quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

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Perplexidades

Não me conformo com gigantescas desigualdades salariais. Como antropologista, eu obviamente compreendo que um banqueiro, um empresário, um jogador de futebol, um astro de novelas, um cantor-compositor popular ganhe num mês muito mais o que toda a minha família conseguiu juntar em muitas gerações. Mas a compreensão não acaba com o meu ressentimento de ser professor num país onde ensinar é uma atividade profundamente desvalorizada, coisa para quem não sabe!

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Meu avô foi desembargador pelo Estado do Amazonas, e meu pai era fiscal do consumo. Não ganhavam mal e eram parte das “classes dominantes”, conforme aprendi atônito no diretório da faculdade no qual aprendi minhas primeiras e erradas letras ideológicas.

Não sofri carência material, e nossa casa, com seus serviçais, reproduzia o ordinário de vida dos que eram significativamente chamados de “remediados”. Gente que o realismo de vovó Emerentina dizia ser parte de uma “pobreza envergonhada” porque não podiam usar sapatos furados, tinham contas a pagar e manter um estilo de vida de molde aristocrático.

Ouvi, é claro, histórias de funcionários públicos que “roubavam”, por oposição à honestidade canina da família, que recusava seguir o caminho da “política” — uma dimensão destinada a seduzir, enriquecer e eventualmente desmoralizar.

Vivi, pois, comendo o que havia na mesa. Não poderia jamais imaginar que os “remediados” de hoje levariam seus mal-educados filhinhos à Disney, enquanto meus cinco irmãos e eu íamos, no máximo, ao cinema.

Vivi num mundo com larápios mas sem “corruptos”. Alguns dos quais eram conhecidos e compadres. Arrumavam-se pelos laços pessoais chamados de “política”, e era inimaginável que um partido de esquerda viesse a engendrar um sindicato do crime composto por controladores do patrimônio do país e alguns empresários ousados e canalhas.
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Hoje, o ideal é todo mundo ser rico. Donald Trump e os seus irmãos brasileiros encarnam esse estilo próprio dos vencedores arrogantes que se sentem violentados quando viram réus. O melhor símbolo da riqueza como valor absoluto, porém, é o grupo dos oito hipermilionários que detêm um patrimônio igual à metade mais pobre da população do planeta.

Eu fui ensinado que há vergonha tanto na extrema pobreza quanto na riqueza podre, porque desmedida. Daí a minha indignação com essas brutais diferenças. Oito tendo mais do que um bilhão é um acinte a qualquer código moral. Os seus deuses podem aceitar (e justificar) tal desigualdade, mas a minha moralidade humana — finita, indigna e conservadora — não tolera esse abismo.
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A perplexidade diante de um mundo quantificado ao culhaonésimo, como dizia meu tio Silvio; um universo canibalizado pelo mercado e em sintonia com a comunicação de tudo com todos e de todos com o planeta que também é visível faz com que se veja o tamanho da desigualdade e o abismo da (in)diferença nas quais estou, sem pedir, engolfado.
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Aprendi que a transformação de tudo em mercadoria levaria a um estilo de vida onipotente e afinado ao suicídio. Hoje, essas absurdidades são reais.

Se oito possuem (com toda a filantropia que praticam e a boa vontade que podem ter) a riqueza das nações, estamos diante do milagre da multiplicação ao inverso. Multiplicamos tudo mas, quanto mais produzimos, pior distribuímos. A abundância engendra riqueza e, ao mesmo tempo, desperdício e miséria.

Creio porque é absurdo! Dizia Tertuliano nos primórdios do cristianismo que propôs deixar o familismo tribal, partidário e faccional para abraçar a fraternidade universal. Não faça com o outro aquilo que você não quer que seja feito com você!

O que mais fazer com uma coluna?
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A mensagem de um Richard Moneygrand deprimido afirma que Donald Trump presidente vai além de um acidente eleitoral. Ele é, de fato, o retorno da hierarquia e do particularismo patriótico, numa sociedade ressentida com o universalismo e com suas perdas globais. Trump — continua meu mentor — é prenúncio de choque com a mídia e dos conflitos de interesse que ameaçam, como disse Obama num notável discurso de despedida, a dimensão mais árdua da democracia e um autogoverno funcional. Esse self-government, cuja primeira exgiência é dizer não a nós mesmos.

PS: Lamento a morte do ministro Teori Zavascki e continuo perplexo com o poder de mando das facções degoladoras que, aprisionadas, têm mais influência do que os professores teoricamente livres de Uerj e da Uenf — essas facções do bem que estão se acabando.

Roberto DaMatta

Candidato a Nero

O novo presidente americano, Donald Trump, iniciou seu governo como seriíssimo candidato a Nero do Terceiro Milênio.

