terça-feira, 23 de maio de 2017

Onde teríamos acertado?

Na luta contra a corrupção em si, nada de novo. Acabar com a corrupção não é só a promessa de todos os nossos candidatos, mas a divisa de todas as nossas revoluções e justificativa de todos os nossos golpes. Cada um a interpreta à sua moda. Para os donos do poder, essas acusações nunca passam de pretexto golpista, demagogia, moralismo barato. Ao contrário, quem derruba e sobe alega sede de justiça, autêntica aspiração popular.

Mas se essa dualidade também ocorre no momento atual, existe uma diferença gritante no desenvolvimento da luta e no seu desenlace.

A tradição limitava o embate ao terreno da política e ao desenlace em sangue, como no suicídio de Getúlio Vargas, ou em mudanças traumáticas de regime, como em 1964, ou na tradicional pizza. O impeachment de Collor e o de Dilma Rousseff foram exceções à regra, primeiros sinais de que alguma coisa estava mudando.

Com a Lava Jato, no entanto, o Brasil assistiu, estarrecido, a uma espantosa novidade: a prisão de milionários e políticos poderosos, não como resultado da brutalidade de atos institucionais ou da veneta da polícia política, mas com as instituições funcionando normalmente e respeitado o direito de defesa.


Onde teríamos acertado? De onde a Lava Jato tirou a sua força? Entre os elementos mais citados, temos os avanços da tecnologia, que hoje permite rastrear transferências bancárias pelos descaminhos dos paraísos fiscais, a eficiência das delações premiadas, o apoio decidido da grande imprensa, a revolta popular às voltas com hospitais sem medicamentos.

Uma das explicações mais citadas é que os excessos de corrupção recente teriam causado a reação moralizadora. Ouve-se falar que nunca, em tempo algum, a corrupção atingiu patamares tão elevados. É, talvez, uma meia-verdade. Se as somas envolvidas não têm paralelo, convém lembrar que somas envolvidas e a gravidade das consequências nem sempre andam juntas. Os 30 dinheiros que compraram Judas no suborno mais famoso da História, ao câmbio de hoje, dariam para comprar dois pares de tênis de marca.

De qualquer maneira, todos os casos do passado ao presente brasileiro, dos deputados de enxurrada do Império ou das eleições a bico de pena da Primeira República ao dinheiro da Petrobrás, nada se compara ao tráfico de escravos. Nos primeiros dias da independência, por uma série de tratados que a Inglaterra começara a impor desde 1810, o tráfico negreiro saiu lentamente da legalidade, mas continuou a prosperar com a total conivência ou tolerância das autoridades até 1850, quando os navios da esquadra britânica passaram a invadir os portos brasileiros apresando ou incendiando os negreiros ancorados.

Na expressão de Joaquim Nabuco, foi o crime geral e incomparável da nossa História. Incomparável “pela perversidade, horror e infinidade de crimes particulares que o compõem, pela sua duração, pelos seus motivos sórdidos, pela desumanidade do seu sistema complexo de medidas, pelos proventos dele retirados, pelo número de suas vítimas e por todas as suas consequências”.

Hoje em dia, quando se lamenta a força descabida dos bicheiros, dos traficantes e dos empreiteiros, convém lembrar que o Brasil já foi o país dos negreiros. Se não serve de desculpa, serve ao menos para pôr as coisas em perspectiva, e talvez nos ajude a entender o que deu certo na Lava Jato.

Mas, afinal, onde foi que acertamos? Além dos fatores já citados e que, juntos, compõem um feliz concurso de circunstâncias, vale lembrar a resistência crescente da opinião pública a ver o suborno como fatalidade dos negócios com o Estado. Já não se aceita que a propina seja um mecanismo indispensável para se livrar da extorsão dos políticos. Outra explicação para o êxito da Lava Jato teria vindo não de seus méritos, mas dos excessos dos governos que por falta de experiência teriam ido com muita sede ao pote.

Ao relembrar o velho ditado “quem nunca comeu melado quando come se lambuza”, Gilberto Freire lembra que ele se aplica a uma multidão e situações figuradas, além da concreta. “Come-o não somente com a boca, como com os olhos, com as mãos, com o nariz; com o rosto inteiro; com os próprios cabelos; derrama-o sobre a camisa e sobre a roupa, extravasa-o sobre a mesa; emporcalha a toalha”. Algo análogo teria ocorrido com a Petrobrás.

Mas, como a própria Lava Jato passou a demonstrar, a corrupção também atinge partidos políticos há muito tempo no poder. A tal ponto que, desenganados com todos eles, alguns desmemoriados começam a pregar a volta dos militares ao poder. É provável que os escândalos do período verde-oliva – Coroa-Brastel, Delfin, Haspa, Continental, Sulbrasileiro, Capemi, o caso das polonetas e tantos outros – tenham caído no esquecimento.

Mas um único fato bastaria para avivar a memória. Durante todo o regime militar, as empresas brasileiras de certo porte exibiam militares da reserva, coronéis de preferência, se possível generais, em cargos de diretoria, conselhos de administração ou assessorias variadas. Em empresas estatais o processo era simples, pois, como donos do poder, os militares iam nomeando uns aos outros. Nas empresas privadas, sua utilidade para abrir portas ficava clara pelo apelido “maçanetas de ouro”.

Convém notar, finalmente, que a avalanche de críticas aos empreiteiros deixou soterradas verdades inegáveis. Sem o trabalho de seus engenheiros, administradores e operários as colheitas de café e de soja apodreceriam nos campos por faltas de estradas e mesmo que houvesse caminhos de terra de nada serviriam, pois não haveria como exportá-las sem portos nem aeroportos. Não haveria como protestar em Brasília, pois não haveria Brasília. Aí, sem dúvida, foi onde acertaram. Mas também receberam até bem demais pelo seu trabalho e empregaram muito mal o dinheiro recebido. Aí foi, sem dúvida, onde erraram. A Lava Jato veio em boa hora para separar erros dos acertos nacionais.

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