terça-feira, 18 de abril de 2017

Enquanto a terra treme

O meu filho Carlos tinha quatro ou cinco anos quando assistiu pela primeira vez a um vídeo do meu casamento. Durante alguns minutos acompanhou as imagens com grande atenção. Riu-se, divertido, ao reconhecer os primos, os tios, os amigos da família. A determinada altura, porém, fez um grande silêncio. Chamou-me:

“Papi, onde estou eu, nessa festa?”

“Não estás…”

“Não estou?” — Todo ele era indignação. — “Então vocês casaram e não convidaram o próprio filho?!”

Disse-lhe que naquela altura ele ainda não existia. Foi o pior que lhe podia ter dito. Olhou-me, mais do que indignado, horrorizado:

“Não existia?! Como não existia? Eu existo desde sempre.”

Partilho a indignação do meu filho. A ideia de não existir desde sempre horroriza-me ainda mais do que a de deixar de existir um dia. Pior do que deixar de existir é não ter existido a eternidade inteira, ou quase inteira, o que, aliás, significa o mesmo. Então o universo está em festa há milhões de anos, estrelas pipocando no espaço infinito, mundos se formando, a Terra ganhando vida, o primeiro homem abrindo os olhos na África, provavelmente em Angola, acredito até que no Huambo, lá, onde hoje fica o quintal da casa onde também eu nasci e fui criado — e só me convidaram agora?

Resultado de imagem para terremoto da corrupção

Não vi Nefertiti, a Senhora do Alto e do Baixo Egito, a Rainha de Todas as Mulheres, a Amada pelo Amor, bailando junto ao Nilo. Não vi Nabucodonosor passeando ao entardecer nos jardins suspensos da Babilônia nem, já velho, vítima de licantropia, espumando e uivando como um lobo à lua cheia. Não vi Qin Shi Huang, o primeiro imperador da China, caminhando sobre aquela que haveria de ser a Grande Muralha. Não vi a Rainha Ginga desfilando, vestida como um homem, entre o seu harém de mais de 50 homens, os quais vestia como se fossem mulheres. Não vi Zumbi governando o Quilombo dos Palmares. Não tive a oportunidade de conversar com Eça de Queirós, sentados os dois a uma mesa do Café La Columnata Egipciana, em Havana, onde ele escreveu alguns dos primeiros contos. Não viajei no Zeppelin. Não escutei Louis Armstrong tocando trompete nas ruas de Nova Orleans. Não vi o espanto dos franceses diante da música de Pixinguinha e dos 8 Batutas, em Paris, em 1922 (difícil entender como ainda nenhum escritor brasileiro romanceou esta viagem; nenhum cineasta se interessou por ela).

Penso, à laia de consolação, que me calhou um tempo curioso: assisti ao momento em que Armstrong (não o do trompete, o outro, Neil), afundou o pé na poeira lunar, enquanto pronunciava uma frase que ensaiara, na Terra, dezenas de vezes: “Este é um pequeno passo para o homem, um salto gigantesco para a Humanidade”. Acompanhei de longe, através das páginas da revista “Paris Match”, que a minha mãe assinava, a explosão festiva do Maio de 1968. E, embora fosse muito novo, lembro-me até hoje dos trocistas olhos azuis de Daniel Cohn-Bendit presos aos olhos assustados de um polícia. Testemunhei a independência de Angola e dos restantes países africanos de língua portuguesa e estava na Grand Parade, na Cidade do Cabo, em 1994, quando Nelson Mandela discursou, festejando o fim do apartheid e a fundação de uma nova África do Sul. Testemunhei também o colapso de muitos sonhos, inclusive, em certa medida, o daquela África do Sul, a Nação-do-Arco-Íris, que Mandela tentou fundar.

Os rápidos dias de hoje parecem-me ainda mais interessantes. Mais inquietantes também. Atravessamos uma zona de turbulência, e não adianta procurar o cinto de segurança nas cadeiras, porque não há cinto, nem cadeiras e nem é certo que exista um piloto no cockpit. Vivemos em plena tempestade, num tempo perigoso e volátil. Adormecemos e, quando despertamos, o mundo é já outro:

“Leste os jornais? Prenderam mais um corrupto!”

“E o presidente?! Não prenderam o presidente?”

Em Angola ainda não. Na Venezuela ainda não. Na África do Sul ainda não. No Brasil também ainda não (pelo menos até ao momento em que escrevo esta crônica, sexta-feira, 14 de abril), mas em algum outro país é provável que sim. Assusta um pouco tanta notícia, tanta agitação, tanta correnteza. Contudo, não podemos deixar de experimentar igualmente certa empolgação. A verdade é que este presente deixa adivinhar um futuro melhor. Amanhã ainda haverá políticos corruptos — sinto dizer. Mas serão menos do que hoje, estarão menos protegidos e viverão com medo.

Não me conformarei nunca com a ideia de não ter existido desde sempre. Contudo, se, durante o tempo que me resta, puder testemunhar o fim da grande corrupção, a nível global, já me darei por feliz.

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