Trump reduziu a cinzas a Parceria Transpacífica, anunciou que em breve fará arder em chamas o bloco Nafta – EUA, México e Canadá –, jogou na fogueira o Obamacare - a reforma da saúde que beneficia 20 milhões de americanos-, além de trocar a agenda ambiental de Obama por outra bem mais quente: estímulos ao uso de combustível fóssil.

De quebra, eliminou a versão em espanhol do site da Casa Branca e determinou o fechamento da conta do Twitter e Facebook em espanhol. Com relação ao portal, também imolou a página sobre os direitos homossexuais.


As primeiras medidas de um presidente piromaníaco fazem antever uma América e um mundo bem pior do que imaginava o mais pessimista dos pessimistas.

Nunca um presidente da maior economia e democracia do planeta causou tantos temores em tão pouco tempo.

Donald Trump está em guerra contra tudo e contra todos.

Contra os latino-americanos e outros imigrantes, contra a União Europeia, a Otan, o México, o Canadá, o Peru, o Chile, a China e os outros países asiáticos, contra conquistas históricas das mulheres, como o direito ao aborto. Contra a imprensa, contra a verdade; agora contraditada por “fatos alternativos”.

Para fazer a “América voltar a ser grande”, Trump pretende incendiar os valores e a ordem mundial do pós-segunda guerra e da globalização, pautados na livre circulação das mercadorias e das pessoas, na diversidade, no fortalecimento dos fóruns multilaterais, do fim das barreiras e dos muros.

Conseguirá seus intentos?

Difícil de crer. A América das jornadas dos direitos civis de Martin Luther King, das manifestações contra a guerra do Vietnam, da contracultura dos anos 60 e da segunda onda feminista, mostrou sua cara na marcha das mulheres, um dia depois da posse do 45º presidente americano.

Essa maioria estrondosa deu o seu recado. Não aceitará recuos nos direitos individuais ou em questões ambientais.

Numa América dividida ao meio, Trump resolveu travar uma guerra particular com a imprensa no segundo dia do seu mandato, desafiando um dos valores mais caros dos americanos: a liberdade de imprensa. Não conte, portanto, com refrigério por parte dos meios de comunicação.

Também não se espere do restante do planeta boa vontade com o novo presidente dos EUA. Sua opção pelo isolacionismo levará a novas conformações geoeconômicas. Não só na política inexiste espaço vazio. Na economia e no comércio também.

A saída dos Estados Unidos da Parceria Transpacífica levará os demais países a buscar um rearranjo, tendo a China como eixo gravitacional.

Sem perceber, Trump pode estar cavando a cova do “Império Americano” ao criar as condições para que os chineses sejam, cada vez mais, o principal polo de atração na economia mundial.

Vivemos, de fato, num mundo dos paradoxos. Um presidente capitalista prega o protecionismo, a Rússia se tornou um país de piratas reais e virtuais e um presidente comunista, Xi Jinping, é aplaudido em Davos pela elite empresarial por pregar o “respeito às normas internacionais” e elogiar a globalização como “resultado natural da evolução científica”.

O mesmo vale para a União Europeia, a quem Trump quer ver pelas costas. Idem para o México e Canadá

O novo presidente americano mete tanto medo que, paradoxalmente, tende a crescer na Europa o sentimento de união, em contraposição à vaga nacional-populista, fenômeno observado por Daniel Cohn Bendit em lúcida entrevista publicada no Globo.

Poderá ainda fazer renascer o antiamericanismo, particularmente em países de larga imigração ou de histórico de conflitos com os EUA, como é o caso do México.

Em um mundo de conflitos e contenciosos aquecidos, dispensam-se candidatos a Nero.

Imagem do Dia

Cachoeiras Ban Gioc-Detian é um nome coletivo para 2 cachoeiras no Rio Sơn (em chinês: Rio Guichun), que atravessam a fronteira internacional entre China e Vietnam; localizadas entre as colinas do condado de Daxin, província de Guangxi, e o distrito de Trung Khánh na província Cao Bang. A cachoeira cai 30 m. É dividida em 3 quedas de rochas e árvores, e o efeito estrondoso da água batendo nas falésias pode ser ouvido de longe. É a 4ª maior cachoeira ao longo de uma fronteira internacional.:
Cachoeiras Ban Gioc-Detian na fronteira entre China e Vietnam 

O que é mais importante: eliminar a pobreza ou combater os mais ricos?

Alguém aí está preocupado com o tamanho da conta bancária de Jeff Bezos? Bezos é o criador e principal acionista da Amazon. De vez em quando eu adquiro um livro por lá. Leio um trecho grande que eles disponibilizam no site e, se achar bacana, vou lá e compro. Não dou a mínima para a posição de Bezos no ranking de bilionários globais. Suspeito que ele também não. Eu leio meu livro e ele ganha alguma coisa com isso. Estamos quites.

