domingo, 15 de janeiro de 2017

Guerra aos fatos

Pouca coisa vale tão pouco a pena no Brasil moderno quanto escrever um texto para a imprensa sem sair chutando o governo na primeira linha e, se possível, continuar na mesma partitura até o ponto final. Nem se trata, Deus nos livre, de falar algo de bom ─ basta não falar mal para a pessoa que escreve ver-se exposta ao risco de fazer papel de boba, ou ser acusada de delitos ainda bem piores. O cálculo não é complicado. É só ficar atento à Lei da Malignidade Pública Permanente, que estabelece o seguinte: “Podendo errar, um governo vai errar”. O resultado é que, em condições normais de temperatura e pressão, o governo, qualquer governo, produzirá alguma calamidade logo depois que o infeliz tiver escrito o tal artigo neutro, ou sem hostilidades declaradas. O autor, se alguém lhe der três reais de importância, se verá então acusado de leniência, para usar uma palavra da moda, ou de ser parcial, mal informado e nocivo aos interesses da sociedade. Para que viver sob essa ameaça? É melhor apostar no certo. Bata no governo ─ se você não sabe por quê, o governo haverá de saber.

Sim, estamos aí diante de uma manifestação maciça de preconceito. Mas é justamente por isso que há tanto estímulo para atirar primeiro na autoridade pública e perguntar depois ─ ou, melhor ainda, não perguntar nada, nem antes nem depois. É muito mais cômodo. Preconceitos, no fim das contas, são excelentes instrumentos para economizar tempo: permitem ao indivíduo formar uma opinião sem ter o trabalho de verificar os fatos. Melhor ainda, ao agirem desse jeito, as pessoas não precisam pensar, e isso parece duplamente recomendável nos dias de hoje. Em primeiro lugar, como dizia Henry Ford, pensar é a coisa mais difícil que existe ─ talvez seja por isso que tão pouca gente tenta. Em segundo lugar, trata-se de uma conduta muito mal ­vista no Brasil do momento. O indivíduo que pensa, ou sugere a aplicação de raciocínios lógicos no debate sobre as questões públicas, pode provocar a formação de um tipo de corrente contínua capaz de gerar ideias e outras doenças transmissíveis. É muito mais conveniente entupir o público com afirmações não combustíveis ─ aquelas imunes a faíscas e que, assim, não contêm o risco de causar mudanças que possam incomodar sua visão do mundo e da vida.

O inconveniente disso tudo é que os cidadãos ficam sem a oportunidade de informar-se com mais exatidão, clareza e realismo sobre o que está acontecendo ao seu redor ─ e não é possível a ninguém estar mal informado e, ao mesmo tempo, decidir bem. Os fatos não param de existir só porque pouca gente está falando deles. Neste momento, foram apresentadas pelo governo, para apreciação do público e adoção pelo Congresso, questões decisivas para o bem-estar do país em seu futuro próximo. A lista é conhecida. Um dos seus primeiros itens foi a fixação de limites para o aumento dos gastos do governo. Há também a mudança nas regras das aposentadorias, para dar oxigênio a um sistema em situação de pré-falência. Sugere-se uma reforma trabalhista, para alterar leis que hoje funcionam como um veneno para a criação de empregos. Foi proposto o estabelecimento de um novo ambiente para o aproveitamento das reservas de petróleo ─ e assim por diante, numa série de movimentos que pretendem estimular o dinamismo de uma economia paralítica. O que há de correto nisso tudo? Antes de prever se alguma coisa vai dar certo, é preciso saber se ela faz sentido. Mas não é assim que está funcionando: de cara, para a maioria dos que se manifestam, já fica decidido que é ruim porque vem do governo. Ficar a favor, ou simplesmente ver lógica em medidas como essas, é ser “governista”. É ser “cúmplice da corrupção”, ou querer a eliminação de direitos ­adquiridos da população brasileira.

Nenhum dos problemas que o país vive no momento foi criado nos sete meses de atuação do governo que está aí; os direitos autorais dessa desgraça toda pertencem unicamente aos seus antecessores. Mas o debate político atual parece decidido a declarar guerra aos fatos. Não costuma dar certo.

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Lauterbrunnen, Suíça.:
Lauterbrunnen (Suíça).

O país da gambiarra

Desde a carnificina no presídio de Manaus, seguida pela matança em Boa Vista, especialistas na questão penitenciária são unânimes em criticar a ausência de planejamento para o setor. Nada de novo. O Brasil não tem plano nem para o sistema prisional nem para coisa alguma. É e sempre foi o país das gambiarras, dos remendos.

Mais de 100 mortes depois, o que se vê agora são medidas requentadas, muitas delas acertadas, mas que não precisariam ser emergenciais tivessem sido cumpridas em urgências anteriores e se tornado práticas permanentes.



Um exemplo é o esforço concentrado reivindicado pela presidente do Supremo, ministra Cármen Lúcia, para que os Tribunais de Justiça dos estados acelerem o exame dos processos de presos, muitos deles sem julgamento ou com pena já cumprida. Em 2008/2009, o Mutirão Carcerário do Conselho Nacional de Justiça fez exatamente isso, libertando 45 mil presos. Não se sabe por que parou.

