quinta-feira, 25 de maio de 2017

Sepultar os mortos, cuidar dos vivos

A devastação do ambiente político nacional já foi comparada a tempestades, furações, incêndios e terremotos. Simbolicamente, o mais provável é que seja mesmo a soma disso tudo e muito mais; a dinâmica política, econômica e moral tem sido ruinosa; trata-se de um processo destrutivo nunca antes visto neste país e, talvez, no mundo. A tragédia contribui para o desemprego e o agravamento das condições sociais; a desolação é grande. Em muito, o ambiente geral faz lembrar o terremoto de Lisboa, ocorrido em 1755.

Era 1º de Novembro, dia de todos os santos, véspera de finados; a nobreza se retirara para o campo, de modo a aproveitar o feriado. Já a gente simples lotava as igrejas; acendia velas, pedia a Deus pelas almas. Às 9h40 da manhã, o tremor de terra que abalou a cidade pode ter chegado a 8 ou 9 pontos, numa escala moderna; foi descomunal. Logo veio o tsunami, com ondas de mais de 6 metros de altura, colocando a cidade baixa sob águas.


Na parte alta, o incêndio resultante da cera de milhares de velas, que escorria, pôs a arder as ruas e os corpos. A cidade foi destruída. Naturalmente, ocorreram saques de cadáveres, casas e igrejas; as autoridades determinaram que capturados, os saqueadores deveriam ser enforcados e expostos como exemplo. Possível imaginar o cenário: mortes por soterramento, mortes por afogamento, mortes pelo fogo, mortes por enforcamento: todos ali expostos, num quadro de terror.

De volta à Capital, El Rei, Dom José, reunido ao governo, perguntava: o que fazer? “Sepultar os mortos, cuidar dos vivos”. Há divergência quanto a autoria da frase — alguns atribuem a D. Pedro de Almeida, Marques de Alorna, outros a Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal —, o fato é que o conselho ecoou pelo reino. Primeiro-ministro, Pombal reuniu um seleto grupo de arquitetos, planejou-se o novo; para derrubar de vez o velho, nomeou oficial com autonomia para definir o que ia ao chão, o “Bota Abaixo”.

A metáfora serve para a cena política nacional: o primeiro tremor foi o mensalão, depois a turbulência das primeiras ondas de 2013; a operação Lava Jato incendiou a parte alta da sociedade. Crise econômica, a teimosia de Dilma; Eduardo Cunha, o impeachment, Tchau Querida; Lula, Aécio, Michel Temer e seu governo controverso; Joesley Batista e mais outro tsunami — o que faltava? O farisaísmo dos políticos, o moralismo torto nas redes; a intolerância, a impossibilidade do diálogo.

Quatorze milhões de desempregados, a expectativa frustrada do crescimento. O medo de retrocessos institucionais, políticos, democráticos; a desolação; a limitada perspectiva de futuro. O sistema político ruiu. Ninguém sabe por quanto tempo, nesse ambiente, o atual governo se sustentará. O que fazer?

O “Bota Abaixo” caberá ao Supremo Tribunal Federal. Mesmo com todos seus problemas, é a última cidadela do estado de direito. Por sua vez, os arquitetos da renovação estão incógnitos, ainda: o país precisa encontra-los, dar novos contornos ao sistema político. Na eventual queda de Michel Temer, uma coalizão capaz de construir pontes, restabelecer diálogos, desenhar um novo pacto já para 2018, parece fundamental. Assim como Lisboa, o Brasil continuará existindo.

Seguindo a norma simples, como Pombal, o país deve sepultar os mortos deste processo; são vários, à suas almas cabe o despacho deste vale de lágrimas; que os corpos sejam recolhidos, com justiça. Evitar Walking Deads. No mais, cuidar dos vivos, evitando o oportunismo dos muito vivos.

Carlos Melo 

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