segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Pobre do país que precisa de heróis

Pobre do país que não consegue ter um herói. Sente-se órfão. Sem referencias. Sem rumo. Condenado a deriva. Sem controle do seu destino. Entregue a própria sorte.

Por isso (e provavelmente por muitas outras razoes), a gente está sempre a buscar heróis. Como se houvesse um vazio no coração que somente pudesse ser preenchido por um salvador.

Já escolhemos de todos os tipos. De todas as profissões. Pregando todo tipo de ideia ou valores. Ou mesmo sua ausência.

Já depositamos todas as esperanças em quem foi sem nunca ter sido. Morreu antes de começar. E deixou o país órfão de esperança. Chorando seu desespero em frente ao hospital.


Já elegemos salvadores heróis. Autoproclamado corajoso caçador de marajás. Prometia muito. De tudo. E muito de tudo. Deixou o país roxo de raiva. Saiu pela porta dos fundos da historia. E voltou, como farsa de si mesmo. Lembrança viva de enganos e engodos.

Já admiramos campeões. Vibramos como sócios de seu sucesso em cada um dos pódios. Choramos sua perda. Nomeamos estradas em seu nome. Fizemos homenagens. Muitas. Ficamos sós. Tristes. Devastados. E sem heróis.

Já apostamos em operários. Com esperança. Sem medo. Ia mudar tudo. Como nunca antes neste país. E nos decepcionamos. Assistimos incrédula a parada interminável de malfeitos. Custou caro. E deu em muito medo. E pouca esperança.

Já elegemos muitos heróis. E já nos decepcionamos bastante. E continuamos a ver e procurar salvadores. Alguém que nos redima. Ser superior. Digno. Herói, enfim.

É compreensível. A vida sem eles é mais difícil. Depende da impessoalidade das instituições. De sua eficiência. De sua eficácia. E, claro, de sua credibilidade.

Demanda décadas de intenso esforço e determinação no aperfeiçoamento das instituições. E compromisso com sua preservação e manutenção. Somente assim é possível não depender de indivíduos.

Somente instituições fortes criam condições para a substituição de indivíduos com o mínimo de trauma para a sociedade. Por outro lado, instituições fracas levam a sociedade a depender de indivíduos.

Países com instituições fracas procuram heróis. Personagens improváveis que trariam quase magicamente as soluções para todas as questões que a sociedade, coletivamente, fracassou em encontrar resolver.

Diante da falta de instituições, da ausência total de credibilidade no Estado, o país busca heróis. Desesperadamente. E lamenta sua ausência. E não os encontra. Talvez porque heróis não existam no mundo real.

Pobre do país que precisa de heróis.

Reinventar a cidade

Fala David Harvey, em “Rebel Cities”:

“A cidade, escreveu certa vez o destacado sociólogo urbano Robert Park, é ‘a mais consistente e, de modo geral, a mais bem-sucedida tentativa do homem de refazer o mundo em que vive conforme os desejos do seu coração. Mas, se a cidade é o mundo que o homem criou, ela é o mundo no qual ele está doravante condenado a viver. Assim, indiretamente, sem nenhuma noção clara do sentido de sua tarefa, ao fazer a cidade o homem refez a si mesmo’. Se Park está certo, a questão sobre o tipo de cidade que nós queremos não pode ser dissociada da questão sobre o tipo de gente que queremos ser, o tipo de relações sociais que buscamos, as relações com a natureza que valorizamos, o estilo de vida que desejamos, os valores estéticos que defendemos. O direito à cidade é, por isso, muito mais que o direito de acesso de um indivíduo ou grupo aos recursos que a cidade incorpora: é o direito de reinventar a cidade mais conforme os desejos do nosso coração. É, além disso, direito antes coletivo que individual, já que a reinvenção da cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre os processos de urbanização. A liberdade de fazer e refazer nossas cidades é, quero sugerir, um dos mais preciosos porém negligenciados dos nossos direitos humanos. Como, então, melhor exercer esse direito?”.


É uma pergunta fundamental, que pede uma resposta coletiva. Trata-se de transformar em profundidade a vida citadina. De reinventar a vida urbana. De reimaginar e recriar o cotidiano das cidades – a vida diária de todos nós.

E sabemos do que necessitamos, em termos gerais. É preciso fortalecer os movimentos urbanos, recuperar o poder de modelar a existência citadina, ter como fazer planos e estabelecer metas de longo prazo, diminuir distâncias e desequilíbrios sociais, qualificar de fato os serviços públicos, reduzir o acúmulo de privilégios, frear a febre consumista, investir pesado em capital humano, reconfigurar a classe média tradicional, incentivar o funcionamento de focos múltiplos de cultura, aprofundar a heterogeneidade e a aceitação das diferenças, incrementar práticas e condutas ecologicamente saudáveis, reestruturar nossas relações com as águas urbanas, incentivar a dimensão comunitária da organização e da vida citadinas, reconstruir a base ética da sociedade – como reclamam, com ênfases variáveis, movimentos sociais espalhados por todo o planeta.

E aqui, sem dúvida, tudo aponta para a auto-organização do social.

Inteligência

Você acredita que estará no seu emprego em dezembro de 2017? Isso, é claro, no caso de você ainda ter um. Caso não tenha mais, por um motivo qualquer: você acredita que conseguirá arrumar um outro, em condições mais ou menos parecidas com o que tinha, até o fim deste ano? É melhor nem perguntar nada aos que nunca tiveram emprego algum na vida, como acontece com um número cada vez maior de jovens brasileiros, mesmo os de boa formação escolar. Parece desagradável fazer esse tipo de pergunta, e mais desagradável ainda ouvi-la — a vida já é complicada o suficiente para a pessoa ficar lendo sobre questões difíceis. Mas não olhar para as realidades não costuma levar ninguém a lugar nenhum. Sempre dá, usando a imaginação, para tapear a vida por algum tempo. Só por algum tempo, porém, e o problema está justamente aí. Esta revista, de qualquer forma, não tem entre os seus propósitos a obrigação de evitar os assuntos incômodos para o leitor — e ainda bem, porque no Brasil de hoje uma missão dessas seria perfeitamente impossível.

