitido que a assinatura dela fosse empurrada para dentro de papéis tóxicos. Nesse dia, o morubixaba do PT perceberá que o papel de viúvo de comício não combina com a imagem de marido zeloso. Marisa Letícia não merecia que, no seu velório, a virtude fosse transformada apenas num trissílabo como, digamos, eleitoral.

Para que serve a verdade?

O primeiro efeito positivo da eleição de Donald Trump foi filosófico: fez com que imensa gente, um pouco por todo o mundo, começasse a discutir a verdade. O que é a verdade? Para que serve a verdade? Existe a verdade?

O segundo efeito positivo está diretamente relacionado com o primeiro, e aconteceu depois que Kellyanne Conway, conselheira de Donald Trump, justificou a descarada mentira de Sean Spicer, secretário de imprensa da Casa Branca, o qual afirmou que o novo presidente americano teve mais gente a assistir à sua tomada de posse do que qualquer outro antes dele na história do país; Spicer não mentiu, explicou Kellyanne — ele apenas defendeu “fatos alternativos”. Dezenas de comentadores notaram nos dias seguintes que a expressão poderia ter saído da pena genial de George Orwell, enquanto escrevia “1984”. Foi o suficiente para que os leitores se voltassem a interessar pelo romance de Orwell. O livro está há vários dias no topo da tabela de vendas da Amazon.


Orwell escreveu “1984” em 1948, na Ilha de Jura, na Escócia, enquanto lutava contra uma tuberculose tenaz. Publicado no ano seguinte, o livro conheceu um imenso sucesso. É sempre difícil explicar os motivos por detrás do triunfo de um livro. Acredito, contudo, que neste caso tem muito a ver com o desejo de compreender como se estrutura e se afirma uma sociedade totalitária, em pleno apogeu da distopia comunista. No romance de Orwell, o controle e a manipulação da informação assumem um papel essencial em todo o processo. No vasto país que Orwell imaginou, totalmente sujeito ao “Grande Irmão”, existem apenas quatro ministérios: o Ministério da Paz, responsável pela guerra; o Ministério do Amor, responsável por manter a todo o custo a lei e a ordem; o Ministério da Pujança, responsável pelas questões econômicas; e, finalmente, o todo poderoso Ministério da Verdade, que tem a seu cargo a informação, recriada a partir de “fatos alternativos”.

A obra suprema do Ministério da Verdade consiste na Novafala, um idioma que encolhe à medida que se expande: “É a única língua do mundo cujo vocabulário se reduz a cada ano”, lembra a certa altura um dos burocratas do partido. O objetivo, explica o mesmo burocrata, é estreitar o âmbito do pensamento: “No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo.”

A impressão com que fico sempre que escuto Donald Trump é que ele se comunica numa versão bastante avançada da Novafala. O atual presidente americano já está lá, em “1984”, ou mesmo além, tendo reduzido a língua inglesa a meia dúzia de adjetivos elementares — triste, grande, mau, horrível, fabuloso —, e a uns poucos e pobres verbos e substantivos, de tal forma que já não incorre no risco de manifestar, por descuido, um mínimo clarão de inteligência. Creio que nunca se viu, no mundo da política e do espetáculo, que, no caso, é a mesma coisa, uma indigência de pensamento tão sólida, tão loira, e tão contente de o ser.

Trump não leu “1984”. Trump não lê. Se lesse poderíamos ser levados a pensar que teria visto na distopia de Orwell não um alerta e uma denúncia dos sistemas totalitários, mas um manual de instruções para a destruição da democracia.

Voltemos à verdade. Afinal, por que importa distinguir a verdade de “fatos alternativos”? Ou não importa?