O mesmo vale para um espanhol discreto chamado Amâncio Ortega. Filho de um ferroviário de Valladolid, Ortega começou trabalhando como office boy em La Coruña, aos 14 anos. Nos anos 1970, criou a Zara e fez uma pequena revolução no varejo, não isenta de altos e baixos. De vez em quando compro uma camisa por lá. Sorte de quem comprou ações da Zara, tempos atrás. A valorização foi de 580% entre 2008 e 2016. Para uns, a Zara trabalhou bem. Muita gente investiu na empresa para ganhar algum dinheiro. Para outros, o capitalismo “concentrou” riqueza.

Ortega e Bezos fazem parte da lista de oito bilionários que a ONG global Oxfam, em relatório recente, afirma possuírem uma riqueza equivalente à metade mais pobre dos seres humanos. Segundo a Oxfam, trata-se de uma aberração. Talvez seja mesmo. Talvez o mundo fosse melhor sem essa turma de bilionários abrindo lojas reais e virtuais, vendendo livros, roupas e oferecendo ações no mercado. Talvez não. Vai que o problema esteja do outro lado da pirâmide. Na falta. É o que vamos discutir rapidamente a seguir.


O relatório afirma que o rendimento dos mais ricos, mundo afora, não é proporcional ao valor efetivamente adicionado à atividade econômica. Inútil perguntar como os técnicos da Oxfam fizeram essa conta. Não há, por óbvio, cálculo nenhum. Apenas uma colagem de notícias dispersas e narradas de uma certa maneira. Elas vão desde a existência de paraísos fiscais, passando pela esperteza dos contadores que fazem planejamento tributário, privatizações russas, subsídios e isenções fiscais, políticas de austeridade, pela destruição de terras indígenas no Brasil até o lobby da indústria farmacêutica contra a Tailândia e a crise na indústria têxtil de Bangladesh. A colagem produz uma narrativa trágica do mundo atual. Um “sistema” ordenado para beneficiar o 1% mais rico e liderado por gente que sabe o que faz.

A colagem também funciona para a estatística. O relatório diz que a riqueza dos 62 seres humanos mais ricos cresceu 45% entre 2010 e 2015, enquanto a metade mais pobre perdeu 38%. O mesmo gráfico, porém, mostra que, nos dez anos anteriores, a riqueza da metade mais pobre cresceu 3,5 vezes mais que a conta bancária dos 62 felizardos. O que isso significa? O capitalismo era bacana até o Natal de 2010 e se tornou “obsceno” a partir de 2011? Perfeita falácia estatística. Padrões de renda e crescimento econômico apresentam enormes variações de curto prazo, mas é possível perceber uma tendência ao longo do tempo.

O relatório da Oxfam traz à tona, mais uma vez, uma das perguntas fundamentais de nossa época: devemos, como sociedade, priorizar a eliminação da pobreza ou o combate aos mais ricos? Alguém sempre poderá dizer que as duas respostas estão erradas. Que a prioridade deve ser bem mais modesta: preservar a liberdade, a igualdade diante da lei e não ficar imaginando coisas. É possível. Mas por ora deixo de lado essa alternativa e concedo que tenhamos de decidir sobre um conceito de “justiça social”. E há duas opções: a guerra aos ricos ou a guerra à pobreza.

Os que optam pela guerra aos mais ricos não chegam a dizer, em regra, que os 50% da base da pirâmide está mais pobre porque um punhado de bilionários enriquece demais. Mas essa é sua mensagem. Trata-se de um exercício de correlação com uma vaga causalidade. Também não se explica em que consistiria uma “desigualdade razoável”. Vamos imaginar que a riqueza da metade mais pobre correspondesse à fortuna dos 800 mais ricos, ao invés de oito. Faria alguma diferença? Quem acha que a desigualdade é importante deveria definir essas coisas, dizer qual é, afinal de contas, a linha vermelha de assimetria de renda que não devemos cruzar. Ou quem sabe bastem apenas as impressões e instuições de quem escreve um relatório? Não sei. Fui em frente.

Meu ponto: concentrar o foco de uma visão sobre a justiça social no combate à desigualdade ou aos mais ricos é simplesmente um erro. Entre 1990 e 2010 (o próprio relatório da Oxfam reconhece isto), a proporção de pessoas vivendo na extrema pobreza caiu de 36% para 16%. Houve um incremento da igualdade entre os países, ainda que um aumento da desigualdade de renda em países avançados como os Estados Unidos, França e Inglaterra, assim como na China e na Índia. A revolução tecnológica produziu ganhos assimétricos. Os muito ricos ganharam, mas ganhou também uma enorme e multiforme camada de trabalhadores pobres do mundo em desenvolvimento. É o caso da ascensão da chamada “classe C”, no Brasil. Nada muito diferente do que ocorreu na maioria dos países latino-americanos.