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Os números à disposição no momento são de dar medo em qualquer cidadão que precisa ganhar a vida com o seu trabalho. Há estimativas de que quase 60% dos empregos existentes hoje nos países desenvolvidos correm o risco de sumir em médio prazo. Não adianta se consolar com o fato de que o Brasil não é um país desenvolvido. Estamos, ao contrário, no grupo de sociedades nas quais a maior parte dos postos de trabalho é considerada vulnerável — são os empregos “informais”, ou temporários, ou de baixa qualidade, baixo salário, baixa produtividade e baixa proteção social, devido a um poder público cronicamente quebrado. Na China, com quem o mundo tanto conta, as cifras são especialmente horríveis: os empregos ameaçados, lá, chegam perto dos 80%. Calcula-se que atualmente mais da metade dos americanos trabalha por conta própria; eles desistiram, simplesmente, de em­pregar-­se numa companhia, no governo ou em algum tipo de organização com folha de pagamento. Cerca de 200 milhões de pessoas em idade de trabalhar, em todo o mundo, entraram em 2017 sem ter uma colocação remunerada. Metade dos empregos a ser criados na Europa de hoje em diante vai exigir uma capacitação profissional muito alta — será preciso saber coisas que você não sabe, e talvez já não consiga mais aprender.

Ninguém pode ter certezas científicas sobre a exatidão desses números, calculados por organizações internacionais. Mas não há dúvida de que as cifras apontam na direção certa — ou alguém acha que a vida real mostra o contrário disso aí? A chave da questão, basicamente, está no arrasador, inquietante e muitas vezes perverso conjunto de perturbações trazidas para países e pessoas pelo que vem sendo chamado há tempos de “sociedade da inteligência”. O que vale, cada vez mais, é a tecnologia de vanguarda e as mudanças que vêm sendo impostas a todos pelo avanço quase diário do computador em tantas áreas do conhecimento humano — automação, robôs, genética, aprendizado automático, biotecnologia. A regra, agora, é pensar em termos de fábricas, escritórios, casas, prédios ou máquinas “inteligentes”. A nanotecnologia faz progressos constantes na produção de estruturas e materiais a partir de escalas expressas em átomos. Estão aí a internet móvel, o aumento cada vez mais rápido da capacidade de processamento de dados dos computadores, a nova matemática, ou nova engenharia, ou nova medicina, e por aí afora. São coisas com um grau de complexidade muito acima da capacidade de compreensão da imensa maioria das populações; em países que vivem em situação permanente de catástrofe na educação, como o Brasil, as coisas ficam apenas piores. Tudo isso custa empregos — algo como 30 milhões de postos de trabalho extintos nos últimos dez anos.

As condições não vão melhorar em 2017, nem depois; não há previsões a respeito de quando essa monumental encrenca vai acabar. Uma coisa é certa, com segurança absoluta: a resposta errada para a situação é chamar o governo. No Brasil, então, a mera ideia é positivamente absurda — se os atores da vida pública não entendem, nem de longe, qual é o problema, como poderiam propor alguma solução? O máximo em que conseguem pensar é aumentar impostos, escrever leis para anular a realidade e criar mais despesas para o Erário. São o exato contrário de qualquer noção na qual possa entrar a palavra “inteligência”. Querem ficar no passado — e essa opção não existe.

Imagem do Dia

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Chaerul Umam

Trump e seus limites

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Num mundo de enigmas, só tenho certeza de que aqui estamos num buraco, sonhando em escapar dele
Fernando Gabeira

Uma vergonha nacional

No início deste mês completaram-se dez anos da promulgação da Lei 11.445/07, que estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico. Um dos princípios fundamentais da lei foi o da universalização do acesso da população aos serviços de água e esgoto. À época da sanção da lei pelo então presidente Lula da Silva, a meta definida pelo governo federal foi garantir que até 2033 todos os cidadãos brasileiros tivessem o direito de viver num local com acesso à água encanada e coleta de esgoto. Este seria um objetivo a ser atingido, mas não a ser comemorado. Conseguir resolver, no século 21, uma mazela que já deveria ter sido resolvida no século 19 não é proeza que figure no rol dos grandes triunfos nacionais.

Um estudo elaborado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), com base em dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), projeta agora que a almejada universalização não se dará antes de 2054. Hoje, 82,5% dos municípios brasileiros têm acesso à água encanada e menos da metade (48,6%) dispõe de sistemas de coleta de esgoto. O índice de cidades que tratam adequadamente os seus dejetos é ainda mais desolador: apenas 39%. É um quadro calamitoso que pode ser explicado pela dificuldade dos municípios em administrar o problema, seja por falta de corpo técnico especializado, seja por desinteresse. Some-se a isso o fato de os investimentos em saneamento básico não estarem dissociados dos demais gastos públicos, o que representa um forte obstáculo ao avanço das obras que visam à ampliação do serviço. Em função do dramático quadro de crise econômica por que passa grande parte dos municípios brasileiros, muitas prefeituras não têm acesso a crédito e a parcerias com potenciais investidores, o que faz com que os projetos de crescimento da rede de água e esgoto sejam abandonados como tantos outros.

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Os danos mais evidentes causados pela falta de saneamento básico são observados na esfera da saúde pública. Problemas relativamente simples, como diarreia e vômito, não raro levam a outros mais graves, como os quadros de severa desidratação que podem ser fatais. Além destes, doenças como febre tifoide, cólera e leptospirose, há muito erradicadas de nações desenvolvidas, ainda representam uma ameaça aos brasileiros. A questão ainda se torna particularmente crítica diante da proliferação de doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, como a dengue, a febre chikungunya e as infecções pelo vírus zika. O mosquito encontra em ambientes insalubres as condições ideais para se desenvolver.