Desconfio da ideia de uma “verdade” única. Acredito que cada pessoa tem uma versão dos acontecimentos, e que a soma dessas versões nos aproxima da “verdade”. Convém, é claro, que as versões não sejam absolutamente desencontradas. O meu casaco pode ser verde para mim, verde escuro para outra pessoa, verde amarelado para uma terceira. Mas se alguém me vier dizer que esse mesmo casaco é cor-de-rosa desconfiarei ou da sua honestidade ou da sua capacidade em distinguir as cores. Por outro lado, convém que cada um de nós se mantenha fiel às respetivas versões. Ora, para Donald Trump o meu casaco verde não só é fabulosamente cor-de-rosa — se isso lhe convier — como pode passar a amarelo mal mudem as conveniências.

A ideia de que os políticos são naturalmente desonestos, da mesma forma que as lesmas são naturalmente gosmentas, é muitíssimo perigosa: implica uma capitulação da inteligência e da cidadania. A democracia está a falhar porque estamos a desistir dela. O grande desafio dos nossos dias é o de revitalizar a democracia. O de reinventar a democracia. Um dos primeiros passos é exigir mais de quem nos representa. É escolher melhor quem nos representa, de forma que a expressão “político desonesto” deixe de parecer uma redundância para se transformar num oxímoro.
José Eduardo Agualusa

Domingo de alegria

Dançando ao som da orquestra de Ray Anthony (piston de abertura)

'Dura Lex'

Em toda essa história da prisão de Eike Batista, um aspecto pareceu bastante curioso. A naturalidade com que as pessoas encaram as prisões especiais para quem tem diploma de curso superior. Se a pessoa tem diploma, é destinado a algo mais civilizado. Caso contrário, vai para a prisão comum, com todas as suas misérias e a sua severidade. Já passei por várias cadeias do Rio, inclusive Água Santa, num outro contexto, o do governo militar, e essas distinções não tinham, pelo menos no nosso caso, a mínima importância.

Se tivessem, estaria perdido de todo jeito, pois não tenho diploma de curso superior, assim como milhões de brasileiros. Nesse caso, não somos também cidadãos de segunda classe? A maioria das pessoas de bem não pensa nisso porque não considera, com razão, a hipótese de ir para a cadeia. Por que então levantar essa tema? A cadeia especial para quem tem diploma é prima pobre de um dispositivo muito mais nefasto: o foro especial no Supremo para as pessoas que têm mandato político.

Mais uma vez, quem não tem mandato parlamentar ou cargo no governo pode se sentir um cidadão de segunda classe. Além de ser julgado pela Justiça de primeira instância, ele é destinado às cadeias com um nível inferior de conforto e higiene. Não tenho ânimo de levantar questões morais num domingo, sobretudo neste mundo onde tantas barbaridades são vistas como naturais. O problema é que o foro privilegiado, independentemente de o aceitarmos ou não, pode ser um insuperável obstáculo para os rumos da operação Lava-Jato.

Com a delação da Odebrecht, pelo menos 200 políticos serão implicados. Será preciso montar um esquema ampliado de investigação. Mas o que fazer com tantos projetos que chegam ao Supremo com ministros asfixiados pelo grande número de processos que já existem por lá?

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Será simplesmente impossível um desfecho razoável para todos esses casos antes das eleições de 2018. A Lava-Jato corre o risco de prender empresários, recuperar o dinheiro, mas não conseguir atingir com força o braço político do esquema. Não há saída. O foro privilegiado, que expressa a tolerância dos brasileiros com um tratamento diferenciado e antidemocrático, passaria a ser o grande entrave objetivo para a renovação política.

Em síntese, não se trata mais de discutir se o tratamento diferenciado às pessoas deve ou não prosseguir num país que considera natural essas distinções aristocráticas. O foro privilegiado não se tornou apenas iníquo: é burro porque pode inviabilizar uma operação como a Lava-Jato, que é tão importante para o Brasil e ganhou um respeito internacional. O que fizemos de melhor, na presunção de que a lei vale para todos, será combatido por nossas crenças que consideram natural que ela seja aplicada de forma diferente, entre diplomados e não diplomados, titulares de mandatos ou pessoas comuns. No caso das cadeias brasileiras, a transição para a democracia penal ainda será lenta. Independentemente de terem ou não diplomas, milionários não podem ser misturados a bandidos pobres pois correm o risco de sofrer 50 sequestros por dia.