A própria ONU identificou o equívoco da “narrativa da desigualdade”. Eliminar a pobreza extrema do planeta até 2030 é a primeira de suas “metas para o desenvolvimento sustentável”, lançadas em 2015. A ONU acertou o foco. Ninguém daria a mínima para a desigualdade se não fosse a existência da pobreza. Esse é o ponto enfatizado pelo filósofo Harry Frankfurt, professor em Princeton e autor de On Inequality. Não há um problema ético na distância que separa a renda da classe média bem estabelecida e dos mais ricos. Se todos tivessem o suficiente, ninguém daria atenção ao valor das ações de Amâncio Ortega no pregão de segunda-feira.

O ponto é que errar o foco em um tema delicado como este acaba produzindo imensos equívocos na formulação de políticas públicas. No Brasil, a carga tributária alcançou 32,7% do PIB em 2015. Será mesmo que nosso problema é aumentar impostos? Nosso investimento em educação, como proporção do PIB, é maior do que a média da OCDE, enquanto nossos alunos de escolas públicas tiram último lugar no Pisa. O problema é dinheiro? É a “desigualdade” a causa da péssima qualidade de nosso sistema estatal de ensino básico? Gastamos mais para cobrir o déficit da Previdência do setor público (cuja média de vencimentos é de R$ 7.500) do que em programas de transferência de renda aos muito pobres. Precisamos de mais impostos ou corrigir nosso sistema previdenciário?

Vai aí um dos mistérios da “narrativa da desigualdade”. Sua receita quase única é aumentar a arrecadação fiscal, por óbvio sobre os “mais ricos”. Na prática, a receita é transferir recursos do mercado para o governo. Governos são administrados por políticos e respondem à lógica do mercado político. Isso implica acreditar que os políticos serão mais eficientes que o mercado para alocar recursos, seja qual for o conceito de justiça em jogo. E explica por que a narrativa da desigualdade se coloque sempre como irmã siamesa da crença no governo. Venha daí, quem sabe, o discurso do relatório da Oxfam combatendo as “reformas de mercado” na educação e na saúde e pedindo, contra todas a evidências disponíveis, mais “setor público” nessas áreas.

Há um elemento moral na “narrativa da desigualdade”: a visão turva da riqueza como um “problema”. O relatório da Oxfam afirma que, do jeito que as coisas estão indo, “poderemos ter o primeiro trilionário nos próximos 25 anos”. Quando li isso achei bacana. Não apenas um. Quem sabe dezenas de trilionários. De preferência, pensei, fazendo como Bill Gates, Warren Buffet, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Ellison e Michael Bloomberg, que já se comprometeram a doar a maior parte de sua fortuna para a filantropia. Na retórica da desigualdade, o virtual surgimento de um trilionário soa como ameaça. Não importa como ele ganhe sua fortuna ou o que faça com ela.

Há certa coerência aí. Nas alegorias da narrativa da desigualdade, empresários e altos executivos são tipos malandros que convidam uns aos outros para os conselhos das empresas e trocam gentilezas na distribuição de bônus e dividendos. O relatório sugere mesmo que os espertos concentram a divulgação de boas notícias na hora de retirar pacotes de ações, concluindo que um modelo alternativo poderia se inspirar na gestão coletiva de cooperativas do setor de vegetais na Tanzânia. Lendo isso, me lembrei de minhas primeiras aulas de sociologia, nos anos 1980. O raciocínio era o mesmo, e um dia arrisquei perguntar: mas o pessoal não fica rico também porque trabalha? A professora sorriu, irônica. Havia me esquecido daquele sorriso, mas agora me lembrei dele, lendo o relatório da Oxfam.

O ódio aos mais ricos tem uma longa biografia. Suspeito que ela se ponha, em nossa época, no lugar um dia ocupado pela retórica do socialismo. O socialismo ainda tinha a vantagem de representar uma “utopia positiva”. O ódio aos ricos soa como um resmungo. Nietzsche, mais que ninguém, identificou esse traço da cultura ocidental que consiste na condenação moral “dos espíritos mais fortes”. Aqueles que “reacenderam várias vezes as paixões adormecidas, despertaram o senso de comparação, de contradição, o encanto pelo novo, pelo arriscado, pelo inusitado”. Não importava que fosse o poeta ou o condottieri. Também não importaria que fosse o herói da inovação da economia global. O bilionário self-made man, capaz de romper paradigmas e construir um mundo próprio, em regra ligado à revolução tecnológica. Eles são os “bons”. Servem de exemplo e definem um modelo. E precisamente por isso devem ser “julgados”. Sua riqueza é obscena. Não importa que doem 99% para a filantropia. Seu pecado é de um tipo que não pode ser perdoado.

