sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Herdeiros de Herodes

Anjos entoando cânticos celestiais, estrela-guia, paz na Terra, animais amigos aquecendo a manjedoura, humildes pastores reverenciando o Deus-menino, reis poderosos atravessando o deserto para trazer oferendas preciosas...

A temporada natalina traz símbolos positivos de todo tipo no campo espiritual. E, mais valioso que tudo, para os cristãos, a constatação de que Deus encarnou seu Filho, transformando-o em gente como nós, para trazer redenção a toda a humanidade e nos abrir novamente a possibilidade de cruzar as portas do paraíso.

Toda essa idílica e alegre celebração da paz e harmonia entre os homens, que celebramos nestes dias de Natal, é bruscamente interrompida a seguir, antes mesmo da grande festa de confraternização universal do Ano Novo e da celebração da chegada dos reis Magos, quando o calendário litúrgico relembra os chamados Santos Inocentes. Ou seja, os mártires de Herodes. Um episódio de terror.


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A história se encadeia com a do Natal. Vale lembrá-la para quem não guarda a crueldade de sua ameaça numa memória infantil em pânico, a acenar com os bastidores do presépio alimentando pesadelos, em cenas fora da vista mas vivas nas palavras.

Ao tentarem visitar o recém-nascido, os reis ou magos vindos do Oriente em sua longa jornada pelo deserto, montados em camelos, seguindo uma estrela muito mais brilhante que as outras, chegaram a Jerusalém, em cujas cercanias acabara de nascer Jesus num estábulo, em Belém de Judá.

Mas essa precisão de endereço eles ainda não tinham. Procuraram descobrir, pois queriam “adorar o Rei dos Judeus.” Informado de sua presença na cidade, o rei Herodes, governador da província romana da Judeia, os recebeu, indagou sobre prazos da sua busca, consultou sacerdotes e escribas para conhecer as profecias, deu aos magos as coordenadas gerais e tratou de usá-los, pedindo que transmitissem seus cumprimentos e, na volta, lhe dissessem exatamente onde poderia achar o menino e sua família.

Mas eles regressaram por outro caminho, avisados em sonhos sobre as intenções do tirano. Ao constatar sua demora, Herodes não teve dúvidas e partiu para a ação. Mandou matar todas as crianças de Belém com menos de dois anos. A Sagrada Família escapou porque um anjo aparecera a José para alertá-lo do perigo e eles fugiram para o Egito.

Dois mil anos depois, Herodes deve esfregar as mãos de contente quando olha para o Brasil, se lá do fogo do inferno memória desta vida se consente. Diariamente estão morrendo entre nós, de morte violenta, mais crianças do que todas as vítimas desse Massacre dos Inocentes — como ficou conhecido o episódio.

Calcula-se que, dada a população de Belém na época, as vítimas infantis da matança bíblica tenham sido em torno a 20. No Brasil é muito mais, vencemos de goleada. Sem contar os pequenos de todas as idades que são abatidos pela miséria, desnutrição, falta de saneamento, ignorância.

Os números são assustadores, maiores do que os de países em guerra. Balas perdidas, tiroteios cruzados, assaltos, acidentes de trânsito, assassinatos, chacinas, as modalidades são incontáveis. Incluem até incêndio proposital em creche, com gasolina jogada nos bebês. Abarcam até disparos em bebês ainda não nascidos, pretensamente resguardados no ventre da mãe.

Inimaginável. Mas real.

Como se não bastasse, uma proporção não calculada dos sobreviventes que poderiam ter sido vítimas, mal conseguem crescer um pouquinho, inteiramente desprotegidos, analisam suas chances de sobrevivência e apostam em passar para o outro lado da arma, assim que têm uma chance.

Como policiais, milicianos ou bandidos, pressionam o gatilho, empunham a faca ou baixam o sarrafo. Antes que chegue sua vez de ser morto, todos jogam um jogo de cálculos com a sorte, sobre quanto tempo ainda pode dar para viver intensamente, na impunidade. Sem se preocupar com o dado de quantas vidas irão levar com a sua, quando em breve chegar a hora da contagem final.

Homens e mulheres de boa ou má vontade, estamos todos reféns da situação de herdeiros de Herodes. Ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices de matanças, chacinas e massacres. Na certeza de que o país não tem a menor eficiência para evitar isso e não consegue agir, a não ser recorrendo a mais violência de todo tipo e perpetuando mecanismos de impunidade. E sentindo dor. Muita dor. Sem saber o que fazer com ela. Neste Natal e em todos os dias do ano.

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