sexta-feira, 24 de março de 2017

'Hoje a máfia é ainda mais perigosa. Está nas instituições e nas empresas'

Era o domingo de Reis de 1980 e Letizia Battaglia (Palermo, 1935) estava voltando para casa depois de uma reunião, passeando com o fotógrafo Franco Zecchin e sua filha Patricia. Na rua Libertà encontraram um grupo de gente gritando em torno de um Fiat 132 com os vidros quebrados. Eles se aproximaram, ela colocou instintivamente a câmera pela janela do motorista e disparou praticamente às cegas. A imagem –que se tornou um marco documental da história recente da Itália, mostra um homem puxando pela outra porta o cadáver do político democrata-cristão Piersanti Mattarella, assassinado minutos antes na frente da mulher e da filha quando iam à missa. Quem puxava laboriosamente o corpo era seu irmão Sergio, atual presidente da República Italiana. O mesmo homem que no domingo passado, 38 anos depois e diante de dezenas de vítimas com a ferida aberta, reconheceu que a máfia continua muito viva na Itália.

Battaglia, de 82 anos – olhar e espírito da rebelião daqueles anos de chumbo na Sicília–, está de acordo. A face do mal se transformou. “Hoje a máfia é ainda mais perigosa. Está dentro das instituições, nas empresas, manda os filhos estudar nos EUA. Está interessada apenas no dinheiro, na corrupção. É mais perigosa porque não dá medo e se matam apenas entre eles. Estão nas holdingse, é claro, não só na Sicília”, explica por telefone de sua casa em Palermo. Por isso aquele mundo construído sobre cadáveres ensanguentados, policiais e prisões de chefões, mas também sobre a dignidade de promotores e juízes assassinados, como Giovanni Falcone, se tornou hoje tão difícil de fotografar. “Está fora dos estereótipos. O mafioso tem o rosto de um pai de família, de um irmão ou filho. Já não tem os traços do mundo da violência. É como se toda a sociedade tivesse se mafiosizado”.


Prisão do chefe mafioso Leoluca Bagarella (1980) - Letizia battaglia
Weegee, o emaciado e indiscreto fotógrafo de fait divers nova-iorquino, considerava inevitável se sujar com a crônica negra das ruas. Mas nas imagens de Battaglia, mãe de três filhas e que em seus anos como fotógrafa do jornal L’Ora vivia colada ao rádio da polícia para chegar sempre em primeiro lugar, não há rastro de nenhum adorno de sangue. Seus retratos –podem ser vistos em uma grande retrospectiva no Museu MAXXI, em Roma, até 17 de abril– vão além do acontecimento, são também uma viagem ao submundo cultural de Palermo que perdia e recuperava o ânimo ao ritmo de suas festas e tradições. Mas também as prostitutas, as crianças brincando com armas no Dia dos Mortos, os traficantes ou a marginalização festiva dos transexuais. Um retrato, em suma, da devastadora pobreza econômica e cultural de um povo massacrado pela indiferença de um Estado que se escondeu durante décadas atrás do álibi da distância para esquecer os problemas do sul.

E talvez o mal seja inevitável, mas a contribuição política nesse cenário, dizem as fotos de Battaglia, foi crucial. “Como é possível que enquanto nos matavam em Palermo o Estado não nos ajudasse? Como é possível que um Estado com três tipos de polícia não conseguisse pegar quatro chefões que havia nos anos cinquenta? Um governo nunca, nunca... teria aceitado isso se não fosse por seus próprios interesses. Queriam ter um sul pobre e ignorante que votasse nos partidos do Governo. A máfia obrigava os pobres a votar nesses políticos”.

Elementos de uma história nos quais, como dizia Diane Arbus sobre suas fotografias, ninguém teria reparado se não tivessem cruzado na câmera simples com grande angular que Battaglia ainda leva pendurada. Hoje, um promotor siciliano investiga a ligação entre o Estado e a máfia, a fotógrafa fala dele com devoção. Como se não estivesse claro o que pensa dessa suposta contemporização, ela mostra na exposição um Giulio Andreotti –então primeiro-ministro italiano– desfocado, granulado, de pé ao lado do mafioso Nino Salvo. Mas também estão aqueles que se comprometeram, como o artista Renato Guttuso, fumando um cigarro com Leonardo Sciascia, um dos escritores que melhor descreveu a névoa moral e política siciliana em romances como O Dia da Coruja (1961) e A Cada um o Seu (1966).

Aquela literatura tenha dado origem a outros cronistas do mesmo mundo, como Roberto Saviano e seu icônico Gomorra. Battaglia tem sentimentos misturados. “É complicado, muito complicado. Saviano é um cara muito bom e escreveu um livro maravilhoso. No entanto, as versões de televisão sobre a máfia ou a camorra me assustam porque colocam em cena personagens fascinantes. Em Gomorra, por exemplo, há dois ou três tipos que são interessantes e podem ser um modelo para rapazes mais pobres que não estudaram e não sabem resolver seus problemas. Sou a favor da liberdade de pensamento e artística, mas temo que as camadas mais frágeis da sociedade possam ficar fascinadas por esses filmes”.

Ninguém que coloca o nariz nisso, como o próprio Saviano, escapa da ameaça. E nesse contexto é impossível escolher não ter medo, conta Battaglia. Resta, isso sim, não mostrá-lo. Talvez seja por isso que nunca tocaram nela. “Não acho, eu não era tão incômoda. Os que incomodam são aqueles que tocam diretamente nos interesses da máfia, mas não com elementos culturais como eu fazia. Hoje talvez sejam mais cultos e educados e entendam isso. Mas na época não tomavam conhecimento de nada. Roubaram três vezes a minha casa e nunca levaram fotos ou negativos. Mas é bom que não tenham me matado, não acha?”.

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