Além das consequências sobre a saúde, a falta de saneamento básico afeta diretamente a economia e a educação, comprometendo o desenvolvimento do País. Segundo estudo do Instituto Trata Brasil, em parceria com o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, o Brasil figura como a nona economia mundial, mas ocupa a 112.ª posição num ranking de saneamento composto por 200 países. É impensável que uma educação de qualidade possa florescer num ambiente onde os alunos convivem com esgoto a céu aberto. Igualmente comprometida fica a produtividade de trabalhadores submetidos a condições insalubres.

Sucessivos governos parecem lamber com gosto certas chagas que há muito já deveriam ter sido curadas estivessem os governantes inspirados pelo mais elevado espírito público. Não há nação livre de problemas. Entretanto, o que difere as que estão em estados civilizatórios mais avançados é a natureza das mazelas que enfrentam e, sobretudo, o vigor manifestado por seus governantes para eliminá-las.

O saneamento básico é um direito fundamental do cidadão. Cabe à sociedade organizada cobrar vigorosamente do poder público – em todas as esferas de governo – ações no sentido de resolver de uma vez por todas esse gravíssimo problema nacional. E cabe aos governantes enfrentar com urgência e seriedade o estado vergonhoso em que se encontra a oferta de um serviço público essencial. Se não por dever de ofício, ao menos por decência.

Roletas russas da vida

Uma decisão, um passo, um segundo, um minuto, uma virada errada, uma distração, um tropeção, uma bala, uma chuva, uma rua, uma carona, uma queda. Qualquer coisa. A vida é frágil. A terra é frágil. O ser humano vive em uma corda bem bamba e muito fina desde que nasce até que morre. Tudo pode acontecer. Inclusive nada. Essa é a verdadeira loucura da existência


Como é que pode? Como é que pode? Todo mundo batendo cabeça e se perguntando das ironias da vida quando fatos horríveis assim acontecem. Os inesperados. Ouvi e li de um tudo, e são dezenas as fantásticas teses conspiratórias que garantiam- já minuto seguinte ao acidente que matou o ministro do STF Teori Zavascki – que foi um atentado. Um assassinato. Claro, investigue-se, detalhe por detalhe, peça por peça, minuciosamente, o que ocorreu. Não deixem essa virar mais uma lenda urbana que viva no imaginário popular assombrando o país.

Mas eu não quero ser considerada burra nem ingênua ao ter certeza de que foi acidente.

Acidentes com aviões particulares têm enorme chance de matar personalidades. Gente conhecida. Gente importante. Gente famosa. Quem é que anda para lá e para cá em aviões particulares? Em helicópteros? Eu? Você? Até já andei muito, mas sempre de carona, de estepe, por algum motivo profissional, acompanhando algum cliente, como jornalista, nem sabia se meu nome contava na lista de passageiros. Como as duas mulheres que, além do piloto, do dono da aeronave – pessoa entre as mais bem relacionadas do país – e do ministro, estavam lá e tentavam chegar à bela Paraty em um chuvoso e cinzento dia de verão. Que tipo de sabotagem seria essa que só ocorreria na ponta da pista? Quem teria contratado São Pedro para soprar nuvens? Sofisticada essa ideia de fazer cair no mar, para afundar e ninguém achar os destroços.

Ah, mas era o ministro que cuidava da Lava Jato! Sim. Podia ser outro ou outra da mais alta Corte. Podia ser Moro, algum membro (ou todos) da força tarefa do Ministério Público. Algum artista – eles se deslocam muito em aviões. Para “pegar” o ministro não haveria outra forma? – veneno, urticária, espiã, manga com leite, jogar um piano da janela quando ele estivesse passando, cortar o cabo do elevador, infiltrar uma cobra venenosa no gabinete dele? (se bem que essa opção não pode ainda ser descartada…)

São pessoas – não há redoma que possa protegê-las delas mesmo. Andam de carro, de moto, de avião, de bicicleta. Podem escorregar no tapete do banheiro depois do banho. Depende do que fazem, como vivem, onde andam, e até do que comem – são protegidos, mas seguranças não são infalíveis e nem conselhos de cuidado com isso ou cuidado com aquilo e que em geral são ignorados. Igual à gente quando foi criança, a mãe disse não vá, e birrentos demos com a cara na parede – alguns têm cicatrizes que lembram esse dia a vida toda. Claro, quando não foi mortal de vez, e valeu a vida.

A verdade é que ninguém nunca espera que vá acontecer o que pode acontecer. Ninguém acredita que poderá ser retirado desse mundo de forma tão abrupta que não tenha nem tempo de respirar, dizer tchau. Creio que nem quem pratica esportes e outros passatempos radicais pensa nisso. No xeque-mate.

E não adianta ter medo. O medo não salva. É o famoso quando tem de acontecer acontece. Deus resolveu – para quem nele acredita. Fatalidade. A hora da morte.

Há riscos e perigos. Risco é a probabilidade. Perigo é uma ou mais condições que têm o perfil de causar ou contribuir para que o Risco aconteça. Não se mede e não há como eliminar o Risco. Já os perigos até poderiam ser prevenidos, analisados, mensurados e corrigidos.

São perigos que nos rondam como a bala do tambor do revólver de uma roleta russa. Ou como se andássemos sempre com pés enormes em campos minados.

Podia ser um terremoto, um maremoto, uma enchente, uma avalanche, um ataque de coração. Podia até ser um atentado.

Mas foi um avião e um passeio interrompido. Que esperamos não interrompa as esperanças do povo brasileiro na Justiça e no desfecho da mais rumorosa tentativa de faxina e descoberta de quem nos bateu a carteira.
Marli Gonçalves

Raízes

Somos cordiais, somos selvagens

Comemoraram-se – pouco – no ano passado os 80 anos da publicação de Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda. Foi neste livro que o autor, um dos maiores pensadores brasileiros do século 20, introduziu a ideia do brasileiro como um homem “cordial”. Ao contrário do que se pode pensar, “cordial”, aqui, não tem a conotação de simpatia, acolhimento ou solidariedade. Representa, antes, nossa inclinação para rejeitar relações impessoais, nossa dificuldade em forjar regras e instituições, nossa relutância em separar interesse públicos de conveniências privadas.
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Em artigo recente no Financial Times (A Brazilian bribery machine, 28/12/2016), Joe Leahy mostra em detalhes como Marcelo Odebrecht transformou uma grande empreiteira numa fantástica operação cuja atividade principal gravitava em torno de práticas criminosas. Eis, aqui, um homem “cordial”.