Como não são absorvidos como políticas de Estado, programas desse tipo, por mais bem intencionados, não prosseguem. E têm de ser reinventados quando as crises anunciadas explodem.

Outros, como a construção de novos presídios, são apenas mais do mesmo, já se sabendo, de antemão, que não têm o condão de resolver o problema.

O improviso não se limita à política carcerária. Está em todos os cantos, em todas as esferas de poder.

Em 2013, as megamanifestações de junho, inicialmente concentradas no congelamento das tarifas de ônibus urbanos, levaram a então presidente Dilma Rousseff a anunciar investimentos de R$ 50 milhões em mobilidade, com nada ou quase nada saindo do papel.

Dilma foi mais longe. Tirados sabe-se lá de onde, lançou cinco propostas inexequíveis, por ela apelidadas de pactos, sem dizer de quem com quem. Pacto pela responsabilidade fiscal, princípio para o qual o seu governo fazia pouco caso. Outro, pela saúde, incluía apenas a importação de médicos (a maioria cubanos) para solucionar as graves carências do SUS. O pacto pela Educação se limitava a dedicar 100% dos royaties do pré-sal à área, e o mais inusitado de todos, o da reforma política, viria por meio de uma Constituinte exclusiva.

Fora a desoneração na folha de pagamentos dos operadores de transporte urbano, nenhum dos demais pactos andou. Valeram apenas como marquetagem. Assim como várias obras do PAC, programa que se dizia revolucionário e empacou nas suas duas versões, lançadas com pompa e circunstância para satisfazer o calendário eleitoral.

A reforma política é a campeã nas gambiarras. Há décadas vem à tona como solução para todas as panes. Mas nunca ganha corpo. Só alguns remendos, a maior parte em benefício dos autores, aprofundando o abismo entre o eleitor e o eleito. Mexe-se no periférico - fundo partidário, tempo de propaganda no rádio e TV, prazo de desincompatibilização para ser candidato -, deixando de lado o essencial: sistema de votação, se proporcional, distrital ou misto, possibilidade de recall e voto facultativo.

Na área econômica não é diferente. O sistema tributário brasileiro é indecifrável. Sobre as costas do cidadão pesa uma das maiores cargas tributárias do planeta, embutida aqui e acolá. No final, ele não sabe o que paga, quanto paga e a quem paga.

A barafunda é tamanha que leis tributárias são criadas para corrigir erros de outras, sem que as anteriores sejam extintas. Um caso típico é a compensação dos Estados no caso de desoneração de ICMS. O Supremo teve de fixar prazo até o final deste ano para que o Congresso aprove a lei complementar prevista na Lei Kandir, de 1996, e que nunca foi feita.

O improviso, que nas artes se conecta com a criatividade, é, na política, fruto do desinteresse, da indiferença, do desdém - e da corrupção -, itens fartos no ambiente da coisa pública.

Predomina na educação, com políticas alteradas a bel prazer dos governantes da vez, seja na União, nos estados ou nos municípios. Nas obras de infraestrutura, na burocracia que atrasa e encarece a vida de muitos e enriquece alguns, na totalidade dos serviços que o Estado tem obrigação de colocar à disposição das pessoas.

O desprezo é de tal monta que a ausência de remédios ou médicos em postos de saúde é tida como natural, que soterramentos em épocas chuvosas são tratados como acidentes imprevisíveis, que esperar anos a fio faz parte da dinâmica de uma Justiça que sempre tarda, que homicídios têm de frequentar o cotidiano dos brasileiros.

Estão corretíssimos aqueles que reivindicam planejamento. Mas não só na questão carcerária, e sim na totalidade das áreas delegadas pela a sociedade à gerência do Estado. E há de se avançar além dos planos -- anunciados com espalhafato e poucas vezes executados --, sem o que se perpetua o império do descaso.

Cinzas na paisagem

O mundo da política é, frequentemente, povoado por cinzas. Principalmente em democracias incipientes. Massas escuras se acumulam nos espaços e nas distâncias, dificultando a visão de atores e espectadores.

É assim que o Brasil hoje se apresenta. Há nuvens plúmbeas esmaecendo a claridade para qualquer canto que se olhe.

Para onde os políticos irão após a conclusão das meticulosas investigações da Operação Lava Jato?

Chega a 200, comenta-se, o número de habitantes dos largos dutos abertos nas curvilíneas estruturas da afamada empreiteira que virou fonte maior da corrupção no país.

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O Poder Judiciário recebe as glórias do aplauso, cantado e aclamado por camadas de todas as classes. Merece tantas loas?

O Poder Legislativo, o mais aberto e exposto à indignação, vegeta no mais profundo poço da descrença. Seus participantes passam a vergonha do apupo quando se identificam em lugares de afluxo popular.

O Poder Executivo, decidido a puxar a locomotiva de mudanças para tirar o país do atoleiro, continua a ser alvo de críticas do grupo que abriu o maior rombo nas finanças do Estado em todos os tempos.

Dissonâncias e paradoxos se multiplicam nos vãos e desvãos da República, a indicar acentuada falta de bom senso tanto por parte daqueles que se dão ao trabalho de interpretar os acontecimentos quanto por parte das massas.