Lembro-me que na Papuda, em Brasília, havia essa preocupação específica, separando presos famosos ou ricos para que conseguissem sobreviver. Outro aspecto que parece natural aqui no Rio é raspar a cabeça dos presos, ainda que detidos em prisão preventiva. Prefiro o método da Lava-Jato em Curitiba que prende, mas permite que a pessoa mantenha sua identidade, na qual o cabelo tem um importante papel. Compreendo as reações iradas que uma posição dessas desperta. Por que se preocupar com presos que jogaram o Rio nesse buraco? Não se trata apenas deles, mas de uma filosofia, de um norte na relação entre o estado e o prisioneiro. Para mim, o problema central sempre foi o de desmontar essa gigantesco processo de corrupção, julgar e prender todos os envolvidos.

A supressão da liberdade é uma punição exemplar, desde que consigamos que as pessoas respeitem as leis dentro das cadeias. Sérgio Cabral, sua mulher, Eike Batista são presos singulares, que nadaram em dinheiro, enquanto o estado quebrava, que sentavam seus bumbuns em privadas polonesas aquecidas, enquanto a população viaja de pé e espremida nos ônibus. Eles têm um pouco de Maria Antonieta pelo desprezo aos pobres e seus martírios. Pedir à multidão que os poupe é totalmente fora de propósito, no momento. Sérgio Cabral foi o adversário mais arrogante que enfrentei em minha vida política, era um predador irresponsável, sabendo que nadava em dinheiro e que o Rio apoiava sua megalomania.

Não desejo para ele nem para os presos da Lava-Jato nenhum tipo de humilhação. Basta o cumprimento da lei. Em vez de nos alegrarmos com sua desgraça, o melhor seria canalizar a energia para as vantagens de um Brasil que conseguiu prender todos os ricos ladrões e precisa completar as aspirações da máxima que dominou o período: a lei vale, igualmente, para todos.

Fernando Gabeira

Para quem quer

O Brasil de hoje é provavelmente um dos países do mundo que melhor convivem com o absurdo. Fomos desenvolvendo na vida pública brasileira, ao longo de anos e décadas, uma experiência sem igual em aceitar a aberração como uma realidade banal do dia a dia, tal como se aceita o passar das horas ou o movimento das marés – “No Brasil é assim mesmo”, dizemos, e com isso as coisas mais fora de propósito se transformam em fatos perfeitamente lógicos. A morte do ministro Teori Zavascki, dias atrás, na queda de um turbo-hélice privado no litoral do Rio de Janeiro, foi a mais recente comprovação da atitude nacional de pouco-caso diante de comportamentos oficiais que não fazem nexo. É simples. O ministro Zavascki não podia estar naquele avião, porque o avião não era dele ─ estava viajando de favor, e um magistrado do Supremo Tribunal Federal não pode aceitar favores, de proprietários de aviões ou de qualquer outra pessoa. Nenhum juiz pode, seja ele do mais alto tribunal de Justiça do Brasil, seja de uma comarca perdi­da num fundão qualquer do interior.

