segunda-feira, 27 de março de 2017

Governança distribuída para combater o desmatamento

Era mais um dia normal para o McDonald’s. Até o momento em que galinhas de dois metros de altura invadiram as lojas da rede na Europa e se acorrentaram aos pés das mesas. Os clientes ficaram atônitos. E não foram os únicos. “O presidente do McDonald’s nos ligou e deu o ultimato: ‘Resolvam este problema’”, recorda Mark Murphy, diretor global para sustentabilidade da Cargill. Sob a fantasia de galinhas, ativistas do Greenpeace denunciavam naquele abril de 2006: o gado e o frango usados nos sanduíches da rede de fast-food eram alimentados com soja, e esta última estava deixando um rastro de desmatamento na Amazônia brasileira. A principal fornecedora era a Cargill, multinacional de alimentos e uma das gigantes na comercialização e distribuição de commodities agrícolas, como soja e óleo de palma, com 150 mil funcionários em 70 países, 8 mil só no Brasil.

A ação do Greenpeace estampou jornais no mundo todo. E a denúncia resultou num acordo que ficou conhecido como Moratória da Soja: a partir dali, a indústria se comprometeu voluntariamente a excluir o desmatamento de sua cadeia produtiva. Murphy relembrou a história na sua fala no painel de abertura da Segunda Assembleia Geral da Tropical Forest Alliance 2020 (Aliança da Floresta Tropical), uma iniciativa global que reúne governos, empresas e sociedade civil com o objetivo de acabar com o desmatamento na produção de commodities como soja, carne, madeira e óleo de palma. A reunião ocorreu em Brasília, entre os dias 20 e 22 de março.

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“Não parece muito tempo, faz dez anos. Mas no quesito comportamento sustentável, o agronegócio brasileiro não tinha nada a ver com o que temos hoje”, afirma Carlo Lovatelli, presidente da Abiove (Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais), que tem entre os associados multinacionais como a Cargill, a Bunge e a Amaggi. Não foi apenas o agronegócio que mudou. De lá para cá, as estratégias para enfrentar o desmatamento de florestas tropicais passaram a incluir cada vez mais outros atores além de governos. Se as leis e repressão a infrações, o chamado "comando e controle", eram as principais ferramentas usadas nesta luta, hoje é quase impossível falar de combate ao desmatamento sem olhar para o setor privado e sua produção de commodities.

A cada ano, o número de empresas e governos comprometendo-se com o fim do desmatamento em suas cadeias produtivas aumenta. De acordo com o projeto Supply Change, da ONG Forest Trends, hoje já são mais de 400 companhias assumindo globalmente cerca de 700 compromissos deste tipo. Um aumento de 43% em relação ao ano anterior. Quase sempre, essas empresas produzem ou compram commodities de países com vasta cobertura florestal, como Brasil e Indonésia. “Cerca de 12% dos compromissos que monitoramos envolvendo soja e 28% dos relacionados à pecuária estão focados no bioma Amazônia”, afirma Stephen Donofrio, um dos coordenadores do Supply Change.

“As ações de comando e controle chegaram até onde poderiam. A partir de um ponto, elas não conseguem mais avançar muito sem a cooperação de outros setores. É neste momento que começam a surgir as parcerias público-privadas e os mecanismos de mercado para segurar o desmatamento”, diz Isabella Vitali, diretora no Brasil da Proforest, organização que apoia empresas e governos na implementação de compromissos para a produção e compra de commodities livres de desmatamento. Segundo ela, a Moratória da Soja traz um pioneirismo em seu arranjo, ao envolver indústria, governo e sociedade civil. Para além das fronteiras nacionais, até hoje a experiência é encarada como exemplo. “Depois dela surgiu uma moratória semelhante para a Mata Atlântica no Paraguai, e estão tentando fazer algo parecido na Indonésia, para óleo de palma”.

O caminho é sem volta, como mostra a Tropical Forest Alliance 2020. Com cinco anos de estrada, a TFA 2020 veio ao mundo por uma demanda do próprio setor privado. Sinal dos tempos. Em 2010, o Consumer Goods Forum (CGF) – uma rede de grandes empresas globais como McDonald’s, Unilever e Nestlé – aprovou uma resolução em que seus membros assumiram o compromisso voluntário de, até 2020, atingir o desmatamento zero líquido em suas cadeias de suprimento.

Como a tarefa é hercúlea, as mesmas empresas concluíram que sozinhas não chegariam a lugar algum. “Elas, então, demandaram uma plataforma em que pudessem dialogar com outros setores, em especial os governos e as organizações da sociedade civil. E daí nasce a TFA 2020”, explica Fabíola Zerbini, coordenadora regional da rede na América Latina.

Na última semana, o clima era de intercâmbio no evento da TFA2020. Mark Murphy, da Cargill, relembrou a história das galinhas no McDonald’s sentado lado a lado com o ex-diretor do Greenpeace, Marcelo Furtado. Outros tempos: “Numa sociedade global, você tem que entender que um objetivo tão ambicioso como acabar com o desmatamento só pode ser alcançado em parceria”, diz Furtado.

Foi o que aconteceu no caso da Moratória da Soja. E é o que está acontecendo no Acordo da Pecuária: desde 2009, frigoríficos, supermercados e empresas multinacionais que compram carne ou couro de gado criado na Amazônia vêm se comprometendo a eliminar o desmatamento de suas cadeias produtivas.
Os dados mostram que a estratégia dá certo. Em um levantamento publicado pela revista Science, pesquisadores americanos e brasileiros chegaram à conclusão: antes da Moratória, 30% da expansão da soja na Amazônia foi em áreas desmatadas. Depois do acordo, esse número caiu para cerca de 1%.

Num outro estudo, da ONG Imazon, as mudanças também aparecem no setor da pecuária. Segundo os dados, a JBS, maior frigorífico que atua na Amazônia brasileira, reduziu as compras de gado de áreas desmatadas ilegalmente. Numa amostragem, os pesquisadores analisaram as plantas frigoríficas da empresa que respondiam por 30% do abate no estado do Pará. O trabalho concluiu que o percentual de fazendas fornecedoras da JBS que haviam desmatado entre 2009 e 2013 caiu de 36%, antes do acordo, para 4% depois dele.

Para Fabíola Zerbini, a mudança no comportamento do setor privado veio com um amadurecimento e uma nova noção de responsabilidade compartilhada: “Há um marco recente que chama para a corresponsabilidade, que pode ser movimentada por um pioneirismo de marketing – quando uma empresa quer agregar valor social e ambiental à sua marca – ou por uma pressão de reputação – quando elas começam a ver seus produtos associados a problemas sociais e ambientais”.

Quando o Greenpeace colocou ativistas vestidos de galinhas nas lojas do McDonald’s, ele sabia bem que estava mexendo com a reputação de todo um setor. As empresas começaram a trazer para a si a responsabilidade sobre o desmatamento da Amazônia. E, neste caso, resolveram se mexer pelo risco de ter sua história associada à destruição das florestas.

Nesta construção, o Estado deixa de ter um papel preponderante, abrindo espaço para caminhos alternativos de solução. “Começam a nascer mecanismos de governança privada, trazendo respostas que o governo, enquanto Estado, não consegue mais trazer, porque as coisas estão mais complexas”, afirma Fabíola. “Criam-se, então, estruturas de governança quase paralelas. São acordos voluntários, mas que estão ali. E a partir deles, acaba-se regulando, legislando sem ser governo".

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