Nossa cordialidade também não nos faz generosos. A Charities Aid Foundation publica anualmente uma pesquisa que compara práticas de solidariedade social entre 140 países. A síntese deste trabalho é o cálculo de um “índice de generosidade” baseado em três medidas: doação de dinheiro, disposição de ajudar pessoas estranhas e tempo dedicado para trabalhos voluntários. O Brasil não está bem na foto. Na última enquete, de 2015, ficamos em 68.º lugar na classificação geral. Note-se que este ranking de generosidade guarda pequena relação com a renda per capita de cada país. Entre os dez países mais generosos há países ricos, como Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido e Irlanda. Mas deste grupo também fazem parte Birmânia (o grande campeão, pelo segundo ano consecutivo), Sri Lanka e Indonésia. Os economistas muitas vezes fazem uso do índice de Spearman para medir a correlação ordinal entre duas séries (quanto mais próximo de 1 o valor do índice, maior a correlação). No caso entre o índice de generosidade e a renda per capita, a correlação é muito baixa, de apenas 0,267.

Não somos generosos e somos violentos. Dados do Banco Mundial indicam que o índice de homicídios no Brasil alcança 24,6 para cada 100 mil habitantes. Para um conjunto de 68 países, estamos na 64.ª posição. Mais violentos que o Brasil, apenas Colômbia, El Salvador, Guatemala e Honduras. Neste caso, há uma clara correlação com a renda. Países mais ricos tendem a ser menos violentos. A renda per capita média dos dez países menos violentos é de US$ 41,67 mil, contra apenas US$ 11,28 mil na média dos dez países com maior taxa de homicídio. A correlação ordinal entre renda e homicídio é relativamente alta: 0,67.

Mais que pesquisas e índices de correlação, as cenas de selvageria e os massacres nos presídios brasileiros estão a demonstrar que fracassamos na construção de uma sociedade justa e fraterna. O crescimento econômico não é a chave para a resolução de todos os males, mas as coisas ficam ainda mais difíceis quando empobrecemos. A recessão deve acabar em 2017, mas não está no radar a volta de altos índices de crescimento. A retomada será gradual e dolorosa. O desemprego vai ainda subir. Pelas estimativas do mercado, chegaremos a 2020 com uma renda per capita menor que a de 2010.

Uma década caminhando para trás certamente não contribuirá para enfrentarmos as mazelas de uma sociedade marcada pela violência e pela falta de solidariedade. O governo pode fazer sua parte avançando, como for possível, nas reformas econômicas. Mas, se quisermos construir uma sociedade próspera e mais solidária, teremos de deixar nossa cordialidade para trás.

Empresas vermelhas

A intrincada e vasta trama de relações entre o PT, o Estado e as empreiteiras, revelada pela Lava Jato, mostra uma face do capitalismo brasileiro que só com muita dificuldade pode ser considerada expressão de uma economia de mercado. O partido sempre se caracterizou doutrinariamente por ser socialista, contra o lucro e a economia de mercado, que, segundo ele, deveriam ser controlados estritamente. Resultado disto foi, por exemplo, o fracasso do programa de concessões, por causa, principalmente, das tentativas de controle do lucro, considerado um mal.

Da mesma maneira, as privatizações foram objeto de opróbrio, pois o Estado deveria ser onipresente. Tudo o que cheirava a “privado” deveria ser simplesmente descartado. Aliás, além de ser um ativo interventor na economia, o Estado deveria também ter protagonismo econômico. Dentre suas tarefas, deveria promover empresas estatais e privadas, que seriam as campeãs nacionais.

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Do ponto de vista das relações internacionais, tivemos uma escolha igualmente socialista, privilegiando parceiros como os países bolivarianos e africanos. Lá também as empresas obedecem aos ditames do Estado-partido, algo que certamente aparecerá com os desdobramentos da Lava Jato.

Ora, essa ideologia, esboçada aqui em alguns de seus traços, teve como instrumento empresas que se prestaram a esse serviço de olho em lucros volumosos, possíveis somente pelas escolhas partidárias feitas. Denominemos essas empresas de “vermelhas”.

Em que consistia a sua função, do ponto de vista partidário? Em financiar o projeto socialista. Ou seja, empresas símbolos do capitalismo brasileiro voltaram-se para a implementação de um projeto que, em tudo, contraria os princípios de uma economia de mercado, da concorrência e do respeito aos contratos. Lucro, para elas, só servia se fosse astronômico e baseado numa escolha política. Não seria o resultado do menor preço de seus produtos num mercado concorrencial.

Enfim, o PT abominava o lucro, mas produzia lucros exorbitantes para as empresas que o financiavam. E quem pagava a conta, evidentemente, eram os cidadãos e as empresas – não vermelhas, claro – por meio do pagamento de seus impostos.

Não deixa de ser interessante o paradoxo: empresas vermelhas financiavam um projeto socialista, que por definição seria contra os princípios que regem uma economia de mercado e, em tese, deveriam nortear a atuação de qualquer empresa.

As empresas “selecionadas”, contudo, não precisariam obedecer aos princípios do capitalismo. Elas se situariam fora dessa órbita, devendo minar seus próprios critérios e valores. O discurso anticapitalista petista concordava unicamente com os “princípios” dessas empresas, as vermelhas. A “coerência” seria preservada! A cor e a estrela continuariam a brilhar.

O preço de tal distorção ideológica foi a subversão completa dos princípios da economia de mercado. Listemos alguns.