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Da morte de Teori Zavascki já se falou uma enormidade, e sabe lá Deus o que não se falou, ou talvez ainda se fale. Foram feitas indagações sobre o dono do avião, um empresário de São Paulo, seus negócios e suas questões junto ao Poder Judiciário. Foram apresentados detalhes sobre as suas relações pessoais, seus projetos empresariais e seu estilo de vida. Foram examinadas as circunstâncias em que se originou e evoluiu seu relacionamento com o ministro Zavascki. Não apareceu nada que pudesse sugerir qualquer decisão imprópria por parte do magistrado ─ ao contrário, sua conduta à frente dos processos da Operação Lava Jato continua sendo descrita como impecável. Mas o problema, aqui, não é esse. O problema é que ninguém, entre os que tomam decisões ou influem nelas, estranhou o fato de que um dos homens mais importantes do sistema de Justiça brasileiro, nos trágicos instantes finais de sua vida, estivesse viajando de carona no avião de um homem de negócios que não era da sua família nem do seu círculo natural de amizades. Não se trata de saber se o empresário era bom ou ruim. Sua companhia não era adequada, apenas isso, para nenhum magistrado com causas a julgar.

A questão não se limita aos empresários. Não está certo para um juiz, da mesma maneira, frequentar ministros de Estado e altos funcionários do governo. Ele também não pode andar com sócios de grandes escritórios de advocacia – grandes ou de qualquer tamanho. Entram na lista, ainda, diretores de “relações governamentais” de empresas, dirigentes de órgãos que defendem interesses particulares e políticos de todos os partidos. Não dá para aceitar convites de viagem com “tudo pago”, descontos no preço e qualquer coisa que possa ser descrita como um favor. Não é preciso fazer a lista completa ─ dá para entender perfeitamente do que se trata, a menos que não se queira entender. O ministro Zavascki não era, absolutamente, um caso diferente da maioria dos membros do STF e de uma grande parte, ninguém poderia dizer exatamente quantos, dos 17 000 magistrados brasileiros de todas as instâncias. Seu comportamento era o padrão – com a diferença, inclusive, de ser mais discreto que muitos. Ninguém nunca viu nada de errado no que fazia ─ e ele, obviamente, também não.

Cobrança exagerada? Diante dos padrões de moralidade em vigor na vida pública nacional, é o caso, realmente, de fazer a pergunta. Mas não há exagero nenhum em nada do que foi dito acima. Ao contrário, essa é a postura que se observa em qualquer país bem-sucedido, democrático e decente do mundo. Na verdade, não passa na cabeça de ninguém, nesses países, levar uma vida social parecida à que levam no Brasil os ministros do STF e de outros tribunais superiores, desembargadores e juízes de todos os níveis e jurisdições. Muitos magistrados brasileiros também acham inaceitável essa confusão entre comportamento privado e função pública. Não falam para não incomodar colegas, mas não aprovam – e não agem assim. Têm a solução mais simples para o problema: só falam com empresários etc. no fórum, e nunca a portas fechadas. Para todos eles, “conversa particular” é algo que não existe. Nenhum deles vê nenhum problema em se comportar assim. Eles aceitam levar uma vida pessoal com limites; só admitem circular na própria família, com os amigos pessoais e entre os colegas. Fica mais difícil, sem dúvida, mas ninguém é obrigado a ser juiz, nem a misturar as coisas. Só quem quer.

Vira poste pra cachorro

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Nada há que mais diminua o prestígio de um homem público do que a fundada suspeita de haver ele abusado do cargo para locupletar-se
Pedro Aleixo

Muros e bárbaros

Troia era muito próspera. Para preservar sua riqueza, ergueu muros altos. A obra teve divinos feitores: Apolo e Posídon. Divergências sobre o pagamento levaram a desgraça para o povo e para a família real. Anos depois, os gregos conquistaram a cidade inexpugnável com a artimanha do cavalo de madeira. A orgulhosa Ílion caiu com seus muros intactos.

Constantinopla foi construída em um ponto privilegiado entre Europa e Ásia. O comércio enriqueceu a cidade. Desde o começo, ela foi fortificada. O sistema de muralhas em desnível era extraordinário. Foi sendo reforçado e melhorado nos mil anos seguintes. A extensa proteção ainda contava com muralhas junto ao mar e poderosa corrente para impedir a passagem de navios pelos estreitos. O surgimento da pólvora para fins militares foi fatal para a defesa. Poucas semanas após ter completado 21 anos, o sultão Maomé II entrou triunfante em Santa Sofia. As fortificações bizantinas tinham ficado obsoletas.

