sábado, 9 de dezembro de 2017

Crime em nome da lei

O ano de 2018 não será marcado por conflitos ideológicos ou por embates entre populismo e choque do capitalismo. Seus 365 dias serão lembrados pela guerra sem sono e sem quartel dos cem parlamentares investigados e seus aliados suspeitos no Poder Legislativo contra a sociedade indignada, que não poderá cochilar diante dos truques e armadilhas dos detentores do foro de prerrogativa de função para manterem a jabuticaba envenenada e escaparem do martelo pesado de Sérgio Moro, em Curitiba, Vallisney de Souza Oliveira, em Brasília, e Marcelo Bretas, no Rio. Com a ajuda da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF) na investigação dos crimes de colarinho-branco, que continuam desgraçando a gestão pública nestes tristes trópicos de Lévi-Straus.


O Estado de Direito à brasileira terá reforçada, então, sua natureza peculiar de consagrar como heróis da liberdade não os profissionais da resistência política civil aos abusos das autoridades constituídas para exercerem o monopólio da força, mas os agentes portadores de insígnias que vasculham suas casas, seus escritórios e até seus gabinetes em busca de indícios comprometedores de práticas ilícitas. Há uma razão forte para isso: a República é presidida por um daqueles cidadãos em seu estranho dialeto juridiquês que, entre circunlóquios e golpes de mãos, traçam trilhas para fugir do pão, pão, queijo, queijo de explicações lógicas que possam ser facilmente entendidas. A plebe tem todas as razões do mundo para desconfiar desses finórios. Et pour cause, a polícia que mata pobres e pardos na rua, em vez de protegê-los dos delinquentes que ocupam o território onde vivem. Mas, mesmo truculenta, ela tem sido elogiada nas mesmas manifestações populares que execram os elegantes mandatários feitos gestores por decisão da maioria dos sufrágios populares.

Nessa condição, policiais viram mocinhos de capa e espada, promotores públicos tornam-se justiceiros munidos de powerpoints e juízes são tratados como deuses do Olimpo especial das varas dos crimes de colarinho- branco. Antes o altar foi ocupado por Joaquim Barbosa. Hoje Moro, Vallisney e Bretas são as bolas da vez rumo à caçapa para onde encaminham gatunos das receitas estatais. Pouco importa para eles, que não abrem mão de privilégios de jeito e maneira, se os gastos que tornam inviáveis as escritas contábeis da autoridade que recolhe e paga também fogem ao uso racional pelos excessos dos cabides de emprego, dos vencimentos além do teto e, sobretudo, dos penduricalhos nos porta-chapéus das delegacias, promotorias e fóruns, onde todos são julgados de acordo com uma lei que varia para cada caso.

Recentemente, até a próspera prole do metalúrgico-modelo teve seus telefonemas grampeados por federais, que o chefe imediato, Márcio Thomaz Bastos, chamava de “republicanos”, num desafio à altura inatingível onde, no trono, se postava o prestimoso pai, chefe de todos os chefões, Luiz Inácio Lula da Silva. É que a PF, à época, se dividia em grupos sob os auspícios de diferentes correntes: os tucanos de Marcelo Itagiba, os herdeiros de Romeu Tuma, os petistas de Paulo Lacerda, etc. Hoje os repórteres que frequentam os gabinetes dos agentes e delegados reportam a existência de uma nova geração que aposta no conhecimento das leis e na isonomia dos investigados. Por uma feliz coincidência, os velhos promotores e juízes também foram substituídos por jovens que se orgulham de seus princípios de fé na justiça e na ordem. É bom, mas a ordem elevada a extremos chega a virar repressão pela repressão e a justiça pode esconder-se nos porões quando se modifica numa espécie de profissão de fé de meras convicções. Isso produz um efeito perverso na mudança da velha democracia grega num novo cavalo de Troia, em cujo ventre crenças se metamorfoseiam em verdades absolutas, como no jogo de luzes e sombras que fazia a graça de “As aparências enganam”, seção semanal de Carlos Estêvam no Cruzeiro dos anos 30 a 60. em que a luz iluminava a tragédia que parecia comédia à sombra. Ou vice-versa.