A intervenção estatal, no segundo mandato de Lula e nos dois de Dilma Rousseff, foi erigida em dogma, não admitia nenhuma contestação. Caberia ao Estado determinar margens de lucro em concorrências públicas e atender, de forma privilegiada, às empresas que se prestassem aos seus desígnios socialistas e estatizantes. Chegou-se ao extremo de determinar as tarifas de energia elétrica, produzindo um déficit que até hoje prejudica as empresas do setor. Mas o Estado petista tudo sabia... Deu no que deu!

O lucro, conforme observado, foi considerado algo a ser evitado, uma espécie de chaga que não deveria ser tocada. Entretanto, as empresas vermelhas, as que financiavam o projeto socialista, ditavam os seus preços, em conluio entre si, onerando o cidadão brasileiro e tratando Estado como objeto de seu butim. Tudo isso seguindo as orientações estatais e partidárias.

A livre-iniciativa foi outro princípio completamente pervertido, pois livre era apenas o intervencionismo estatal. As empresas eram previamente escolhidas tanto para participar das concorrências públicas quanto na seleção das que deveriam ser declaradas vitoriosas nessa curiosa expressão do “capitalismo” brasileiro.

Observe-se que não se trata simplesmente de um capitalismo de compadrio, aquele que favorece determinados grupos que não pretendem seguir as regras da livre concorrência; mas de um projeto político que procurava subverter de dentro os princípios e valores de qualquer economia de mercado. Ou seja, empresas vermelhas deveriam pôr-se a serviço da instauração gradativa de uma sociedade socialista.

Para essas empresas e para o projeto estatizante petista não valeriam as regras de uma economia concorrencial, aquela em que as empresas vencedoras, as que se afirmam no mercado, são as que se destacam pelo mérito, pela competitividade e pela inovação.

Um dos princípios sagrados de uma economia de mercado consiste no respeito aos contratos e na segurança jurídica. Ora, o projeto petista desembocou na mais completa insegurança, em que apenas as empresas vermelhas tinham a segurança de investir, visto que seus contratos eram sistematicamente alterados para auferirem maiores lucros. As demais ficavam à mercê do arbítrio.

Há, ainda, todo um novo capítulo do que está por vir, quando a Lava Jato passar a investigar mais sistematicamente as conexões dessas empresas com certos países africanos e bolivarianos. A operação passará a revelar como os governos petistas serviram para o enriquecimento ilícito de seu partido e de seus integrantes, alguns até ficaram milionários.

Será a “Operação Angola”, que projetará uma nova luz sobre as empresas vermelhas e o modo de atuação do PT, corrompendo governos estrangeiros e fazendo lá o que fizeram aqui. Desnudar-se-á, então, toda uma trama de relações em que os discursos de solidariedade se mostrarão como mera encenação, um disfarce do vermelho que a tantos encantou.

Favela rica, favela pobre: desigualdades nas baixas rendas de São Paulo

As favelas de São Paulo apresentam situações bastante diversas. Enquanto algumas delas possuem indicadores de acesso a água encanada, esgoto e coleta de lixo praticamente universalizadas, em outras a situação é similar a de Melgaço, no Pará, que possui o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. Os dados fazem parte de um estudo obtido pelo EL PAÍS feito durante o ano passado pelo Centro de Estudos da Metrópole, ligado à Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Prefeitura de São Paulo, para orientar as políticas de habitação da cidade.

A pesquisa sobrepôs as cartografias das habitações precárias da Secretaria Municipal de Habitação aos dados do Censo de 2010, o último levantamento com informações detalhadas da infraestrutura da cidade. Com isso, foi possível dividir as favelas em cinco agrupamentos distintos. O primeiro deles, de melhor situação, é representado por 1045 favelas das 2096 favelas da cidade (49,6%): são elas as que têm acesso quase universal água, esgoto sanitário e coleta de lixo por serviço de limpeza. Já, na outra ponta, existem 84 favelas com a pior situação: apenas 35,6% têm acesso à água, 9,9% a esgoto e 45% à coleta de lixo. O estudo já havia sido feito em 2003 com dados do Censo de 2000 e foi possível verificar que, neste período, a desigualdade entre as favelas aumentou, explica o coordenador da pesquisa Eduardo Marques, professor de ciências políticas da USP. No entanto, como os dados são de 2010, eles não medem as possíveis melhorias ocorridas durante as gestões de Gilberto Kassab (2006 a 2012) e de Fernando Haddad (2013 a 2016).

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"Pudemos perceber que o processo de favelização continua acontecendo. Continua havendo um crescimento da população favelada e dos domicílios em favela em um ritmo superior ao da população geral do município. Mas, apesar de ser maior, esse crescimento é baixo. Não há um processo intenso de favelização", ressalta Marques. "As características sociais médias das favelas continuaram melhorando bastante, não tem piora. E como elas eram muito piores do que no resto da cidade, elas melhoraram num ritmo muito melhor do que o conjunto da cidade. Mas a pesquisa também indica a existência de um conjunto de favelas e loteamentos com características muito precárias. Por isso, a desigualdade entre as favelas aumenta. Não porque tenha favelas que pioraram de situação, mas porque a maioria das favelas fica melhor. Porém, continua havendo um conjunto delas com uma situação ruim", explica ele. 

O pesquisador afirma que não está claro o que faz com que essas favelas sejam piores, já que os cinco agrupamentos estão espalhados pela cidade de forma igualitária. Ou seja, nas franjas da cidade é possível achar tanto favelas do melhor grupo quanto do pior. "A dimensão geográfica não é a que explica. Pode ser que as favelas em piores condições sejam mais frequentemente em terrenos privados, que é uma informação que a gente não tem. Estar em área privada dificulta a colocação de infraestrutura por parte do poder público. Tem uma associação entre a precariedade das favelas e tempo. Elas [em pior situação] tendem a ser um pouco mais recentes. Mas não são só favelas mais recentes. Tem favelas menores. O poder público tende a centrar energia nas de maior porte", ressalta o professor. "Tudo isso aponta para a necessidade da continuidade das políticas de urbanização de favelas no município. Não se sabe como o novo governo municipal vai tratar essa questão, mas é imperativo que programas de urbanização de favelas venham a ser executados porque mesmo as favelas em melhores condições estão longe ainda de serem equiparadas às populações dos outros bairros. A grande maioria delas ainda tem condições piores do que o resto da cidade", ressalta Marques.