A retórica da desigualdade e sua fixação nos mais ricos é um discurso de combate político. Daí seu charme e interesse. Trata-se de uma retórica mobilizadora, ao contrário do tema complexo e “morno” como o enfrentamento da pobreza. É mais fácil mobilizar uma passeata “contra o 1%” que arranjar pessoas dispostas a ir a uma comunidade periférica e pôr a mão na massa para apoiar projetos emancipadores.

Estimular movimentos sociais e comunidades a ocupar seu tempo “combatendo os mais ricos” é induzir pessoas pobres a empregar sua melhor energia em um universo retórico que conduz a lugar nenhum. Focar naquilo que faz falta, ao invés de apostar nas melhores possibilidades de cada um. Espécie de “armadilha da escassez”, na expressão do professor de Harvard Sendhil Mullainathan. Intuo que fariam melhor seguindo a trilha de outro indiano, o Prêmio Nobel Amartya Sen e sua concentração de foco na expansão das capacidades humanas. De sua “liberdade” para exercitar talentos e inventar novos mundos. É uma agenda menos excitante que erguer um cartaz em Wall Street ou em frente a Fiespcontra um grande culpado por tudo. Mas talvez seja a que de fato possa produzir algum resultado.

Por certo, há um tipo de desigualdade “obscena”: a que surge da fraude e do “capitalismo de compadres”, fruto da pressão de corporações públicas ou privadas no mercado político. Também a igualdade que surge desse modo é obscena. O erro é confundir as coisas. Imaginar que toda assimetria de renda e riqueza surge da fraude e deva ser em si mesma condenada. A desigualdade é o resultado natural do uso que cada pessoa faz de seus talentos e circunstâncias. Ou simplesmente da sorte. Ela é também uma fonte de aprendizado. Eu posso aprender com os acertos de Jeff Bezos e com os erros de Eike Batista.

O que parece não deixar dúvidas é que todos têm direito. Que a pobreza extrema é a vergonha de nossa época, assim como foi aescravidão até quase o final do século XIX. É aí que deve residir o foco de qualquer visão sensata da justiça social. O resto funciona como uma espécie de luxo. Luxo de brincar com a estatística, de fazer de conta que não foi exatamente a globalização capitalista e suas “assimetrias” que produziram o recuo monumental da pobreza nas últimas décadas. Luxo de produzir espuma ideológica com o sofrimento humano e arrumar boas manchetes no “mercado” global de informação.

Contra a síndrome de Pôncio Pilatos

Consta que o senador gaúcho Pinheiro Machado, eminência parda na Presidência do marechal Hermes da Fonseca, recomendou ao motorista, ao se deparar com um bloqueio à saída de seu carro defronte ao Hotel dos Estrangeiros, no Rio, onde morava: “Vá em frente, não tão lento que indique provocação nem tão rápido que signifique covardia”. A ordem do condestável da República Velha seria um bom alvitre a ser usado na substituição de Teori Zavascki tanto na relatoria da Operação Lava Jato quanto no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). O que não quer dizer, necessariamente, que a homologação dos depoimentos dos 77 delatores premiados ligados à empreiteira Odebrecht seja adiada sine die.

Voltando à sabedoria da ancestral do autor destas linhas, cada coisa no seu lugar. Ou melhor, cada macaco no seu galho. Em relação à substituição do catarinense no STF só é sabido da Nação que, no velório dele em Porto Alegre, o presidente da República resolveu ganhar tempo ao anunciar que não o indicaria antes de Cármen Lúcia, presidente do STF, designar o novo relator, sem a presença do 11.º ministro na Casa. Com isso Sua Excelência vestiu, não se sabe se por excesso de esperteza ou tibieza, a carapuça que lhe está sendo imposta pelos conspiradores de plantão de que teria algum interesse pessoal escuso nas decisões a serem tomadas logo agora sobre a homologação de depoimentos em que é citado, segundo consta, 45 vezes.


Sejam quais forem as razões, elas não trazem bons presságios sobre a substituição em si e os 23 meses que ainda restam ao mandato, sem dúvidas legítimo, que herdou da companheira de chapa, Dilma Rousseff, ao vencer em sua companhia, e por duas vezes, as eleições presidenciais diretas de 2010 e 2014. Muito embora não haja dúvidas de que nenhuma delação o alcance do ponto de vista jurídico, de vez que é ponto pacífico de que um presidente só pode ser incriminado e, por isso, punido na forma de lei, se houver cometido eventual delito durante seu mandato.