Excelente reportagem de Luiz Maklouf Carvalho no Estado de domingo 3 de dezembro revela como é preciso vigiar para evitar abusos de autoridade. Muito embora também não se deva permitir que a ausência dessa vigilância facilite a fuga dos delinquentes perfumados pelos desvãos dos tribunais de juízes que escondem nas dobras de suas togas penas de ganso prontas para promoverem a impunidade de seus afilhados de casamento. O repórter comparou a tragédia do ex-reitor da Universidade de Santa Catarina (UFSC) Luiz Carlos Concellier de Olivo, o Cau, com a saga de Josef K, perseguido pela lei implacável e sombria na criação de ficção do maior romancista do século 20, o judeu tcheco Franz Kafka. A abertura de O Processo, o romance que virou clássico de cinema na versão irretocável de Orson Welles, ressurge na abertura do texto no jornal: “Alguém devia ter caluniado Luiz Carlos Cancellier de Oliveira, porque foi preso numa manhã, sem que houvesse feito alguma coisa de mal”.

No entanto, nem Kafka seria capaz de descrever o frio roteiro de Florianópolis: Cau foi preso pela Polícia Federal, na Operação Ouvidos Moucos, em 14 de setembro. Era investigado, sem saber, pela delegada Érika Mialik Marena, ex-coordenadora da Operação Lava Jato em Curitiba, e depois da Ouvidos Moucos, em Florianópolis. Fora denunciado pelo corregedor-geral da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, que não omitiu à polícia sua condição de desafeto do denunciado pela mesquinha razão de que este, para economizar gastos na instituição, subtraíra uma gratificação de R$ 1 mil de seu holerite mensal. A PF usou 115 agentes para prender os sete denunciados, entre os quais Cancellier, encaminhado, como se condenado fora, à penitenciária. “Teve os pés acorrentados, as mãos algemadas, foi submetido, nu, à revista íntima, vestiu o uniforme de presidiário e ficou em uma cela na ala de segurança máxima”, descreveu Maklouf. Dezoito dias depois, jogou-se do sétimo andar de um shopping na capital catarinense. Tudo começou numa investigação corriqueira sobre um programa de educação a distância. A PF informou em manchete em seu site que a Operação Ouvidos Moucos combatia desvios de R$ 80 milhões. A delegada reconheceu que esse total era a soma dos repasses do Ministério de Educação para a UFSC ao longo de dez anos (de 2005 a 2015), sendo que Cancellier assumiu a reitoria em maio de 2016.

Maklouf não conseguiu ouvir o delator Prado, que não atendeu ao celular que a instituição forneceu como sendo se sua propriedade. Conforme Maklouof, ao voltar de uma viagem a Portugal, Cancellier mandou abrir um inquérito, pedido pelo professor Gerson Rizzatti, e afastou Prado até a conclusão, mas o juiz federal Osny Cardoso Filho não o autorizou. A vice-reitora Alacoque Erdmann, no cargo, foi visitada pelo superintendente da Controladoria-Geral da União (CGU) no Estado, Orlando Vieira de Castro, e pelo procurador da República André Bertuol. Depois da visita, ela revogou a portaria. O repórter não conseguiu falar com ela, nem Bertuol e Cardoso. E registrou que o siteJornalistas Livres deu conta de uma sentença contra Prado por calúnia e atos de violência contra a ex-mulher e moradores de um prédio do qual foi síndico. Em 25 de novembro último, o juiz Marcelo Volpato de Souza arquivouar o inquérito da morte do reitor, louvando-se do parecer do procurador Andrey Cunha Amorim, concluindo por suicídio. E atribuindo o gesto à humilhação de que Chancellier foi vítima.

Tudo foi convenientemente sepultado sem que a presidente do Conselho Nacional de Justiça, Cármen Lúcia, tenha perguntado à juíza federal Juliana Cassol por que autorizou a prisão. Não há também notícia do interesse da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, em saber de Bertuol o que motivou o pedido de prisão. Também a delegada federal tem a esclarecer sua atuação, no mínimo, imprudente. Mas o diretor-geral da PF. Fernando Segóvia, parece mais interessado em garantir privilégios para os colegas na reforma da Previdência, negociando diretamente com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, o Botafogo do propinoduto da Petrobrás, e em esgrimir com os procuradores na luta pelo poder nos inquéritos dos acusados. Para quê? Pelo visto, para nada!

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