As trilhas do labirinto

Percorramos trilhas desse labirinto. Comecemos com o Judiciário, onde o juiz Sérgio Moro, elevado às alturas, tornou-se símbolo da moralidade.

Não há como negar a coragem e, sobretudo, sua determinação de seguir um roteiro bem traçado para apurar os desvios que se acumularam ao longo dos anos nas malhas do Estado sob o mando de um grupo treinado na arte de trocar favores.

Mas o exemplo de Moro serve para pavimentar a trajetória do Judiciário ou ele é uma exceção?

Se lembrarmos, por exemplo, que dos quase 700 mil presos no Brasil, cerca de 40% ou mais esperam por julgamento? A inferência torna-se obvia: as rebeliões e os massacres que ocorrem no território, com destaque para as matanças de Manaus e Boa Vista, apontam o Poder Judiciário com sua parcela de responsabilidade na paisagem da insegurança nacional.

Ainda na esfera do Judiciário, não há como deixar de apontar a fúria legisladora que usa para reinar sobre uma pletora de assuntos.

Será que o Congresso Nacional não tem competência, por exemplo, para dizer se o presidente de um mandato-tampão na Câmara dos Deputados pode ou não ser candidato à presidente na legislatura seguinte?

Um juiz pode proibir a concessão de aumento de tarifas de transportes? Tem ele de se imiscuir no planejamento financeiro de empresas de transportes e nas planilhas governamentais?

Subamos ao STF. Por falta de uma legislação infra-constitucional, o Supremo tem se transformado em fabriqueta de leis, sob o argumento de que apenas cumpre a missão de interpretar a Constituição.

A avalanche legislativa chega até o terreno da primeira instância, onde juízes paralisam serviços da Internet, proíbem aumentos nas tarifas de transporte urbano etc.

Quanto à questão dos massacres nas prisões, só mesmo incautos e desinformados enxergam a União como a responsável única pela situação dos presídios, quando a tarefa da segurança é, primordialmente, dos Estados. Mas a segurança pública é uma questão que afeta a todos os Poderes.

A vigilância de nossas fronteiras é crucial para fechar as fontes de abastecimento das gangues. Tarefa da União.

Recursos do Poder federal devem ser disponibilizados para o adequado funcionamento dos presídios.

Do Legislativo devem sair os instrumentos legais para o duro combate aos arsenais da bandidagem.

Nesse momento, porém, o Poder Legislativo se debruça sob sombras. Daí ser turva a visão do que poderá ocorrer com os cerca de 200 habitantes do planeta empreiteiro. Haverá para eles luz no fim do duto?

A luzinha que se vislumbra é a vela do caixa dois. Isso mesmo. Recursos financeiros para partidos e candidatos teriam duas origens: o caixa oficial, que recebe recursos doados e comprovados pelos partidos; e o caixa dois, com recursos não contabilizados, sujeitos, sim, a uma pena, porém não tão grave como a propina. Essa é a tese que ganha força nas interlocuções.

Enfiar uma grande parcela do Parlamento na prisão provocaria uma balbúrdia monumental.

As reformas

Quanto ao Poder Executivo, vê-se um governo profundamente interessado em fazer decolar a nave da economia, sob o bumbo de grandes reformas, como a PEC do teto de gastos, a reforma da previdência, a modernização da legislação trabalhista e a reforma educacional, entre outras.

Do outro lado da rampa, em palanques politiqueiros, o comandante Lula, sempre de vermelho a tiracolo, anuncia uma possível candidatura em 2018 para (vejam bem) “recuperar a confiança, a credibilidade” do país. É mesmo para gargalhar. 13 anos de PT queimaram as bandeiras da esperança e da fé. A confiança no país ruiu. E agora reaparece Lula invertendo a ordem das coisas.

Mais: pregando o crescimento com o uso do “compulsório” (dinheiro retido dos bancos) e das reservas internacionais.

O pior é que a galera que, por anos a fio, ganhou trocados para gritar slogans e aplaudir o verbo roto e saturado de Lula, volta a vê-lo como o santo que vai salvar o Brasil.

Lula, com 5 processos nas costas, espera uma revolução das ruas caso seja condenado em segunda instância e impedido de se candidatar à presidente em 2018.

Há muito mais a se ver sob as cinzas que cobrem o território.

Mocinhos e bandidos se abraçam fazendo uma algaravia.

Constroem-se estátuas para heróis, alguns merecendo o epíteto, outros nem tanto.

A expressão demagógica ressurge como se o ontem já estivesse de todo sepultado. É o caso de pinçar o verso do poeta Reinhold Niebuhr: “Senhor, dai-me serenidade para aceitar o que não pode ser mudado; coragem para mudar o que pode ser mudado; e sabedoria para distinguir uma coisa da outra."

Há 122 anos

Conhecido como um autor de romances famosos no século XIX, Leon Tolstói passou por uma fulguração comparável àquela de São Paulo no caminho de Damasco. Depois de um consagrador sucesso, renegou seu modo de viver que lhe dava trânsito nos salões dourados das aristocracias russa e europeia, virou a página, escrevendo a obra-prima “O Reino de Deus Está em Vós”.