Se não há hipótese de alguma das eventuais delações o alcançar no exercício da Presidência, iniciado em 12 de maio passado, também não haveria como o novo ministro, ainda que fosse relator, prejudicá-lo homologando delações ou autorizando e negando no plenário do STF decisões de instâncias inferiores. Assim o undécimo voto não poderia favorecê-lo em decisões sobre processos relativos à Lava Jato. O presidente responde no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a processo aberto pelo PSDB contra a chapa vencedora das últimas eleições. Zavascki não fazia parte do TSE. E o processo é relatado pelo ministro Herman Benjamin, sob a presidência de Gilmar Mendes, também membro do STF.

Não havia, pois, nenhuma razão objetiva ou subjetiva para Temer condicionar a indicação do substituto do ministro morto a decisão de nenhum tipo do outro Poder, no qual nunca lhe cabe interferir. A declaração, feita em hora imprópria, antes que o corpo do substituído baixasse à sepultura, foi descabida. E revelou a adesão do chefe do governo a uma doença institucional que está provocando a falência múltipla dos órgãos republicanos, a “síndrome de Pôncio Pilatos”, o cônsul romano que lavou as mãos quanto à sorte de Jesus Cristo para não interferir nos desígnios da autonomia, na prática inexistente, dos judeus sob arbítrio de seus dominadores.

No caso cabe, aliás, outro aforismo da vítima do episódio bíblico, que pregava: “A César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Cabe ao presidente da República indicar o substituto do ministro-relator. E ao Supremo, por qualquer razão que tenha para atender à infausta circunstância deste momento, resolver se o novo ministro, caso seja indicado e sabatinado pelo Senado a tempo, assumiria a relatoria, ou não. Há no caso as opções noticiadas: indicação pela presidente, acordo entre os pares ou sorteio, conforme autoriza o regimento.

Para isso Temer dispõe do tempo que lhe aprouver. Da mesma forma que Cármen Lúcia e seus nove pares não têm prazos urgentes para substituir o relator. Há uma ansiedade enorme dos eventuais indicados nas delações para que as escolhas se prolonguem pelas calendas. A grande maioria dos que estes fingem representar, contudo, se agonia com a perspectiva de um adiamento sem fim da homologação da tal “delação do fim do mundo”; e da escolha ou do sorteio de um relator que anule por filigranas jurídicas uma investigação que se tornou popular no País e no mundo, como o provou o sucesso inesperado de Rodrigo Janot ao defendê-la no Fórum Internacional de Economia em Davos, na Suíça.

Já que Temer lava as mãos na pia de Cármen para se livrar da pecha improvável de indicar um candidato parcial à relatoria, os próprios ministros do STF deveriam honrar as palavras de elogio que dedicaram ao colega morto em seu velório. Como a Nação inteira sabe que ele homologaria as delações e todos estão cientes de que a decisão seria meramente formal, não contendo juízo de valor, mas confirmando se tudo foi feito dentro da lei e sem pressão nenhuma sobre nenhum dos candidatos aos prêmios da delação, não seria um exagero se o plenário fizesse o que o pranteado colega faria, conforme é voz geral. Qualquer protelação, não em nome da pressa, mas da lógica, mereceria a epígrafe da carta de desamor que o ex-vice endereçou à antecessora: verba volant (palavras voam). E com o risco de caírem sobre a cabeça de quem as pronunciou em vão.

Tomada essa providência, também em homenagem a tudo o que foi dito de Zavascki por praticamente todos, beneficiários ou vítimas de suas decisões, depois de sua morte, Temer e Cármen Lúcia, cada um no seu trono, poderão indicar com paz e sossego tanto o undécimo ministro quanto o segundo relator. E que isso seja o início de uma nova era em que cada um assumiria o poder que lhe compete sem lavar as mãos para a sorte de ninguém mais.

José Nêumanne

O doutorzinho e o louco na arte de rua de São Paulo

Quando eu estava pesquisando a vida da psiquiatra Nise da Silveira para o meu filme Olhar de Nise, estive no hospital do Engenho de Dentro, no Rio. Lá, fui apresentado a um paciente que se encarregou de ciceronear a minha visita. Vimos celas, corredores, enfermarias, pátios, almoxarifados e, finalmente, entramos numa sala de recreação. O louco parou, olhou para mim e, emocionado, disparou:

- Ali, naquela parede vazia, caiada de branco, existiam várias pinturas nossas. Mas um doutor novo chegou aqui e mandou apagar tudinho.

Foi naquele hospital, entre as décadas de 1950 e 1960, que a psiquiatra alagoana Nise da Silveira e o pintor Almir Mavignier descobriram, entre centenas de doentes mentais, grandes talentos da pintura brasileira como Fernando Diniz, Adelina, Carlos Petrus, Emigdio e Raphael, que se perpetuaram na arte. Felizmente, naqueles tempos não apareceu por lá nenhum doutorzinho para apagar as suas belas pinturas que correram o mundo.