Há muros altos na China desde antes do período imperial. O imperador Qin Shi Huang (século 3.º a.C.) unificou o país e deu à cidade de Xian sua atração principal: os guerreiros de terracota. Ele decidiu ligar os muitos muros reais e fazer a primeira muralha imperial.

A chamada muralha da China é uma obra com muitos perfis arquitetônicos. A parte mais visitada, hoje, é próxima a Pequim. Aquela parte é fruto do esforço restaurador da dinastia Ming (séculos 14 ao 17). 

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Depois de um início de expansão cujo símbolo são as fabulosas viagens do almirante Zeng He ao Ocidente, os imperadores, aconselhados por eunucos confucionistas, encerraram a fase de pensar para fora e passaram a pensar para dentro. Depois de navegar boa parte do Índico, chegando ao Mar Vermelho e a Moçambique, os chineses se ensimesmavam uma vez mais: não acreditavam ter visto nada melhor do que eles mesmos fora de seus territórios. Para que viajar? Para que se abrir ao mundo? Ressuscitam o esforço de restaurar as muralhas com pedras para impedir a invasão dos bárbaros. Os Mings deixaram de se considerar como potência ofensiva e adotaram atitude defensiva. As antigas muralhas não tinham detido a invasão mongol. As novas e restauradas não conseguiram deter os grupos da Mandchúria que derrubaram o último soberano nacional chinês e instauraram o poder estrangeiro sobre o Império do Meio.

A muralha da China teve efeitos muito variados. O primeiro deles foi absorver recursos do império, especialmente no período Ming. O segundo foi transmitir a falsa sensação de segurança. Podemos existir longe dos estrangeiros, pensava, satisfeita, a elite da Cidade Proibida. A única grande consequência que a muralha não conseguiu apresentar foi aquela que tinha definido sua gênese: livrar o império de bárbaros.

Vitoriosa na Grande Guerra, a França manteve parte do seu alto comando. Marechais carregados de medalhas e de experiência pensaram em um sistema de defesa grandioso. Se as trincheiras tinham marcado o conflito de 1914-1918, é óbvio que um sistema industrial e perfeito de trincheiras salvaria o povo francês do conflito que se avizinhava. “Excelente ideia”, deve ter dito um ancião ao outro em Paris.

Surgiu a linha Maginot. Túneis, casamatas de concreto, trilhos, depósitos: a extensa rede defensiva era perfeita. Ela pode ser visitada hoje, quase intacta. A opinião pública foi convencida que valia a pena investir grande parte da receita francesa na concepção. A cabeça de parte dos dirigentes políticos e militares da França voltava-se para 1914. A guerra de 1939 seria de aviões e de tanques. O ataque nazista pelas Ardenas foi uma surpresa. A linha Maginot foi um caríssimo elefante branco. Em 1940, a França caiu. A ideia fora inútil. Jogar na retranca, mais uma vez, demonstrou ser tática duvidosa.

Em agosto de 1961, tentando estancar o fluxo migratório para o Ocidente, o governo da Alemanha Oriental/URSS ordenou a construção do Muro de Berlim. O mundo que deveria ser o paraíso dos trabalhadores não conseguia convencer seus habitantes a permanecerem no Éden. A cidade foi dividida.

O Muro de Berlim custou muitas vidas. Foi o símbolo do fracasso socialista. O democrata Kennedy fez discurso se identificando com os berlinenses oprimidos. O republicano Reagan pediu de forma direta: “Secretário-geral Gorbachev, se o senhor busca a paz, se busca prosperidade para a União Soviética e o Leste Europeu (...), derrube este muro”. O símbolo caiu em 1989 e, com ele, o socialismo histórico da URSS e do Leste Europeu.