Rompeu, com antecedência de alguns séculos, os paradigmas sociais, políticos e culturais de seu tempo. Sem inventar nada. Apenas adotando o Sermão da Montanha como filtro de seu olhar, fez uma crítica penetrante ao sistema vigente em sua época, à forma de governar e dominar as massas. Mostrou que as vias da não violência e o respeito à verdade são imprescindíveis para uma sociedade harmoniosa.

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Imediatamente excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa e banido pelo governo do czar, Tolstói passou a sofrer perseguições em toda a Europa. Seu livro profético, entretanto, chegou ao cidadão indiano Gandhi, depois reconhecido como Mahatma (grande e excelso homem), transformando radicalmente o curso de sua vida, despojando-o de qualquer ambição material e colocando-o a serviço de uma missão superior, social e política aqui, na terra. Especialmente na subjugada e miserável Índia, fracionada em classes intransponíveis e explorada pelo império inglês.

O livro desapareceu de circulação, queimado nas fogueiras, e foi reeditado apenas em 1988, quando inspirou os movimentos de ecologistas, pacifistas, intelectuais do bem que anseiam pela sobrevivência da humanidade num modelo sustentável e universal. O livro se mantém atual como nunca, mereceria ser estudado nas escolas e estar na cabeceira dos homens de poder, especialmente dos políticos que, ao assumirem um mandato, anseiam pelo bem-estar de uma nação sem prejudicar as demais.

“Veja quanto é inútil e injusto recolher impostos do povo trabalhador para enriquecer funcionários (ocupantes de cargos públicos) ociosos”, apostrofou Tolstói.

“Quanto mais alta é a posição de um homem na hierarquia corrompida, tanto mais instável (e nociva) sua presença, pois ele tem fé na duração ilimitada da organização (criminosa) existente, que lhe permite cometer barbaridades com a maior e a mais perfeita tranquilidade de espírito, como se não agisse em seu proveito (para se locupletar)... Essa é a situação quase comum dos funcionários (do Estado) que ocupam posições mais lucrativas (e estratégicas) de quanto poderiam ocupar em outra organização (por mérito real e pessoal)”, escreveu no ano de 1894.

“Na função pública, a tendência (de exploração do poder) se estende do mais humilde policial à mais alta autoridade”, anotando, infelizmente, que o poder se presta aos interesses pessoais. O governo defende a cobrança de impostos para atender a saúde pública, mas não se esforça hoje, no Brasil contemporâneo, para livrar-se da corrupção que o devasta. Insiste em cobrar mais, quando poderia primeiramente gastar menos cortando os desvios monumentais.

Bilhões são subtraídos na forma de impostos para aplicar em aposentadorias injustas, privilégios descabidos para autoridades. Práticas que apenas sobrevivem no Brasil quebrado e castigado por filas infindáveis no atendimento.

Outros bilhões são desviados cinicamente, com juros da dívida, de obras públicas desnecessárias, da merenda escolar, do programa Bolsa Família, num país que enfrenta parcela assustadora de crianças e jovens sem alimentação suficiente e que, bem por isso, pagam com graves prejuízos em sua formação.

Escreveu Tolstói há 122 anos: “A corrupção consiste em tomar do povo suas riquezas por meio de impostos e distribuí-las às autoridades constituídas, que se encarregam de manter e aumentar a opressão (e o desserviço). Essas autoridades compradas, desde os ministros até os escreventes, formam uma invencível união pelo mesmo interesse: viver em detrimento do povo. Enriquecer, tanto mais quanto maior é a submissão” aos esquemas perversos que exploram o poder.

Para chegar a isso, observa que é o “hipnotismo” do povo, que consiste em deter o desenvolvimento moral dos homens, com diversos métodos, inserindo o arcaico conceito de vida materialista, apegada a vícios, superstições e prazeres ilusórios.

Faleceu como “subversivo excomungado”, pregando que os “deveres de cidadão devem ser subordinados aos deveres superiores da vida eterna de Deus” e lembrando, do Atos dos Apóstolos (5, 29): “É preciso obedecer antes a Deus que aos homens”.

Domingo de MPB

E vergonha na cara, neca!

Estamos vivendo a coincidência de crises muito extensas e profundas: a política, a econômica e a moral.
 
A Lava Jato está mostrando isso: governador preso, ex-ministro preso, empresas quebradas, a política tendo como objetivo o enriquecimento pessoal
General Sergio Etchegoyen, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional

Uma ética para o futuro

A estratégia de Gandhi de ação contra a injustiça, até hoje não mereceu a receptividade devida no Ocidente, apesar de encontrarmos ecos em lutas como a de Luther King, por exemplo. No Brasil, o seu pensamento ainda é desconhecido nos meios acadêmicos, embora popularmente seja apropriado no mais das vezes por um misticismo que obscurece o actor político e pensador arguto que ele foi. A experiência gandhiana com a Verdade não se limita nem se subordina ao moralismo imposto pelas religiões ou pela esfera dos negócios públicos, antes, dirá ele, “a verdadeira moralidade não consiste em seguir caminhos já trilhados, mas em encontrar o caminho verdadeiro para nós mesmo e segui-lo com intrepidez. Todo verdadeiro progresso é impossível sem tal perseguição incansável da verdade” . 