Paisagem brasileira


Chapada das Mesas (Maranhão)

As séries

A televisão finalmente encontrou um produto original e divertido do qual está tirando excelente proveito: as séries. Elas existem há muito tempo no cinema, pois me recordo de que, em minha longínqua infância cochabambina (na Bolívia), todos os domingos, com meu amigo Mario Zapata, o filho do fotógrafo da cidade, depois da missa na La Salle íamos ao cine Achá para ver os três episódios do filme em série da vez – costumavam ter doze–, aventureira e tranquilizante, porque nela os bons ganhavam sempre dos maus. Mas depois o cinema as esqueceu, e agora a televisão as ressuscitou com sucesso.

São geralmente muito bem feitas, com grande estardalhaço na mídia, e mantêm a continuidade, apesar de os roteiristas e diretores mudarem de um capítulo para outro e as histórias se alongarem ou encurtarem conforme o interesse que despertem nos telespectadores. Costumam ser entretenimento puro, sem maiores pretensões, com algumas exceções, como The Wire, fascinante exploração dos guetos e bairros marginais de Baltimore em que, acreditem ou não, quase todos os atores negros que tão bem pronunciam entredentes a gíria local... são ingleses!, e Borgen, sobre as intrigas e dilemas políticos desse civilizado país que é a Dinamarca. Mas talvez a diferença mais significativa entre as séries que distraem milhões de telespectadores e as que eu via no cine Achá é que nas de agora invariavelmente os maus vencem os bons. Nelas, se alguém comete a impertinência de compará-las com o mundo real, ocorrem coisas disparatadas, absurdas, loucas. Mas isso nada importa, porque uma ficção, seja nos livros, no palco ou em uma tela, se estiver bem contada, é crível, quer coincida ou destoe da vida que conhecemos através da experiência.


Algo a admirar nas séries norte-americanas, além da qualidade técnica e da formidável variedade de cenários e figurantes de que costumam dispor, é a liberdade com que utilizam fatos e personagens da história recente, geralmente desnaturalizando-os, e a ferocidade com que, frequentemente, manipulam e distorcem as instituições e autoridades para conseguir maiores efeitos na narrativa e surpreender e envolver mais o seu público. House of Cards, por exemplo, uma das melhores, descreve a irresistível ascensão no labirinto do poder norte-americano de um casal de políticos inescrupulosos, cínicos e delituosos que, deixando ao longo de suas peripécias todo tipo de vítimas inocentes, incluindo algum assassinato, chegam nada menos que à Casa Branca com toda a legalidade. A série é muito divertida, os atores são excelentes, e a moral da história que fica se remoendo na memória do telespectador é que a política é uma atividade desprezível e criminosa, na qual só triunfam os canalhas, e na qual as pessoas decentes e idealistas são sempre esmagadas.

Não menos negativa é a visão da realidade política estadunidense e internacional na magnífica Homeland, cuja sexta temporada acaba de começar e que eu sigo com a avidez com que seguia, quando jovem, as sagas de Alexandre Dumas. Aqui não é a presidência dos Estados Unidos que está contaminada, mas nada menos que todas as agências de inteligência, a começar pela celebérrima CIA, cuja direção é facilmente infiltrada por agentes russos ou jihadistas ou a mando de imbecis aos quais qualquer inimigo faz de bobo ou corrompe, sem que os heroicos Carrie Mathison – um personagem psicopatológico que parece criado para o divã do doutor Freud –, Peter Quinn e Saul Berenson possam fazer nada para salvar o país e o mundo livre de sua inevitável derrota ante as forças do mal.

As séries são uma continuação direta das radionovelas e telenovelas e, sobretudo, dos romances seriados do século XIX – os famosos folhetins –, que, a princípio na França e Inglaterra, mas depois em toda a Europa, os jornais publicavam semanalmente, e nos quais incorreram alguns grandes escritores como Dickens, Balzac e Dumas. Têm como denominador comum a agilidade, a efervescência da narrativa, a indisfarçável vontade de fazer os leitores ou espectadores se divertirem e nada mais, a falta de ambição intelectual ou estética e a simplicidade elementar da estrutura. E, também, a inverossimilhança. Nelas tudo pode acontecer, porque seus autores e seu público fizeram de cara um pacto claríssimo: acreditar que se trata de ficção, invenções divertidas que não têm nada a ver com a realidade.

Isso é mesmo verdade? Se esmiuçarmos com atenção o ano que acaba de terminar, no aspecto fundamentalmente político essa verdade se parece muito com uma mentira. Porque somente em uma série televisiva se concebe que tenha ganhado as eleições presidenciais um senhor como Donald Trump, que, sem que sua voz trema, diz que os mexicanos que emigram para os Estados Unidos são “ladrões, estupradores e assassinos”, que o Brexit é um exemplo que outros países europeus deveriam seguir, que menospreza a OTAN tanto como à União Europeia e que admira Vladimir Putin por sua energia e liderança. As façanhas do ex-agente da KGB na Alemanha Oriental, agora no comando da Rússia, não têm por acaso algo das proezas terríveis e inauditas desses vilões das séries? Desde que subiu ao poder, engoliu parte da Ucrânia, mantém os enclaves coloniais da Abkházia e da Ossétia do Sul na Geórgia, ameaça invadir os países bálticos e, graças à sua intervenção armada na Síria, tem agora uma influência e protagonismo de primeira ordem no Oriente Médio.