Há muitos outros divisores físicos na História. Todos foram e são de memória infeliz e inúteis. Eles reconhecem o fracasso de um sistema e simbolizam o colapso das pontes. Muros enriquecem empreiteiros e empobrecem ideias e humanidade.

Visitei muitas vezes a muralha da China, as ruínas de Troia, estive em Istambul, vi Berlim e conheci linha Maginot. Nestes lugares há o eco do desejo de deter os bárbaros e o registro do fracasso do intento. Seria irônico repetir Reagan, o neoliberal, o republicano conservador, o garoto-propaganda do capitalismo de livre mercado contra seu colega de partido: “Tear down this wall, Mr Trump”.

Imagem do Dia


Pulpit Rock,,  Victoria (Austrália)

Velório de Marisa virou comício, e seu corpo, palanque

Todos sabem a dureza com que tratei, aqui e em toda parte, aqueles que resolveram fazer troça do estado de saúde de Marisa Letícia, mulher do ex-presidente Lula. Ou a contundência com que desqualifiquei os teóricos da conspiração, segundo os quais uma grande armação estaria em curso, com a participação até de médicos, para transformar a ex-primeira-dama em vítima, o que seria positivo para Lula. A Internet traz, como se sabe, o lixo nosso — ou melhor: “deles” — de cada dia. E também antevi o óbvio: o PT iria, sim, fazer uso político da morte de Marisa. Infelizmente, já começou. E a personagem principal da indignidade é ninguém menos do que… Lula! É um espetáculo bastante constrangedor, mas está longe de ser inédito.

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O discurso do marido de Marisa no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, onde se realizou o velório, está em toda parte. Ou melhor: a fala do líder máximo do PT em desagravo e homenagem à “companheira” circula por aí. Mesmo quando evocou cenas domésticas, do cotidiano familiar, quem falava era o homem que, se a lei permitir, quer disputar de novo a Presidência da República em 2018. O velório de Maria virou um comício, e seu corpo, um palanque.

Sim, é verdade! Tanto eu como os petistas não inovamos em 2017. Repetimos a postura que adotamos em 2009 e 2011, quando Dilma e Lula, respectivamente, tiveram câncer. Como assim?

Repudiei, então, as manifestações de grosseria nas redes sociais e cobrei que se conservasse o respeito humano de que ambos eram e são merecedores. Mas cumpre lembrar: foi a dupla a fazer um uso asqueroso da própria doença. A então “candidata Dilma” se tornou aquela que vencia até o inimigo invencível. Lula, em tempos de Lava Jato, trombeteou sobre si mesmo: nem o câncer o derruba…

Bem, meus caros: ao dar uma tradução política à morte da Marisa, Lula não inova: na campanha eleitoral de 2002, contou a história da primeira mulher, que morreu logo depois do parto. E ele o fez para as câmeras de Duda Mendonça, o marqueteiro. E chorou muito. Queria votos.

Não estou aqui a sugerir que a tristeza de Lula é falsa, arranjada, mera politicagem. Nada disso! Considero que a dor é verdadeira. Mas é perfeitamente possível fazer as duas coisas: sofrer e aproveitar a tragédia pessoal para… fazer política.

É claro que todos esperávamos que o marido exaltasse as virtudes cívicas da mulher e asseverasse a sua inocência. Afinal, ela era ré em duas ações penais. Segundo Lula, era “morreu triste”. Bem, meus caros, até aí, vá lá, nada de surpreendente ou censurável. Ocorre que ele foi muito além disso. Disse, por exemplo:

“Ela está com uma estrelinha do PT no seu vestido, e eu tenho orgulho dessa mulher. Muitas vezes essa molecada [os sindicalistas] dormia no chão da praça da matriz [de São Bernardo do Campo] e a Marisa e outras companheiras vendendo bandeira, vendendo camiseta para a gente construir um partido que a direita quer destruir”.

