sábado, 4 de fevereiro de 2017

Por que Trump quer calar a imprensa?

Não faz muito tempo, analistas sérios compravam a tese de que a Turquia era uma “democracia islâmica”. Não que estivessem errados. Ao menos em princípio, não há incompatibilidade conceitual entre o islã e a liberdade; e, de resto, não faltavam indicadores atestando um bom grau de normalidade democrática na Turquia. O que talvez tenha faltado a esses analistas era a observação de um detalhe apenas: desde que Tayyip Erdogan assumira o poder, jornalistas vinham sendo fustigados pelas autoridades, no início por meio de armadilhas ocultas e, depois, em ataques ostensivos. Por esse detalhe, esse minúsculo detalhe, era possível diagnosticar que a vocação democrática de Erdogan não passava de jogo de cena.

Hoje, não há mais quem não veja. A Turquia está sob um regime de força. Principalmente depois da tentativa de golpe do ano passado, o governo fechou emissoras de rádio, encarcerou repórteres e editores, tirou do ar sites noticiosos e calou setores inteiros da imprensa. A máscara caiu mais recentemente, mas, desde antes, quem tivesse olhos para o tratamento que os jornalistas recebiam por lá saberia o que estava por vir.

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Com Vladimir Putin, na Rússia, as ilusões não foram tão longe. Além de intimidações violentas, há registros de jornalistas críticos do novo czar da Rússia que foram assassinados, como Anna Politkovskaya, que morreu em 7 de outubro de 2006. Bastava prestar atenção nisso para saber que estava em marcha uma sangrenta escalada do arbítrio, impulsionada pela manipulação da opinião pública. Para Putin, a imprensa é uma hóspede indesejável, como para Erdogan, pois os jornais livres atrapalham o consenso compulsório. O jornalismo não é indispensável à democracia por ser bom, por ser virtuoso. Ele é indispensável, mesmo quando vicioso e pestilento, porque desorganiza os projetos autoritários. O jornalismo é vital porque atrapalha, não porque ajuda.

Se você quer saber se a democracia vai bem, vá pelo critério da liberdade de imprensa. Olhemos para o México, por exemplo. Lá existe claramente uma sociedade democrática. No México, quem ameaça, fere e mata profissionais de imprensa não é o poder, mas bandos armados ligados ao narcotráfico. Ainda assim, alguns aspectos da vida institucional daquele país inspiram preocupação. Em casos documentados e conhecidos internacionalmente, a morosidade das investigações policiais e dos processos judiciais obstruiu o esclarecimento e a punição de crimes cometidos contra jornalistas. Aí, é o caso de perguntar: será que a democracia vai bem numa sociedade em que não há expectativa de justiça? Existe democracia plena se o Estado não é capaz de proteger as pessoas que trabalham na imprensa? A questão não é simples.

Ao poder democrático não basta que não ataque jornalistas – é preciso que ele disponha de meios eficazes e de determinação política para assegurar a integridade e a segurança física, psíquica e moral dos jornalistas que o fiscalizam e o criticam. O poder democrático é aquele que respeita, com atos e com palavras, a dignidade das redações.

É por essa lente que devemos olhar agora para Donald Trump. Ao contrário de Erdogan, que por vezes disfarçou sua ferocidade, o novo presidente americano vangloria-se da própria. Tem uma briga declarada não com um ou outro setor da “mídia” (palavra que ele usa para designar a imprensa), mas com a imprensa por inteiro. Logo após tomar posse, durante uma visita oficial ao escritório da CIA, disparou suas ogivas verbais: “Estou 1.000% com vocês (ele se dirigia aos funcionários da CIA). E a razão de vocês serem a minha primeira opção é que, como vocês sabem, eu tenho uma guerra em curso contra a mídia. Eles estão entre as pessoas mais desonestas da Terra”.

Quando um presidente da República se declara em “guerra” contra a imprensa, a sociedade vê-se diante não de um discurso, mas de um ato material. Uma declaração nesses termos, vinda do chefe de Estado da maior potência militar do planeta, é uma agressão consumada. Para que não restassem dúvidas quanto a isso, poucos dias depois, na quinta-feira passada, o principal estrategista da Casa Branca, Stephen Bannon, afirmou que a mídia é um “partido de oposição” e reforçou a artilharia: “A imprensa deveria sentir-se envergonhada e humilhada. E manter sua boca fechada e apenas ouvir durante um tempo. A mídia elitista errou, errou 100%” (ele se referia às pesquisas publicadas nos jornais, e aos comentários da grande maioria dos articulistas, que davam como certa a vitória de Hillary Clinton).

Enunciado mais claro, impossível. Mesmo reconhecendo que boa parte dos veículos jornalísticos dos Estados Unidos errou em seus prognósticos, mesmo reconhecendo que houve partidarismo favorecendo a candidatura do Partido Democrata, mesmo reconhecendo que a imprensa deve aprender a ouvir mais do que tem o hábito de ouvir, nenhum integrante da cúpula do Poder Executivo em nenhum país democrático tem o direito de mandar a imprensa ficar de “boca fechada”. Ora, se a imprensa fecha a boca, a democracia emudece. Bannon não se abala. Exige com palavras (por enquanto) o que Putin e Erdogan impuseram com violência.

Costuma-se dizer que os Estados Unidos são a maior democracia da Terra. Pois essa democracia não é inabalável. Ela está em perigo. Veremos agora se as instituições democráticas darão conta de conter os excessos selvagens de Donald Trump e seus aduladores, excessos contra imigrantes, contra os vizinhos do México e contra a liberdade de imprensa. Veremos se a democracia resistirá.

A julgar pelo nível de infâmia de sua retórica, Trump é candidato a ser pior do que Putin e Erdogan somados. A ambição de poder que ele acalenta não cabe nos sonhos dos pais fundadores do federalismo americano e nos ideais de uma comunidade internacional regida pelos direitos humanos.

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