quinta-feira, 27 de abril de 2017

Legalidades e propinas

O que causa repulsa não é o projeto de distribuir renda ou empoderar os menos favorecidos, mas o elo entre altos administradores federais com empresas para burlar o mercado, enganar o eleitor e roubar a sociedade

O estudo de sociedades tribais mostra que é possível existir governabilidade sem leis escritas, igreja, parlamento e Estado. Elas operam substantivamente de modo pessoal e recíproco, ao passo que nós instituímos uma tradição na qual o pessoal e o impessoal se alternam e misturam. Em aldeias o obrigatório se manifesta nos rituais.
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O estabelecimento de uma administração federal republicana no Brasil, cujas leis ainda são tomadas como panaceias capazes de tudo resolver, não soterrou reversões e resistências vindas da sociedade de modo a fortalecer todo tipo de laços extralegais. Tentando coibir com leis uma dinâmica social relativamente imprevisível, criamos uma dialética negativa entre leis e relações humanas. Assim, quanto mais legalidade, mais ativamos o “você sabe com quem está falando?” e o “jeitinho” — esses afins da propina e, de um outro plano, da malandragem malazarteana como um modo aprovado de resolver situações. Não é por acaso que no Brasil, como dizem Stuart Schwartz e Richard Moneygrand, o “legal” é sinônimo do bom!
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É justamente nesse espaço entre o formalismo institucional igualitário e “pessoas” com influência política (obtidas ou não pelo igualitarismo) ou por dinheiro que se instala uma “ética de simpatias”. Por meio dela, faz-se uma ponte entre legisladores e empresários, entre donos do governo e donos de empresas. O alvo dessa passagem sempre foi, com as isenções que confirmam a norma, a subtração de recursos da sociedade.
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O Estado (e o governo que o personifica) usado como um recurso para empregar parentes e amigos sempre foi uma rotina e uma obrigação. A novidade que hoje testemunhamos está no volume, na estrutura e na justificativa ideológica que se usa para legitimar esse assalto jamais visto — a ponto de levá-lo à ruína. Aliás, estampar confissões e colaborações como “delações” revela a força da ética altruística da amizade contra o sistema legal porque denunciar amigos é — no Brasil — o cúmulo da falta da caráter.
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Toda a sociologia política que nos antecede trata de uma questão central: a passagem da casa e do parentesco como instituições controladoras de acesso a riqueza e poder, para instituições impessoais como o contrato de Maine e a “civitas” de Morgan — um sistema no qual o parente e o amigo são englobados pelo cidadão submetido a impessoalidade igualitária. Do “axioma da amizade”, como dizia Fortes, confirmando São Tomás de Aquino, ao “axioma da igualdade” que tanto assombrou Tocqueville nos Estados Unidos, existem — como vemos indignados — convivências e exageros. Pois não há nenhuma sociedade exclusivamente fundada no parentesco ou na cidadania; nem numa plena informalidade na qual uma ética de condescendência tudo perdoe, proscreva e autorize, nem numa ética igualitária que bloqueie afeições e intimidades.

É justo esse jogo que ressurge com uma extraordinária nitidez entre nós.
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O que hoje causa repulsa não é o projeto de distribuir renda ou empoderar os menos favorecidos. Não! É o elo entre os mais altos administradores federais com empresas com o objetivo explícito de burlar o mercado, enganar o eleitor e roubar a sociedade. É descobrir que partidos políticos usam a linguagem da igualdade em público, mas operam por meio de amizades instrumentais.

Para Eric Wolf, que falou sobre o papel da amizade em sistemas industriais, haveria dois tipos de amizade: as afetivas, baseadas no altruísmo; e as que têm como alvo uma troca explícita de bens, cargos e serviços. As que demandam pagamentos imediatos — quase-contratuais — não fosse pelo uso do codinome e do seu caráter particular. A amizade afetiva é o cimento da própria vida social, a outra ocorre fora da casa e, no caso brasileiro, ajuda a realizar ambições inconfessáveis implícitas no modelo não politizado do sistema: o poderoso deve ser rico e o rico, poderoso. Nenhum deles é controlado ou teria limites. Esse seria o ideal da nossa autocracia: nada a detém, exceto a sua ausência de caráter.
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Devo relembrar um outro teorema da vida política nacional? Devo recordar, com Oliveira Vianna e com os “delatores” que resistimos a tudo, menos ao pedido de um amigo? Sobretudo quando ele é o “Amigo”?

A novidade intragável é quando a lei não é mais controlada por quem tem foro privilegiado. É quando falamos em limites para uma elite que jamais teve consciência de até onde pode ir. Essa elite que passou da escravidão ao trabalho livre controlado por sindicatos domados pelo governo e pelos incontáveis "pais dos pobres" e compadres dos ricos...
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A tentativa de controlar os limite das promotorias, defendida por políticos citados na Lava-Jato, demonstra o teorema. Eles não querem ficar do lado da lei, o que desejam é fazer uma lei que esteja ao seu lado. No Brasil, o impessoal é o oposto do nosso estilo de vida. Se a impessoalidade engendra a igualdade, ela deve ser controlada. Eu não compartilho meus amigos poderosos com meus amigos comuns para não perder o controle sobre eles...
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Confundimos politicar com politizar. E policiamos com tal abuso e arrogância, que e a política virou uma bruxaria. Não é mais feita pensando no país, mas na nossa salvação. Amém..
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Roberto DaMatta 

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