sexta-feira, 21 de abril de 2017

Fim do mundo, novo mundo

A delação dos dirigentes da Odebrecht não trouxe tantas novidades para quem leu os vazamentos. No entanto, a forma como se apresentou – vídeos dos delatores, riqueza de detalhes e algumas surpresas – trouxe grande impacto mesmo para os que conheciam os dados principais da trama.

Para começar, alguns obstáculos técnicos: as denúncias não foram hierarquizadas e divididas em blocos. E o áudio das delações era bastante sofrível. Aliás, a qualidade do áudio é uma crítica que faço não apenas à Lava Jato. Parece que vivemos numa era pré-estereofônica, na contramão de uma tecnologia cada vez mais acessível.

Percebo à distância que grandes peixes passaram quase em branco, como o negócio dos submarinos com a França. Aliás, dos 200 depoimentos ainda em sigilo, quase todos tratam de aventuras internacionais e da participação do BNDES, algo que me interessa na proporção em que se esforçam para escondê-los. Nesse oceano de informações, algumas dolorosas, porque trazem também decepção sobre certas pessoas, escolhi uma frase de Emílio Odebrecht para comentar, aquela em que ele diz que a corrupção existe há 30 anos e ele não entende a surpresa da imprensa, que não a teria denunciado.

Reconheço que mostrar-se surpreso e ser ao mesmo tempo um observador da vida política nacional é contraditório. Só posso entender esse movimento de alguns comentaristas pelo desejo de empatia com seus leitores ou espectadores, estes, sim, sem o mesmo nível de informação, estupefatos com os bastidores das relações entre políticos e empreiteiros.


Não é verdade que o sistema de corrupção, ao longo dos anos de redemocratização, não tenha sido denunciado. A própria Odebrecht confirma isso ao confessar que sofisticou o processo depois da CPI dos Anões do Orçamento. O jornalista Jânio de Freitas foi um pioneiro ao desmascarar licitações fraudadas na Ferrovia Norte-Sul. Grandes operações da Polícia Federal, como a Castelo de Areia, morreram na praia porque a Justiça anulou as provas, algo que o ministro Gilmar Mendes chegou a sugerir para a Lava Jato.

E posso me concentrar num episódio que conheço bem, para contestar parcialmente a fala de Emílio Odebrecht. Refiro-me ao caso que ficou conhecido, graças à esperteza de Lula, como o dos aloprados do PT. É a história dos petistas detidos com R$ 1,6 milhão em dinheiro, nas eleições de 2006. Eu era o relator da CPI dos Sanguessugas incumbido desse caso. Ele tinha relação com a CPI porque José Serra, supostamente, seria denunciado pelos principais acusados de superfaturar ambulâncias.

Tentei desvendá-lo ouvindo depoimentos, era o instrumento que tinha. Os petistas estavam eufóricos com a reeleição de Lula. Não davam pistas.

A imprensa trabalhou muito. Dois repórteres da Veja chegaram a ser detidos na Polícia Federal de São Paulo. O então diretor da revista, Mário Sabino, foi indiciado por tentar informar os seus leitores.

O que a CPI não tinha nem a imprensa conseguiu foi o detalhe revelado agora pela delação: num dos maços de notas destinados a comprar o dossiê contra Serra havia uma etiqueta de uma empresa da cervejaria Itaipava. No contexto atual, o caso seria esclarecido a partir desse detalhe, desprezado nas investigações.

Não quero afirmar que a imprensa tenha sido uma combatente heroica da corrupção, sobretudo porque sob esse conceito mais geral há comportamentos muito distintos. Quero afirmar apenas suas limitações. Ela não pode quebrar sigilos bancários e telefônicos, muito menos realizar entrevistas seguidas de condução coercitiva.

O que mudou essencialmente o quadro foi a eficácia da Lava Jato. Ela evitou todas as armadilhas em que caíram as operações derrotadas pelo poderoso sistema de corrupção.

Foi graças às investigações e sólidas provas da Lava Jato que a imprensa conseguiu avançar, contribuindo com seu esforço para desvendar a engrenagem que sufocava o Brasil. O interessante é a crítica pendular que ela sofre. Quase sempre foi acusada de inventar denúncias. Recentemente, o PT qualificava os escândalos que o envolvem como uma “conspiração midiática”. Emílio Odebrecht a acusa-a de ter silenciado ao longo dos anos e fazer agora um grande estardalhaço. Mas a verdade é o quanto tanto a PF como os procuradores evoluíram com o tempo e com os fracassos relativos. E a própria imprensa se tornou mais cautelosa ao se mover em terreno tão delicado.

Alguns dos mais importantes vazamentos foram em blogs, que têm uma estrutura mais leve e, por causa disso, ousam mais. O que Emílio Odebrecht não considerou em sua fala foram os enormes avanços havidos no Brasil, enquanto empreiteiras e políticos vivam num mundo à parte.

A experiência de vida mostra que muitas coisas que eram proibidas no passado passam a ser permitidas com o tempo, como, por exemplo, o divórcio e a união de gays. Mas história é mais complicada. Muitas coisas, antes toleradas, passam a ser proibidas com o tempo, como o assédio sexual por exemplo.

Alguns fatores tornaram a corrupção conhecida de quem observava friamente o processo, mais vulnerável que no passado. Um desses fatores é a maior transparência impulsionada também pela revolução digital. Outro aspecto importante, talvez inspirado pela Justiça americana, é a tática de rastreamento do dinheiro de propinas através dos labirintos do sistema financeiro internacional.

Finalmente, certas mudanças de atitude, como a da Suíça, foram fundamentais. A Suíça se abriu, a polícia brasileira mudou, a tolerância das pessoas comuns mudou, foram tantas mudanças que é bastante compreensível que a bolha tenha estourado agora, e não antes, apesar de inúmeras tentativas frustradas.

Mesmo sem me importar com os risos pragmáticos, diria que Emílio poderia aprender com o escândalo uma lição mais valiosa que sua fortuna: a impermanência de tudo, o constante processo de mudanças.

Fernando Gabeira

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