O que o prefeito de São Paulo está fazendo com a arte de rua da cidade se assemelha muito com a atitude do doutorzinho do Engenho de Dentro. Sem consultar a população, ele decidiu tornar ainda mais cinzas as paredes das ruas da cidade antes tão coloridas pelos mãos dos talentosos grafiteiros, que decidiram humanizar a selva de pedra com seus pincéis mágicos e as suas pinturas multicoloridas, de conceitos concretos e abstratos, admiradas no mundo.

João Doria, o prefeito, responsável pela tragédia cultural da livre criação, é o nosso Trump tupiniquim. Eleito no primeiro turno das eleições paulista, substituiu um petista que bateu todos os recordes de rejeição. Mas conseguiu chegar ao topo da administração de uma das maiores cidades da América Latina sem nunca antes ter sido testado nas urnas, vendendo à população o discurso do não político. E, surpreendentemente, age como os políticos carimbados com demagogia e populismo barato.

Ao tomar posse transformou-se em gari, pedreiro e ciclista. Uniformizou-se e foi para as ruas catar lixo. Não demonstrou nenhuma habilidade na nobre tarefa de limpar a cidade nem na de pedreiro e muito menos na de ciclista. Mostrou-se incapaz até para imitar o ex-prefeito Jânio Quadros, o exótico político, fabricado também pelos paulistas, que governava (?) com uma vassoura.

Doria, que se diz apolítico, quer cativar a população com demagogia. Quer parecer igual à massa que o elegeu. Quer passar por todas experiências para governar tomando as decisões acertadas, nada mal para um executivo forjado dentro de um escritório. Até terminar o mandato ainda pode ser trocador de ônibus, leão de chácara, motorista de táxi, vendedor ambulante, feirante, garçom, entregador de pizza, ambulante, chincheiro e cozinheiro. Com tantas atividades, certamente, não vai sobrar tempo para São Paulo.

Se para administrar o seu torrão, ele precisa fazer essas piruetas para mostrar a população que é um simples mortal, mesmo para quem declara um patrimônio 180 milhões de reais, espera-se dele um certo equilíbrio para não ir ao extremo nas suas elucubrações e se jogar do Martinelli, um dos maiores arranhas céus de São Paulo, como experiência final da sua administração.

O mais preocupante de tudo isso é que a equipe do prefeito pensa igualzinho a ele, como agiam os soldadinhos do Plínio Salgado. Uma turma de serviçais que diz amém aos seus atos esdrúxulos. Não à toa, o JN mostrou o seu secretário de Cultura assinando em baixo a decisão do doutorzinho. Justificava que outras pinturas “seriam preservadas” ao tempo em que obedecia as ordens dele e mandava apagar os desenhos e as pinturas que suavizavam o amontoado de concreto de São Paulo.

O que se pode esperar de um prefeito que começa o mandato vandalizando a própria cidade? Ele acha que os votos que recebeu dão-lhe o direito de tomar decisões monocrática e intempestivas próprias de quem não sabe exercer o cargo ouvindo o povo de onde emana o poder. 

Um piano ao amanhecer

'Walking dead' urbano

#Música...☆ #VivaoRock ☆\m/♡☆ * #Raiox * #StreetArte ☆ Portas...:
- Perdeu, tiozão!
- Mata! Mata!
Gritos dos bandidos que mataram senhor que voltava da igreja, durante assalto no Rio, segundo testemunhas

Se ainda se defende que uma imagem vale muito mais do que mil palavras, as palavras acima mostram quanto têm de poder para definir nossos dramas. A extrema violência nas exclamações dá bem a medida de desprezo com a vida, que imagem alguma pode mostrar com a mesma força.

Os bandidos se assumiram propietários da vida dos cidadãos. Não foi por falta de aviso de que o país se entregava cada vez mais aos braços assassinos. Ainda se ouvem os alertas lá de trás quando soavam para ouvidos moucos de uma sociedade sempre atenta ao próprio umbigo, que enfia o pescoço no primeiro buraco quando volta as costas para os problemas.

Como a bandidagem era posta à margem, nos guetos, onde se jogava os pobres e negros, para todos se matarem, no bem da nação e felicidade geral da sociedade - retrato do que se faz com as penitenciárias - o mal estava "extinto".

A tentativa de genocídio social para dar uma solução criou monstros que hoje não se sabe como combater. As medidas - na maioria paliativas e eleitoreiras, de marketing - só vão suavizar o dano de décadas de descaso.

A violência terá que ser combatida não mais só por tomadas de posição governamentais e jurídicas, mas principalmente por uma reforma ética da sociedade. Enquanto a lei não for para todos e houver privilegiados, em qualquer nível, se estará incubando futuros violentos.