Nesse caminho contra a injustiça, Gandhi (que leu Thoreau, embora antes disso já agisse como ele indicava), diria “que obedecer a todas as leis, sejam boas ou más, é uma invenção recente.(...) Para os seres humanos que queiram levar uma bela vida moral, uma lei deve antes de tudo ser justa. A política moderna faz da lei um ídolo, simplesmente porque é a lei”. O caminho dessa desobediência e resistência será, entretanto, não o da revolução sangrenta , mas o da não-violência como uma “resistência activa” (como a denominava Gandhi, repelindo a expressão resistência passiva) : “para encontrar a Verdade e Deus, o caminho inevitável é o amor, isto é, a não-violência. Ora, creio firmemente que o fim e os meios são termos relacionáveis e não hesito em dizer que Deus é Amor.” (Gandhi, 1994). Deste modo o padrão tradicional de acção política seria rompido por Gandhi, na medida em que para ele os fins eram condicionados pelos meios na mesma medida em que considerava o futuro como contido no presente. Para isto renunciou a quaisquer métodos conspirativos contra o adversário. Isto transformou as suas batalhas contra o governo inglês em combates rituais nos quais as regras eram conhecidas de ambos os lados. Esta relação extraordinária entre meios e fins era correlata à ideia subjacente à satyagraha de que o processo e não os resultados era o mais importante. A experiência da verdade implica na renúncia aos frutos da acção e focaliza a sua atenção nos princípios éticos do agir político. Não há planos rigorosos a seguir, nem teologias e finalismos, mas fundamentalmente o momento presente.
Únicos bens deixados de herança por Gandhi
“Satyagraha, literalmente, significa agarrar-nos à verdade, isto é, significa que a verdade é força. A verdade é alma e espírito. Satyagraha é, portanto, força da alma. Exclui o uso da violência , porque o homem não tem a capacidade de conhecer a verdade absoluta e, por isso, não pode tomar a liberdade de punir. A desobediência civil que é um aspecto da satyagraha, é uma violação civil, isto é uma violação não violenta das leis imorais do Estado. Outro aspecto da Satyagraha é a não cooperação, a recusa de colaboração com o Estado quando, na opinião do colaborador, ele se torna corrupto. Por sua própria natureza, a não cooperação é acessível até mesmo àqueles que são de mentalidade infantil, e pode ser praticada pelas massas”(Young Índia, 23.03.1931 in Woodcock, 1993).

Não-violência e Verdade tornam-se, deste modo, instrumentos específicos na construção de uma cultura de paz, importantes na estratégia de luta política (e cabe lembrar o grande estratega que foi Gandhi). A não-violência é um combate espiritual (e nesse sentido indissociada da Verdade) e político cujas armas são o Contacto com o adversário, a Não-Cooperação e a Desobediência Civil. Mesmo distanciando-se muito da concepção tradicional de política e pertencendo a tradições filosóficas distintas estes pensadores, embora com diferenças marcantes, une-os uma concepção do espaço público, não como esfera autónoma, mas como campo marcado pela eticidade e neste sentido é que irão elaborar directa ou transversalmente reflexões sobre uma cultura de paz, entendida como uma utopia, como um processo a ser construído. Esse eixo é que nos permite estabelecer pontes entre tradições filosóficas e religiosas distintas. Especialmente para Gandhi, Buber, Levinas, Ricoeur e Mounier, a relação humana, em suas dimensões privada e política, antes de ser essencialmente violenta é, na verdade, uma travessia em direcção ao Outro, ocorrendo no sentido de se olhar para ele como meu igual, aquele que, sendo ou não ele meu adversário, compartilha comigo uma raiz fundamental: a humanidade e pelo qual tenho responsabilidade. Retomá-los faz-se necessário a fim de se analisar sem preconceitos as possibilidades de construção de outros valores alternativos aos apresentados pela violência, isso num momento no qual no mundo moderno se aprofundam ainda mais a indiferença em relação ao Outro exposta na apologia ao mercado, na fetichização da globalização, na política espectacularizada, nas massas miseráveis jogadas nos braços da barbárie de maneira subtil, porém , não menos cruel do que Auschwitz . A construção de símbolos, valores e práticas em torno da paz é essencial para a sobrevivência da humanidade, não é algo para agora, mas semelhante à proposta de Hans Jonas, uma ética para o futuro. 

Num mundo no qual as grandes narrativas fundadoras do comportamento humano foram eliminadas, onde o niilismo se faz acompanhar de relações pautadas na razão instrumental, a reflexão sobre não-violência em suas relações com a política é de importância máxima. O desafio é como podemos tecer relações no espaço público que ultrapassem o vazio ético no qual vivemos, para utilizar a expressão de Hans Jonas. Vazio esse que se apresenta de maneira mais contundente com a crise na figura do Estado e a deslegitimação da política mesma enquanto possibilidade de construção do bem colectivo, o que conduz à apatia entre os cidadãos e a sua substituição pela figura do consumidor. O fenômeno é observado em todo o mundo mas em especial assume dimensões singulares na América Latina. Como alternativa a isso os mecanismos de ação violenta nos processos sociais e políticos se tornaram lugar comum, banalizaram-se, passando mesmo a ser legitimados.