Pronto! A Marisa morta se transformava ali num símbolo. E o ex-presidente não hesitou em usar o cadáver como arma: “Na verdade, Marisa morreu triste. Porque a canalhice que fizeram com ela… E a imbecilidade e a maldade que fizeram com ela… Eu vou dedicar… Eu tenho 71 anos, não sei quando Deus me levará, acho que vou viver muito porque eu quero provar que os facínoras que levantaram leviandade com a Marisa tenham, um dia, a humildade de pedir desculpas a ela”.

O discurso de Lula foi o “grande momento” de um ato religioso oficiado por Dom Angélico Bernardino, bispo emérito de Blumenau (SC) e conhecido padre de passeata. Aliás, antes mesmo que Lula enveredasse para a política, foi o homem de batina quem disparou: “A Marisa Letícia foi uma guerreira na luta a favor da classe trabalhadora. Atentem para as reformas trabalhistas que sejam contra os trabalhadores; a reforma da Previdência, contra pobres e assalariados. É preciso que estejamos atentos”.

Não se contentou. Para ele, a crise econômica “é falsamente atribuída à administração dos dois últimos governos”. Por “dois últimos”, entenda-se, está se referindo às gestões Lula e Dilma. Para o bispo, o responsável deve ser, sei lá, FHC!

Vamos ver o que vem por aí. Pudor, já deu para perceber, não haverá. Nem medida.

E noto algo curioso: reuniam-se, em perfeita comunhão, os esquerdistas ideológicos, os sindicalistas e a Igreja Católica dos vermelhos. A exemplo do que se via nos primeiros anos de existência do PT.

Lula fazia uma aparente exumação do passado para usar Marisa como instrumento de lutas futuras.

Os domingos

Todas as funções da alma estão perfeitas neste domingo.
O tempo inunda a sala, os quadros, a fruteira.
Não há um crédito desmedido de esperança
Nem a verdade dos supremos desconsolos –
Simplesmente a tarde transparente,
Os vidros fáceis das horas preguiçosas,
Adolescência das cores, preciosas andorinhas.

Na tarde – lembro – uma árvore parada,
A alma caminhava para os montes,
Onde o verde das distâncias invencidas
Inventava o mistério de morrer pela beleza.
Domingo – lembro – era o instante das pausas,
O pouso dos tristes, o porto do insofrido.
Na tarde, uma valsa; na ponte, um trem de carga;
No mar, a desilusão dos que longe se buscaram;
No declive da encosta, onde a vista não vai,
Os laranjais de infindáveis doçuras geométricas;
Na alma, os azuis dos que se afastam,

O cristal intocado, a rosa que destoa.
Dos meus domingos sempre fiz um claustro.
As pétalas caíam no dorso das campinas,
A noite aclarava os sofrimentos,
As crianças nasciam, os mortos se esqueciam dos mortos,
Os ásperos se calavam, os suicidas se matavam.
Eu, prisioneiro, lia poemas nos parques,
Procurando palavras que espelhassem os domingos.
E uma esperança que não tenho.

Paulo Mendes Campos
artiebagagli:
“Vittorio Matteo Corcos - Dreams (1896)
”
Vittorio Matteo Corcos (1896)

Ex-chefe mafioso revelou desastre ecológico por tráfico de lixo na Itália

"Que droga que nada, doutor! O lixo é o verdadeiro ouro." Essa frase, que se tornou conhecida tanto na Itália como no exterior, representa o dogma no qual se baseou por anos o tráfico ilegal de lixo que envenenou a região italiana da Campania e deu vida à chamada "Terra dos Fogos" - uma área situada entre as Províncias de Nápoles e Caserta, destruída por crimes ambientais.

A história do tráfico de lixo é acima de tudo a história da Camorra (a máfia napolitana e da Campania) e é a história de Nunzio Perrella. A frase citada acima foi dita por ele, ex-chefe da Camorra que delatou a organização criminosa e agora conta em seu livro como funciona o tráfico de resíduos tóxicos.