Uma sociedade justa é uma sociedade igualitária em direitos e deveres. E a brasileira sempre foi inspirada pela divisão financeira.
Luiz Gadelha

Kit Felicidade

John Holcroft tem um olhar crítico e singular a respeito de diversos aspectos que permeiam a nossa sociedade. Confira!:
O que se consome, o que se compra, são apenas sedativos morais que tranquilizam seus escrúpulos éticos
Zygmunt Bauman

Utilidade da tragédia

A política sabe ser hipócrita. Na tarde em que o avião de Teori Zavascki caiu no mar, parlamentares que tentam escapar da Lava Jato divulgaram notas consternadas e lacrimosas sobre a tragédia. “É uma grande perda para o país”, declarou o senador Romero Jucá, o “Caju” da lista da Odebrecht. “O Brasil, a sociedade e o mundo jurídico perdem um de seus maiores expoentes”, reforçou o senador Renan Calheiros, titular do codinome “Justiça” nas planilhas da empreiteira.

No velório, outros investigados disputaram espaço ao redor do caixão de Teori. Ao menos cinco foram citados nas delações, com seus respectivos apelidos : Michel Temer (“MT”), Eliseu Padilha (“Primo”), Rodrigo Maia (“Botafogo”), José Serra (“Careca”) e Geraldo Alckmin (“Santo”).


A política sabe ser cruel. Antes de o corpo baixar à sepultura, aspirantes já se insinuavam para a vaga aberta no Supremo. Alguns nem buscaram ser discretos. Julio Marcelo de Oliveira, o procurador das pedaladas, divulgou a própria candidatura nas redes sociais. “Extremamente honrado com a lembrança de meu nome para missão tão grandiosa”, escreveu.

O advogado Heleno Torres se desmanchou em elogios a Temer, a quem caberá escolher o novo ministro. “Não conheço pessoa mais elegante e equilibrada”, disse à repórter Thais Bilenky. Ele acrescentou que o peemedebista é o “melhor presidente” que o país poderia ter. Se não chegar ao tribunal, talvez consiga uma vaga na comunicação do Planalto.

A política sabe ser oportunista. Figurões de todos os partidos, do PT ao PSDB, torcem para que o desastre atrase a Lava Jato. Isso ocorrerá se a ministra Cármen Lúcia não homologar logo as delações premiadas.

No governo, a tragédia ainda é vista como um imprevisto útil para acelerar votações no Congresso. “A morte, por certo, vai fazer com que a gente tenha, em relação à Lava Jato, um pouco mais de tempo”, sentenciou o ministro Padilha. Ele não parecia aflito com o prognóstico.

Paisagem brasileira

Rio Piabanha, João Batista da Costa 

Lula afirma que Lava Jato tem 'dedo estrangeiro'

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Candidato ao Planalto, Lula passou a enxergar o Brasil de forma inusitada. Ele vê o país com o distanciamento de um scholar, como se nada fosse com ele. Num discurso para sindicalistas, na manhã desta terça-feira (24), Lula disse estar convencido de que a operação que combate o maior escândalo de corrupção já descoberto na história do país foi tramada no exterior: “Hoje, tenho convicção de tem dedo estrangeiro nesse negócio da Lava Jato. Tem interesse no pré sal.” 

Lula declarou também que o brasileiro está negligenciando os efeitos deletérios que o combate à corrupção provoca na economia. ''Não estamos levando a sério o que a chamada Operação Lava Jato está fazendo com a economia brasileira. Segundo várias informações, o efeito chega a 2,5% do PIB.”

Bom mesmo era o país governado por Lula. “Provamos que era possível aumentar o salário mínimo sem aumentar a inflação”, disse o pajé do PT. “Fizemos isso 12 anos seguidos. Nos meus oito anos de mandato, a inflação ficou sempre dentro da meta.” Dilma Rousseff errou, admitiu o orador. Entre os seus equívocos, o mais notável foi o excesso de desonerações tributárias concedidas a setores empresariais. ''A caixa foi ficando vazia.”

Com seus discursos de candidato, Lula leva a empulhação às fronteiras do paroxismo. O mensalão e o petrolão tem raízes na sua administração. A Lava Jato não é senão consequência do descalabro. O PT, seu partido, comandou o assalto ao erário. Foi dando acesso aos cofres federais que Lula recebeu apoio no Congresso. Deve-se a Lula também o mito da supergerente, que resultou no fiasco histórico de três anos de recessão.

Uma das mais sinistras ironias da trajetória de Lula e o fato de o morubixaba do PT ser obrigado a se reapresentar como candidato ao Planalto para se contrapor aos fatos que teimam em aproximá-lo da cadeia.