Diferentemente do que ocorria durante a URSS, os jornalistas e opositores incômodos não vão para o Gulag, só morrem envenenados, em ataques a tiros ou espancamento nas ruas por misteriosos delinquentes que depois desaparecem como que num passe de mágica. Na Turquia, uma suposta tentativa de golpe de Estado deu margem à repressão mais selvagem e ao retorno do obscurantismo religioso e o despotismo que se acreditava ser coisa do passado. E a Venezuela, potencialmente um dos países mais ricos da Terra, no ano de 2016 chegou, na frenética corrida para a desintegração para a qual é conduzida pelo bando de demagogos e ineptos que a governam, a uma espécie de apoteose da crise terminal na qual o “socialismo do século XXI” a mergulhou. Será esse o destino da França se, como insinuam as pesquisas, a senhora Marine Le Pen, admiradora sem disfarces de Trump e de Putin, ganhar as próximas eleições presidenciais?

Ou seja, depois de tudo, bem se diria que o melhor espelho das coisas horripilantes que se sucedem ao nosso redor neste despontar do ano 2017 não está na grande literatura nem nos filmes realmente criativos, mas nessas séries que, como os “personagens transitáveis”, assim chamados por Flaubert, são meras pontes que cruzamos e esquecemos no mesmo instante durante esses passeios que damos para desanuviar a cabeça depois de muitas horas de trabalho.

Então, já que as coisas andam deste jeito sinistro, vamos nos distrair vendo séries na tela da TV, neste mundo surpreendente que, depois da extinção do comunismo, alguns ingênuos acreditávamos que havia empreendido um caminho resoluto para a liberdade e a prosperidade em vez de se transformar em nada mais, nada menos, do que um reality show.

'Assaltantes do Erário' são piores do que PCC

 
O dinheiro que desce pelo ralo da corrupção — sistematicamente, enquadrilhadamente —, é o que falta para o Estado desempenhar bem o seu papel no plano da infraestrutura econômica, social, prestação de serviços públicos, educação de qualidade, saúde. O assaltante do erário, no fundo, é um genocida. É o bandido número um
Carlos Ayres Britto

Providências governamentais

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A reunião do ministério foi naquele dia secreta, isto é, não foi anunciada nos jornais. Especialmente convidados, compareceram também, com o informante, o prefeito de polícia e o inspetor dos detetives (aguazil-mor).

El-Rey Pechisbeque abriu a sessão fazendo um gesto de quem ia colher o manto de arminho, crivado de abelhas merovíngias, e depositou em cima da mesa uma magnífica “Santa Luzia” de cinco olhos, todos eles com incrustações de marfim e ouro. Era o seu cetro característico de Carlos Magno com que figurava os seus retratos pululantes.

Dirigiu-se, em primeiro lugar, ao ministro das Tropas Militares. Ao contrário das outras sessões ministeriais, Pechisbeque, o grande rei da Pacóvia, não estava de bom humor e muito menos gaiato. Falou gravemente:

— Sr. dr. Karagafulos: o que vossa excelência sabe de anormal da tropa?

— As praças andam muito contentes com o novo uniforme sudanês que lhes impingi; mas os oficiais não estão contentes. Tenho tomado as providências; mas…

— Bem. Era de esperar. Mas não há nada como um dia atrás do outro.

— O poderoso rei da Nova Zembla não os elogiou tanto?

— Não os cumulou de distinções e condecorações? Quem foi que promoveu a visita do rei Savoff a nossa terra e, portanto, os elogios que eles receberam, e os “crachás”?

— Fui eu? Ingratos! Mil vezes ingratos! Contudo…

— Eles se queixam, acudiu o ministro dos Buquês de Recreios Reais; eles se queixam da carestia da vida.

— Ora, bolas! Soldado é soldado! Deve estar afeito a tudo. Os de vossa excelência, sr. ministro dos meus Buquês, também se queixam?

— Também, majestade; mas a marinhagem, nas horas de recreio, pesca de caniço, crocorocas, micholas, canhanhus, cação-viola; e assim melhoram o rancho ou vendem o pescado, para aumentar o soldo. Encontraram um derivativo…

— E os oficiais?

— Também se entregam à pescaria.

— Sábia gente!

— Assim mesmo, majestade, não andam contentes; murmuram, observa o ministro de Vistas Escuras.

— Como?! — admirou-se Pechisbeque. — Se eles,

para pescar, não pagam imposto, não empatam capital em canoas e botes? Qual! Como é que vossa excelência sabe disso?

— Por informações aqui do excelentíssimo juiz de fora Jemi.

— Sr. Jemi — indagou o rei —, como é que o senhor tem notícia desse fato?

— É, majestade sereníssima, é o que me informa o aguazil-mor que aqui está, a meu lado.

— Seu Manchique — fez arrebatadamente o rei —, como é isso?

— Trago-lhe aqui um relatório completo do que se diz na cidade.

— Dê-mo, Manchique.

O chefe dos aguazis passa ao poderoso imperante um calhamaço grande como todos os diabos, Pechisbeque folheia-o, põe-se a lê-lo aqui e ali; e, afinal, vira-se para o ministro das Vistas Escuras e diz:

— Sr. ministro: vossa excelência precisa combinar com meu mano, o condestável do Reino e prefeito do Pretório, diversas providências de urgência. Não há que contar com este povo. Dou-lhe festanças e… sr. ministro das Vistas

Escuras, tome as suas providências?

— Quais, majestade?

— É preciso adquirir mais “tanks”, e dos mais poderosos; requisitar imediatamente canhões do Ministério da Tropa, que neste momento recebe ordem para entregá-los; comprar modernos e poderosos aviões de guerra. Tudo isto deve ser entregue à “Guarda do Pretório”, que está

sob o comando do mano, no mais breve espaço de tempo. A “guarda” será desde já aumentada no dobro do atual efetivo. Res, non verba, sr. ministro.

E, tímido e obediente, o ministro do Tesouro, até ali calado, resolveu então falar:

— Majestade, e a crise? E o câmbio? E a carestia? E a miséria que vai pelo povo?

