domingo, 23 de julho de 2017

O carroceiro de Pinheiros

Nada fora planejado, nem o assassinato do carroceiro morto num final de tarde da semana anterior numa rua de Pinheiros, populoso bairro de classe média de São Paulo, com dois tiros no peito disparados por um soldado da PM de 24 anos.

Considerando-se a normalidade insana com que a violência se incorporou à paisagem nacional — só no Rio, 632 pessoas já foram atingidas por balas perdidas este ano, 67 delas morreram, e 90 policiais foram executados no mesmo período —, a morte de um catador de lixo poderia ter sido recebida pelos moradores do bairro como mais um indigesto transtorno urbano no pedaço.

Deu-se o contrário. Diante do ocorrido, vários bípedes que tocavam suas vidas sem maior militância anterior assumiram-se como seres humanos, reconheceram-se como parte de um mesmo problema, e se puseram a agir como cidadãos dispostos a não mais integrar o quadro de decomposição social do país. Decidiram que, no Brasil de hoje, a vida ou morte de um carroceiro vale tanto quanto a de qualquer um de nós — pouco. E que isso tem de deixar de ser aceitável.

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Testemunhas que haviam presenciado o assassinato e vizinhos habituados ao por vezes irascível personagem da rua saíram do casulo ao ouvirem a frase “tem que matar mesmo!”, dita por uma moradora. Criaram uma campanha de início tímida, amadora, sem recursos e improvisada, mas que tinha um eixo fundamental:

TEM QUE VIVER!, eco intuitivo, talvez, talvez do grito lançado pelos jovens americanos diante da violência policial, e que se transformou no movimento Black Lives Matter.

O carroceiro Ricardo, decidiram os envolvidos na campanha, não haveria de simplesmente sumir na “Cidade Linda” idealizada pelo prefeito João Doria.

Através de panfletos caseiros e cartazes distribuídos de mão em mão, além de convocações divulgadas por redes sociais, familiares, moradores, comerciantes e taxistas da região, foi programada uma missa de sétimo dia para a quarta-feira desta semana. Era o dia mais frio do ano, num dos locais mais icônicos da cidade: na Catedral da Sé.

Ao meio-dia, com o termômetro marcando 9 graus, uma plêiade que misturou coletivos de carroceiros, movimentos negros da periferia, moradores de rua, veteranos grisalhos de outras batalhas, foi subindo os degraus que levam à catedral para a missa celebrada pelo bispo auxiliar de São Paulo, dom Devair.

Ao pé da escadaria, uma carroça pintada de branco com a data de nascimento e morte, e o nome completo do catador de Pinheiros — Ricardo Silva Nascimento — dava vida ao morto.

No interior da igreja lotada, uma única participante deslocada portava na lapela o bóton “Fora Temer”. Ela talvez não tenha percebido que as pessoas ali reunidas não estavam em campanha política nem partidária, que, com ou sem Temer, a matança da vida brasileira é contínua, e que o retrato de um país se mede pela forma como a sociedade trata os mais descartáveis.

Ao final da celebração, ninguém ousou escapulir do frio da escadaria, pois o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, sempre a voz mais ouvida e atuante em defesa da cidadania periférica, falou a céu aberto contra a violência policial e a invisibilidade dos que o poder público não quer ver.

Quarenta e dois anos atrás, no histórico culto ecumênico celebrado no mesmo local em memória do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura, havia medo. Mas havia também a esperança de que o regime militar e sua violência seriam derrotados algum dia.

Desta vez, não houve medo. Houve desalento. Na democracia brasileira conquistada, carroceiros e cidadãos comuns continuam valendo tão pouco quanto antes e durante a ditadura.

E assim será até a faísca de Pinheiros se espalhar pela sociedade. Sem bótons ou bandeiras — apenas pela decência da vida.

Dorrit Harazim

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