O que importa destacar é que no debate sobre a cultura de paz é possível, repetimos, o estabelecimento de nexos entre tradições filosóficas distintas mas que têm um eixo em comum: o deslocamento em direção ao Outro e a percepção deste como aquele pelo qual se tem responsabilidade.
Kátia Mendonça, "Em torno do conceito de cultura de paz"

Papel democrático do jornalismo

No ano que ficou marcado pela veiculação recorde de notícias falsas na internet, a confiança dos brasileiros nos jornais cresceu. De acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídia 2016, feita pelo Ibope, 60% dos entrevistados afirmaram confiar sempre ou muitas vezes nos jornais. Em 2015, o porcentual foi de 58% e em 2014, de 53%.

A pesquisa revelou também um aumento no índice de leitura dos jornais. Em 2016, 32% dos entrevistados responderam que, ao menos uma vez por semana, leram algum jornal. No ano anterior, o índice foi de 21%. “Há claros sinais de revitalização do meio jornal, e a alta credibilidade conferida pelo público é a maior demonstração disso”, afirmou o presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Marcelo Rech, ao comentar a pesquisa do Ibope.

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Outro dado captado pela enquete foi o aumento da leitura do jornal na versão digital. Entre os leitores habituais de jornal, o porcentual de pessoas que afirmaram ler mais na versão digital subiu de 10% para 30%, entre 2015 e 2016.

Além dos jornais, outros meios de comunicação que fazem jornalismo profissional também têm boas taxas de confiança. Por exemplo, 57% dos entrevistados afirmaram confiar no rádio; 54%, na TV; e 40%, nas revistas.

Em contrapartida, cresceu a desconfiança nas redes sociais. Segundo a pesquisa do Ibope, 84% dos brasileiros confiam poucas vezes ou nunca confiam nas informações obtidas por meio das redes sociais. No estudo anterior, o índice de desconfiança era de 71%. Também se observou um aumento da desconfiança em relação aos blogs – de 69% para 83% – e aos sites – de 67% para 78%.

Os dados mostram que o público consegue distinguir, na mesma plataforma digital, as diferentes fontes de informação e perceber que cada uma merece um específico grau de confiança. Tal discernimento é de grande importância para a vida social e política.

De fato, o novo relatório Digital News Project 2017, do Reuters Institute, alerta para os efeitos das novas tecnologias sobre a qualidade da informação e da democracia. Ainda que sempre tenham existido notícias falsas, o fenômeno ganhou com as redes sociais uma nova proporção, com novos efeitos. Como lembra o relatório, citando Mark Thompson, “nossos ecossistemas digitais desenvolveram um ambiente quase perfeito para que notícias falsas ou distorcidas prosperem”.

A fragilidade do sistema informativo das redes sociais ficou evidente nas semanas prévias às eleições norte-americanas, quando houve um boom de compartilhamento de notícias falsas, dizendo, por exemplo, que o papa Francisco apoiava o então candidato Donald Trump ou que Hilary Clinton teria vendido armas ao Estado Islâmico. Nesse contexto, a vitória de Trump só fez crescer os temores em relação aos algoritmos utilizados pelas redes sociais para definir quais informações terão maior visibilidade.

É simplesmente impossível que a informação qualificada, com sólido suporte em fontes confiáveis, seja produto tão somente de uma fórmula matemática, necessariamente limitada ao aspecto quantitativo da realidade. Na apuração da notícia, continua sendo necessário o elemento humano, com seu olhar a captar aspectos imperceptíveis ao computador.

O funcionamento da democracia depende da qualidade da informação. Opiniões políticas baseadas em mentiras nada mais são do que uma perversa manipulação das vontades. Por isso, é tão importante que a população seja capaz de discernir entre o que é jornalismo e o que não é. Só assim ela não estará vulnerável aos aproveitadores de plantão, que manobram com destreza as fragilidades do mundo digital em benefício próprio.

Notícia não é mero conjunto de caracteres, nem tampouco uma commodity. Ela tem muitas e graves consequências sociais e políticas. É por isso que a internet só fez aumentar a responsabilidade democrática do jornalismo. Mais do que nunca, cabe a ele prover à sociedade uma informação que vá além dos interesses dos poderosos.

Editorial - O Estadão

Paisagem brasileira

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Praia das Pitangueiras, Ilha do Governador (1948), Albano Agner de Carvalho

Só se nós fizermos...

“Feliz Ano Novo! Depois desse horrível 2016...’’ Foi o que mais se ouviu na passagem de datas. Pois sim... Deu o dia 1º, e o chamado Estado Islâmico matou 39 pessoas em Istambul. — Começo ruim, mas quem sabe... — No mesmo dia, rebelião no presídio de Manaus matou mais de 60 detentos. Bastou? Nada. No dia 6, outro levante, esse em Rondônia, deixou mais 33 decapitados. Sim, decapitados. Nas duas penitenciárias a selvageria se arrematou com a decapitação dos vencidos. — Briga entre grupos criminosos, disseram. Um pavoroso acidente, foi a fala presidencial, depois de um longo silêncio. A isso chegou a banalidade na percepção do mal. Um secretário do governo federal não se envergonhou de afirmar que uma limpa dessas devia ocorrer toda semana. E o diretor da penitenciária de Manaus pontificou que ali ninguém era santo. — Mas foram os próprios detentos que praticaram essa barbaridade, dizem os apressados da vida. — Mas estavam sob a guarda do Estado. — Mas a gestão era privada. — Ah, bom, então... — Que começo de ano!

