terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O tríduo de Momo

Existe na literatura norte-americana um método modernista, que William Burroghs usou muito, chamado de “cut and splice”, que consiste em romper um texto e utilizar aleatoriamente suas frases para criar um novo texto. Os dadaístas também escreveram assim. E agora, eu, neste artigo de hoje, também uso esta tecnologia, pois todo ano meu artigo das terças-feiras cai no Carnaval.

O artigo é que cai – não eu, que sempre fui um reprimido diante da alegria com data marcada.

E, assim, todo ano eu acabo escrevendo a mesma coisa. Por isso, faço hoje uma colagem de trechos principais de antigos Carnavais para formar não sei o quê de uma festa que não se sintetiza em poucas frases, que nunca é uma coisa inteira.

Lembro-me de que o Carnaval começava no Rio sob o canto das cigarras, com flores vermelhas caindo dos flamboyants, lembro-me das marchinhas toscas que começavam a tocar nas rádios por volta de dezembro, lembro-me das bobas fantasias – legionários, piratas, cowboys – influenciadas pelos filmes norte-americanos, lembro-me da Casa Turuna, na cidade, com máscaras de morcegos, pretos velhos, fantasmas, lembro-me das escolas de samba ainda a pé na avenida Presidente Vargas – bandos de índios de bigode e penas de espanador, pintados de preto, seguidos pelas gordas baianas tilintando de balangandãs. A multidão olhava, queria participar e era alegremente esbordoada pelos cassetetes da PE, a temida Polícia Especial, sob os sons dos tamborins.

Carnaval, para mim, era o cheiro. Até hoje, quando penso nos Carnavais do Rio, lembro-me do cheiro das garrafinhas de lança-perfume. Havia-as em vidro, frágeis como ampolas, mas o belo falo perfumado do Carnaval era o Rodouro Metálico. O lança-perfume era uma espécie de precursor das drogas modernas. A prise de éter que tomávamos fazia o mundo girar até o desmaio entre serpentinas.


Hoje, o Carnaval chega pronto. Antes, era uma revelação; hoje ele esconde alguma coisa perdida. Creio que falta um minimalismo poético nos desfiles de luxo. Falta o mau jeito, faltam a ingenuidade, o romantismo, falta Braguinha, Lamartine. Mas tudo bem; sem chorar pelo chope derramado. O Carnaval é fragmentário e, olhado bem fundamente, é um comício, quase um comício político.

Como uma grande manifestação pública, renasceu o Carnaval das ruas, como contraponto às escolas de samba. Acho mesmo que a tradição está mais presente nos blocos dos foliões anônimos. Nas ruas, estão os anjos de cara suja, os blocos das escrotas, dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre. Nas ruas, a gente lembra-se de um Brasil feito de toscos sambinhas, de uma precariedade poética que acabou.

Hoje, assistimos ao Carnaval de nossas desilusões políticas, jogados numa crise sistêmica que está a desmanchar tudo. Mas o Carnaval – como uma onda colorida, como uma muralha de música – resiste a essa estúpida desconstrução com um ideologismo ignorante somado à corrupção que nos envenenou.

Não podemos deixar que os velhos canalhas de sempre cortem nossa onda, que os poderosos de 400 anos transformem nossa alegria em ingenuidade, nosso anarquismo em escravidão.

Um país mesclado de raças e sacanagem pode ser o antídoto dionisíaco contra a mediocridade burocrática e corrupta que vergonhosamente nos assola. Mas, mesmo assim, ainda me pergunto: como podem os brasileiros ficar alegres, diante dessa crise imunda que nos acomete?

Foi então que me lembrei dos carros de “crítica” que desfilavam com as Grandes Sociedades Carnavalescas – os Tenentes do Diabo, os Pierrôs da Caverna, os Fenianos – e escrachavam a política e a polícia. E agora eles estão de volta às ruas dançantes: os pixulecos, os horrendos ladrões da República, a carranca bicuda do Cunha, o rosto deprimido de Sérgio Cabral, a cara corroída do Lobão e até o hipercanalha Trump.

Além disso, vendo a catarata de corpos e de plumas, vendo a explosão de cantos e sorrisos, entendo que essa euforia está acima, mais além das misérias de hoje, mais além das tristezas do mensalão, do petrolão, da inflação. Uma nuvem cultural e democrática paira acima desse sarapatel de roubos e mentiras.

O Carnaval mostra a matéria de que fomos feitos há quatro séculos. O Carnaval não aspira a nenhuma desordem profunda, como pode parecer ao turista reprimido. Ao contrário, há uma grande pureza nessa explosão de carne e sexo nas avenidas; parece haver o oculto desejo de “fundar” outro país, avesso ao populismo demagógico, avesso à tragédia da pobreza. Os bailarinos das escolas e seus enredos parecem dizer: “Queremos uma sociedade organizada como nós, alegre como nossas escolas de samba que cantam a felicidade”.

O Carnaval mostra que o Brasil tem uma forma de esfuziante “seriedade”, mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão.

Onde existem essas montanhas de carne, de corpos se jogando uns contra outros, onde podemos ver essa busca louca por um orgasmo utópico, essa fome de amar?

Todas as metáforas do Carnaval são ligadas à ideia de abundância, de fecundidade; tudo lembra um grande prazer que nos “salvará” algum dia de um futuro de irracionalismo e paranoia.

Na razão do Carnaval existe certa santidade carnal (para além da orgia). O Carnaval nos vê. O Carnaval não é um desvio da razão. Sua razão perversa nos ensina mais que “moralismos críticos”. A África e os índios nos salvaram, assim como salvaram os EUA. Que seria da América sem o jazz? Seria um país branco-azedo, cheio de “wasps” tristes. E nós sem samba?

A “razão perversa” é a razão do Carnaval. Não a perversão como “pecado”, mas como busca de uma civilização “não civilizada”.

E, como anunciavam os antigos locutores de rádio, viva o “tríduo momesco”!

Nenhum comentário:

Postar um comentário