Trata-se de uma verdadeira cadeia que vai do norte ao sul da Itália, envolvendo diferentes setores: empresários, mafiosos e políticos cúmplices. No livro Oltre Gomorra. I rifiuti d'Italia (Editora CentoAutori), escrito juntamente com o jornalista Paul Coltro, Perrella relata sua trajetória criminosa.

Conceptual Illustrations by Davide Bonazzi, via Behance:
Em apenas dez anos foram apreendidas 13 milhões de toneladas de resíduos transportados ilegalmente
Hoje ele é forçado a esconder parcialmente o rosto, para não ser reconhecido, devido a uma decisão do Estado italiano de não lhe fornecer mais a escolta reservada às testemunhas envolvidas no programa de delação.

Muitos anos se passaram, mas ainda hoje ele é conhecido como "chefe do lixo". Em setembro de 2016, a Camorra colocou uma bomba em frente a sua casa.

"Conto a minha história porque estou com raiva. Disse para a Justiça italiana tudo que eu sabia, mas não tive nada em troca. Só a perda da minha honra e do meu tempo. O Estado sabia de tudo desde os anos 1990, mas não fez nada para conter a situação", afirmou à BBC Brasil.

Nunzio Perrella é um mafioso "à moda antiga", até mesmo por causa da sua idade: 68 anos.

Começou a carreira muito jovem. Enquanto os irmãos se tornavam verdadeiros chefões temidos no distrito de Traiano, em Nápoles, optou por ser o elo com o mundo empresarial e a política. Um "colarinho branco" da Camorra, como ele se define.

Ou seja: enquanto eles saíam matando e se dedicavam ao tráfico de drogas, Nunzio Perrella conseguia se impor graças à força do nome da família.

A ironia é que hoje, depois de ter feito a delação, ele também precisa se esconder de possíveis ataques vindos da própria família: "É verdade: muitas pessoas me querem morto. Incluindo meus irmãos ", afirmou durante a apresentação do livro.

Ele foi preso duas vezes quando jovem e em uma terceira ocasião em 1992, recebendo uma sentença de 24 anos de prisão por associação mafiosa e tráfico de drogas. Cumpriu uma parte da pena na cadeia e outra em prisão domiciliar.

Em 1992, quem o interrogou foi Franco Roberti, hoje procurador nacional antimáfia, a maior autoridade na luta contra o crime organizado. Naquela época, ele era o procurador da Direção Antimáfia de Nápoles e percebeu que Perrella era o "chefe do lixo", o homem que havia construído o sistema de fato.

Perrella e muitos outros membros da Camorra, no entanto, não "envenenaram" apenas a região entre Nápoles e Caserta, mas também toda a região Norte e Centro da Itália. "Só quando o norte estava abarrotado de lixo, começaram a enviá-lo para o sul", afirma o ex-mafioso.
Esquema

A Legambiente, maior organização ambientalista italiana, calcula que entre o 1991 e 2013 foram realizadas 82 investigações por tráfico de resíduos. Materiais jogados em lixões legais e ilegais da "Terra dos Fogos".

Foram feitos 1.806 procedimentos judiciais envolvendo 443 empresas italianas, a maioria com sede no centro e ao norte do país.

Os empresários não queriam arcar com os custos do descarte legal de resíduos e assim acionaram a Camorra, que resolveu despejá-los em literalmente todos os lugares: terras de camponeses, pedreiras abandonadas, leitos de água ou aterros.

"Em apenas dez anos", diz Coltro, "foram apreendidas 13 milhões de toneladas de resíduos transportados ilegalmente, e essa cifra se refere a apenas metade de todos os inquéritos iniciados", explica.

"Ou seja, se considerarmos que um caminhão carrega 25 toneladas, viajaram ilegalmente 1.123,512 caminhões, que colocados um atrás do outro formam uma longa fila de 7 mil quilômetros, equivalente ao comprimento de todas as estradas italianas."