Istambul já foi Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente. E, antes, Bizâncio, centro da cultura grega depois de Atenas. Fica montada sobre dois continentes. É Ásia por um lado, atravessa-se uma ponte e já se está na Europa. Há ali esse simbolismo. A ponte é um traço de união para quando o Ocidente e o Oriente puderem não mais se estranhar. O EI terá tido essa intenção? Que depois do Bataclan e dos bares de Paris, há pouco mais de um ano, agora estaria na hora de avançar sobre quem dança entre o Leste e o Oeste do mundo? Foi mesmo igual. Jovens se divertiam, bebiam e dançavam, cantavam e estavam felizes — e, depois, não mais. Depois, corpos e sangue. E silêncio. Não era novidade, já tinha ocorrido na capital da França. O choque então foi imenso. Paris ainda é o centro do mundo. Istambul não é mais. Menos manchetes, menos manifestos. Mas o mesmo pavor. O mesmo perpetrador. O terror do Estado Islâmico vai chegando ao Oriente. Está mais perto de casa. Deve ter um sentido esse movimento. Não o compreendemos. Resta-nos o espanto da repetição. Daqui a pouco, nem isso. Repetição é rotina. Um dia apenas constataremos: aconteceu de novo. Deus nos livre da rotina na percepção do mal.
Charge O Tempo 14.1.2016
O Estado Islâmico entrou no mapa da barbárie com as imagens espantosas das decapitações. O soldado imponente, a vítima de joelhos, a lâmina suspensa. E a imagem nas redes. Foi uma novidade. Em Manaus, já não mais. Uma facção decapita a outra, exibe as cabeças e os facões, faz fotos e selfies. E põe na rede. Uma parte do país se revolta. Menos de metade. Para os outros, o diretor do presídio tem razão: não há santos ali. Se quiserem se entredestruir, é um favor que fazem. — A quem? — A nós, os bons. O Ano Novo começou assim.

A resposta das autoridades é macha, enérgica: mais presídios! É guerra! Domingo passado um caminhão em Jerusalém repetiu a manobra assassina de julho em Nice e lançou-se sobre civis inocentes. Com requintes: deu marcha a ré sobre os corpos para se assegurar do seu sucesso. De novo, a barbárie solta, o Terror. O Terror, não temamos a palavra. Os terroristas. — A reação veio rápida: intensificação dos ataques aos palestinos. O diretor de Manaus talvez rejubilasse: entre eles, não há santos.

Há, às vezes, um certo pudor entre nós em dizer que é o Terror, hoje, o inimigo global. Ainda é recente a memória de quando todos que nos opúnhamos às ditaduras da América Latina éramos chamados de terroristas. Mas não tenhamos receio em dizer que no mundo globalizado o Terror é o inimigo global. Não tem limites nem fronteiras. Nem alvos, muitas vezes. Atira onde der, acerta em quem pegar. Seu alvo é a vida. Para distribuir mãos cheias de medo. Terrível semeadura! Não colhamos seus frutos. Mas não nos enganemos: o medo global é o objetivo do Terror. Não tenhamos medo.

É bem perto de nós que temos a fome pandêmica. As meninas proibidas de estudar. As violências e segregações. Os corpos martirizados das mulheres. A repressão aos amores fora da cartilha. As navegações da morte sem porto. As guerras sem sentido e sem fim. A violência dos Estados. O ressurgimento da extrema direita. — Todas essas são doenças que andam por perto. Têm vítimas e responsáveis. Nós os conhecemos. O Terror, a despeito de todo o seu poder, paira acima delas, acima da vida desgraçada do abandono e da desesperança. Vamos cuidar dessas, as de perto. Não vivemos ‘‘no global’’. Nossas vidas são sempre locais, encarnadas. Viver onde nossas vidas realmente se passam, maciamente, olhando para nossos companheiros de caminho, tantos estraçalhados, pode ser uma boa estratégia. Viver. Tirar o oxigênio do Terror. Não ceder a ele no concreto das nossas existências.

O ano de 2017 não começou bem. Mas não precisa estar condenado a repetir a rotina do Mal
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Marcio Tavares D’amaral

Massacres em série extirpam ponto de exclamação dos hábitos dos brasileiros

Espantosa época essa que o Brasil atravessa. Uma época em que o horror adquire doce naturalidade. As facções criminosas promovem massacres em série nas penitenciárias do país. E poucos brasileiros parecem dispostos a fazer a concessão de uma surpresa. É matança de bandidos? Pois que venha o extermínio. E com decapitações.

Depois da mortandade de presos em Manaus e Boa Vista, sobreveio, entre a tarde de sábado e a madrugada deste domingo, a chacina da Penitenciária Estadual de Alcaçuz, na região metropolitana de Natal. De um lado uma franquia potiguar do paulista Primeiro Comando da Capital (PCC). Do outro, o Sindicato do Crime do RN, que opera em regime de joint venture com o carioca Comando Vermelho (CV).

