sábado, 27 de maio de 2017

Náufrago...

Perdidos em alto-mar, procuramos boia e bússola. No Brasil, a tradicional boia da boa colocação era “dada” de favor e pelos amigos. Ela garantia um emprego no “governo” pelo resto da vida com aposentadoria herdada pela esposa, tal como as fazendas de café dos barões que viraram ministros republicanos. Era inadmissível trabalhar com as mãos tanto quanto seria um contrassenso fazer política sem mentir ou tirar vantagem de recursos que, num mundo personalizado, sendo de todos, não era de ninguém. Esse estilo está afundando.

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O enriquecimento assombroso por meio da política, a confusão entre ideologia e obséquio num mundo digital, tem separado o trabalhador do malandro bem como a verdade da mentira. Mas o pior é descobrir que os malandros são os eleitos.

Numa reforma política, o primeiro ponto a ser mudado seria o tamanho dos privilégios embutidos nos cargos. Seria transformar proxenetas da sociedade em servidores do povo. Isso sim, faria o povo ganhar personalidade.

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A tragédia do governo Temer sinaliza que verdade e mentira, oposição e situação, têm um papel indispensável na política democrática. Sem essa divisão, implodimos o Brasil num imenso e criminoso incesto.

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Supomos que o Brasil é tocado por luta de classe, quando basta um noticiário para estampar que ele também é um teatro de ações entre amigos ideologicamente fantasiados.

E como a amizade não foi tema de Marx e Engels (embora eles tenham sido amigos!), nossos teóricos jamais a tomaram como problema digno de estudo - exceto por alguns alienados, como tem sido o meu caso. Machado de Assis que, para alguns, foi um beletrista reacionário, mas que para esse vosso cronista é - ao lado de Manuel Antônio de Almeida e Jorge Amado - um dos nossos melhores sociólogos, tocou nesse tema em toda a sua obra. E, em Dom Casmurro, ele o desnuda, quando revela a transfiguração de um Bentinho inocente num Casmurro paranoico por meio de uma questão que até hoje afeta o nosso sistema: como viver a formalidade que divide e individualiza em paralelo com a informalidade da amizade, que promove simpatias e intimidades? Quem deve ter prioridade? As relações ou os indivíduos por ela envolvidos? Somos donos de nossas vidas ou são nossas vidas (e nossos elos) que nos governam?

Em Memórias de Um Sargento de Milícias, essa questão é aprofundada quando o Major Vidigal, responsável pela ordem pública, desmancha-se quando é visto por meio de suas intimidades. A desmontagem do poderoso pelos amigos é, penso eu, um dos temas centrais da democracia.

No caso do Brasil, porém, os limites e as responsabilidades dos papéis públicos como subordinados aos interesses coletivos só agora têm sido politizados. A construção e a desconstrução de presidentes, governadores, ministros e outras figuras públicas é o problema central do Brasil que precisa descolar atores de papéis. E papéis públicos de amigos pessoais.

Como um presidente, num palácio, esquece o papel que lá o colocou?

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Como é possível a Michel Temer redefinir seus laços com os brothers Wesley e Joesley? Que amizade é essa que ele recebe o sujeito na calada da noite como amigo, mas ele o detona como presidente, num encontro que hoje o faz desenhar como um Drácula? Ou melhor, como um amigo da onça?
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Muito pouco sabemos do significado da amizade em nosso sistema. Os que jamais estudaram Weber dizem que amizade não é assunto para sociólogos sérios. Antropólogos, como Mauss, Lévi-Strauss e Wolf, porém, distinguem a amizade como a dimensão básica do humano.
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No Brasil, foi e tem sido a amizade que, como uma mola, faz alguém subir ou cair, honrar ou roubar. É também a amizade que permite não entrar em fila e esperar - esse elemento trivial da vida democrática. Como Alberto Junqueira e eu indicamos num livro recém-publicado - Fila e Democracia -, as filas só têm legitimidade quando há consciência de igualdade. Mas, como mostra o drama do momento, relações; amizades, compadrios e as simpatias estão na base do elo espúrio e malandro entre a economia, as finanças, a política e os poderes da República.

Esquecemos as coerções impostas pelos cargos públicos em nome das amizades. Promessas ideológicas irrefutáveis e generosas são rompidas pelos deveres implícitos das amizades. No Brasil, a amizade tanto pode libertar quanto condenar. Ela, até hoje - daí a dramaticidade da crise -, permitiu confundir verdade com mentira. Até hoje, o caudilho e eventual tirano é, antes de mais nada, um amigo e um pai.

Sem nenhum controle, a amizade transformou a vida partidária numa farsa ideológica e o sistema político num descarado balcão de negociatas. Ela é o rabo que prende todo mundo...
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É impossível não ter amigos e a sombra abençoada da amizade, mas sem discutir os seus limites é - como estamos vendo, vivendo e adoecendo - impossível construir um país decente. 

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