— Mas — falou o rei amigavelmente —, Homero, você não está vendo que tomei agora mesmo as necessárias providências, para solucionar todas as dificuldades que o país atravessa. Você não ouviu o que eu disse ao “Vistas Escuras”. Está tudo resolvido. Agora temos que tratar dos festejos comemorativos ao aniversário do príncipe herdeiro da Birmânia. Mãos à obra!

Lima Barreto, "Sátiras e outras subversões"

Teori-a da conspiração

A princípio, a queda de um avião durante operações de pouso em Angra dos Reis e Paraty, no Triângulo das Bermudas tupiniquim, não é uma ocorrência estranha. Dezenas de aeronaves na região conhecida como serra do Mar perderam o rumo e se chocaram com algum obstáculo do planeta nos últimos 20 anos.

As condições da baía de Angra e da serra do Mar são naturalmente adversas, as nuvens se acumulam contra o paredão da serra, gerando até 200 dias de chuvas por ano. Neblina, vento, chuvas, trovoadas e muito calor são fenômenos normais e rotineiros, especialmente no verão.

Nesse trecho costeiro desapareceu Ulysses Guimarães, deixaram a vida Eduardo Campos e, agora, Teori Zavascki, como ao menos uma centena de vítimas durante voos malsucedidos.


Pousei, por dez anos, em Angra e Paraty e já me encontrei com ao menos 20 pousos abortados de última hora, ou voltando para Minas, ou descendo no Rio de Janeiro para alcançar Angra excepcionalmente de carro. Também navegando pelas águas da baía homônima, e nas praias, já recolhi destroços de helicópteros e outras aeronaves, abatidos por fenômenos atmosféricos imprevisíveis e repentinos.

Nenhum piloto gosta de pousar em Angra, a não ser nos raros dias de céu de brigadeiro. A aproximação para o pouso não obedece à lógica dos ventos. As pistas são curtas e operam apenas no sentido do mar para a terra, já que a serra do Mar, de 900 metros de altitude, encostada na pista, não permite operar no sentido da terra para o mar.

Quem desce no Espírito Santo ou na Bahia realiza o pouso em 90% das vezes exatamente como é comum. As pistas podem operar no sentido que oferece mais segurança com o vento de proa. O contrário, com vento empurrando pela popa, deixa crítica a operação.

A serra, numa cabeceira da pista, admite operar pouso no sentido mais adverso. E, se necessário for arremeter – transformar o pouso de última hora numa decolagem –, a operação será crítica, de ângulo muito fechado. Nessa situação teria perdido sustentação o moderno jato que carregava Eduardo Campos.
Portanto, estatisticamente o risco de acidente em Angra e Paraty é maior que em outros locais do país. Dessa forma, o acidente da última quinta-feira se deu num local especialmente adverso, ou simplesmente reconhecido como crítico e que recomenda operações, especialmente de pouso, apenas em dia de tempo bom.

Contudo, que azar... para quem esperava que a justiça, enfim, mesmo que tardia, chegasse ao resultado almejado pela nação brasileira, interrompendo o curso da Lava Jato e abrindo a única e rara hipótese para que o rumo da operação de faxina possa sair dos trilhos.

Obviamente o episódio abre brecha para que as centenas de acusados de envolvimento com os bilionários desvios da Petrobras e demais estatais passem por outras mãos, escolhidas pelo presidente e referendadas pelos réus, parlamentares acusados.

Mesmo que a fatalidade seja a principal hipótese do desastre nesse triângulo infausto de Angra, ninguém tira a possibilidade, até o momento (como se deu com o avião de Eduardo Campos), que um artefato programado tenha inutilizado uma turbina próximo da chegada ao destino, impossibilitando a operação normal de pouso.

Se o acidente entra num campo de “aceitabilidade estatística”, o que foge da “normalidade“ é a queda de aeronaves em momentos estranhos e que mudam, ou invertem, o sentido da história do país.

O desastre com o avião da Gol – colocado em rota de colisão por erro (involuntário...?) do controle aéreo (da Aeronáutica) de Brasília em 2006 – barrou a queda nas pesquisas de Lula (encalacrado no escândalo do Hotel Ibis). Não é que afirmo o envolvimento do presidente, mas alguém que tivesse um forte interesse na vitória ter manobrado para “fabricar” o incidente. A morte de Eduardo Campos, em 13 de agosto de 2014, se deu faltando três dias para o início da propaganda eleitoral gratuita que seria o trunfo do pernambucano, de se impor na campanha presidencial. Agora a morte de Teori ocorre de novo num momento “estranho” e capaz de mudar a história, no derradeiro instante em que as 900 delações que envolvem mais de cem parlamentares e políticos, a nata do poder no país, seriam liberadas por ele. Ele mesmo repetiu várias vezes que, voltando desse descanso (férias) na praia, daria asa à fase decisiva da Lava Jato. E ninguém considerava que ele estivesse blefando.

Por norma, o sucessor do ministro do STF herda, além da poltrona, todos os processos do antecessor, indicado pelo presidente e referendado pelos próprios senadores, que são, neste caso, os investigados.

A morte do ministro coincide provavelmente com a única possibilidade de mudar uma história que já estava se consolidando.

Todos esses acidentes não tiveram uma apuração minimamente decente. Foram deixados nas mãos da Aeronáutica brasileira, que tem “autonomia” para fazer exatamente aquilo que interessa aos ocupantes do poder.

Enfim, parece oportuno e dever de Temer deixar que o STF, e não ele, escolha o novo relator da Lava Jato. E ainda dar uma revisada nos demais desastres aéreos que mudaram os rumos da história brasileira. Polícia Federal, PGR e técnicos brasileiros e estrangeiros deveriam ser escalados para uma investigação isenta e insuspeitável, urgente e necessária.

Chegou a hora de, com a morte de Teori, dar um basta à teoria da conspiração, que perturba as consciências mais despertas deste país.