Em duas semanas, três massacres. Mais de uma centena de execuções. Os criminosos superaram os anseios de Bruno Júlio, aquele ex-auxiliar de Michel Temer que perdeu a chefia da Secretaria Nacional de Juventude depois de lamentar a baixa produtividade da usina de auto-extermínio que funciona nas cadeias: “Tinha é que matar mais”, ele disse. “Tinha que fazer uma chacina por semana.”

A contabilidade dos horrores de Natal ainda é desconhecida. Na noite passada, o governo estadual admitiu em nota a existência de dez cadáveres. Entretanto, vídeo pendurado na internet indicava a existência de pelo menos 17 corpos. Não foi possível concluir a escrituração porque o poder público estadual, impotente, decidiu que só entraria na cadeia depois do nascer do Sol.


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Caio César, secretário de Segurança do governo do Rio Grande do Norte apressou-se em divulgar um vídeo para tranquilzar a população (assista abaixo). “Não houve fuga”, disse o secretário a certa altura. “A população pode ficar tranquila e realizar suas atividades normalmente.” O que a autoridade máxima da segurança no Estado disse aos cidadãos de bem, com outras palavras, foi o seguinte: “Fique calmo. A cadeia está cercada. Lá dentro, os bandidos estão se matando uns aos outros. Nada que mereça a sua preocupação.”

.O Datafolha informou, há três meses, que 57% dos brasileiros concordam com a máxima segundo a qual “bandido bom é bandido morto.” Quer dizer: as facções criminosas não estão senão satisfazendo, por meio do auto-extermínio, a vontade da maioria. Produzem novos carandirus sem a participação da Polícia Militar. É como se a bandidagem unisse o útil ao agradável. Defendem seus territórios e seus negócios. Simultaneamente, atendem à demanda social por sangue.

Nesse contexto, só os chatos, com seu humanismo arcaico, ainda pedem providências e punições. Só os ingênuos, com seu horror postiço, ainda não suprimiram dos seus hábitos o ponto de exclamação. Atentas ao avanço da sociedade brasileira rumo à Idade Média, as facções criminosas já não querem só comida. A bandidagem também quer diversão e arte. A falência do Estado dá ao criminoso a chance de oferecer seu vernissage semanal de cadáveres.

Alô, Brasília, que vergonha

Em artigo anterior, com o título "Cria Cuervos", mostrei como o Brasil foi se tornando um criatório de maus cidadãos, de patifes, mentirosos, velhacos, corruptos, traiçoeiros e dirigentes de igual perfil. Os cuervos, afirmei, são criados por quantos chamam bandido de herói e herói de bandido, combatem a polícia, riem da lei, proclamam a morte da instituição familiar, ridicularizam a virtude, aplaudem o vício, enxotam a religião, desautorizam quem educa ou usam a Educação para fazer política, e relativizam o bem e a verdade.

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Observe as movimentações para eleição da presidência da Câmara dos Deputados. Quem for escolhido pela maioria de seus pares, além de comandar a Casa e exercer várias outras atribuições importantes, será o substituto eventual do presidente da República. A disputa se trava entre Rodrigo Maia e Jovair Arantes. O primeiro dirigiu aquela sinistra sessão em que - forçando um poquito pero no mucho a expressão - as dez medidas contra a corrupção se transformaram em regras desmedidas a favor dos corruptos. E fez o possível, Rodrigo Maia, para que tudo acontecesse conforme articulado nos bastidores, inclusive o tardio horário em que se desenrolou a escabrosa parte deliberativa da sessão. Do segundo, é dito que representa o centrão, grupo de deputados do baixo clero, cuja principal atividade parlamentar seria usar os votos e o poder do bloco para intercambiar favores que, na maior parte dos casos, não se distinguem de meros negócios. Tudo indica que estamos lidando com títulos de estampado valor de face.

A essas alturas, impõe-se perguntar se não há naquele plenário alguém com estatura para o cargo. É claro que há. E não são poucos, embora não sejam muitos nem em número suficiente, os homens e mulheres que honram seus mandatos e os exercem com integridade, voltados ao bem do país. No entanto, eventuais disposições para concorrer à liderança maior da casa, que entre eles surjam, tropeçam num grande obstáculo. Nesse parlamento dominado por indivíduos de péssimo caráter é muito difícil a uma pessoa de bem articular, ao seu redor, um grupo que viabilize suplantar, em votos, os atuais disputantes. Sei que há iniciativas. Tomara que funcionem. Mas o cenário que desenho é real.

A sociedade que cria corvos é a mesma que os elege. E a experiência já mostrou que, no atual quadro institucional e moral do país, se o Poder Judiciário não afastar do poder os criminosos, não há lei de "fidelidade partidária", nem da "ficha limpa", nem projeto das "dez medidas", nem o que mais ocorra à criatividade nacional, que consiga aprimorar o tipo de representação política da nossa sociedade. Chega a ser ridículo. O Brasil foi levado para essa perdição como um adolescente conduzido por más companhias.

Percival Puggina