terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

A escolha de Muhamed

Na Ilha de Moçambique, também chamada Muipiti, pequena cidade histórica no norte de Moçambique, onde tenho vivido nos últimos meses, a esmagadora maioria da população é muçulmana. Quando Vasco da Gama aqui chegou, em 1498, a ilha já abrigava um importante entreposto comercial de língua e cultura suaíli, com árabes e negros, cujo xeque estava sujeito ao poderoso sultão de Zanzibar. O Islã dominava, um Islã doce, adaptado a uma sociedade mestiça, de grandes viajantes e comerciantes. Escravos, cera, marfim e pau preto eram trocados por panos e miçangas da Índia.

Com os portugueses, chegou também o cristianismo. Igrejas católicas foram erguidas ao lado das mesquitas. Mais tarde vieram os indianos, e também eles construíram templos hindus. Ao longo de centenas de anos, até os nossos dias, a Ilha tem sido um magnífico exemplo de tolerância religiosa, étnica e cultural. Não é incomum ocorrerem batucadas, em festas católicas, nas escadarias das igrejas, nas quais os batucadores são muçulmanos. Católicos e muçulmanos, por sua vez, nunca abandonaram totalmente as práticas mágicas e religiosas de matriz bantu, numa espécie de saudável suruba mística que o Brasil conhece tão bem.

Até há poucos anos era difícil distinguir, no dia a dia, muçulmanos de cristãos. Isso vem mudando. Hoje, não é raro vermos desfilarem, ao longo das estreitas ruas da cidade, jovens mulheres vestindo o hijab, ou mesmo pesadas burkas negras. As “ninjas”, como alguns lhes chamam, enfrentam a troça dos mais novos e o horror e a desconfiança dos mais velhos. A verdade, porém, é que o seu número cresce todos os anos.

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Conversando com a população é possível perceber a origem do fenômeno. Falei, por exemplo, com Muhamed B., 18 anos, que passa as tardes atrás do balcão de um bazar, vendendo as tradicionais capulanas, belos panos coloridos usados por todas as mulheres moçambicanas, independentemente da origem e estrato social. Muhamed tem ambições, mas sabe que, permanecendo na ilha, nunca sairá detrás daquele mesmo balcão. Conta que recebeu um convite para estudar na Arábia Saudita. “Estudar o quê?”, pergunto. A resposta vem quase envergonhada: “Teologia islâmica.”

Estudar Teologia Islâmica na Arábia Saudita não é, evidentemente, o mesmo que estudar Teologia Islâmica na Sorbonne. A Arábia Saudita é a cabeça e o coração do islamismo radical wahhabita. Nunca é demais recordar que dos 19 terroristas que se suicidaram, atirando dois aviões comerciais contra as Torres Gêmeas, em Nova York, 15 eram sauditas.

— Por que Teologia Islâmica?

— Porque as bolsas que nos oferecem são só para estudar Teologia Islâmica. Mas tenho esperança de que uma vez lá, em Riad, possa mudar para outro curso — diz Muhamed. — Eu queria estudar Medicina. Queria muito ser médico.

O fundamentalismo islâmico aproveita-se da pobreza e da ineficiência do aparelho estatal, em Moçambique e em muitos outros países africanos, e assim se expande. O que faz, no fundo, é ocupar os espaços vazios. Não havendo escolas públicas, as pessoas não têm alternativa senão enviar os filhos para as madrassas, muitas delas financiadas pela Arábia Saudita e com professores que defendem as correntes mais radicais do Islã.

Nos anos que se seguiram à independência, em 1975, Moçambique recebeu um forte apoio dos países do norte da Europa, em particular da Suécia. Isso explica a presença remanescente de uma pequena comunidade escandinava na Ilha de Moçambique e em outras cidades do país. Na última década, com a crise econômica global, a maioria dos programas de assistência ao desenvolvimento acabou sendo cancelada e desmantelada. Não surpreende que o fundamentalismo islâmico conheça um movimento de expansão, exatamente agora, quando o Ocidente recua.

O que muita gente ainda não compreendeu — a começar pela atual administração norte-americana — é que, num mundo global, a luta contra o fundamentalismo islâmico, e toda a barbárie a ele associada, incluindo o terrorismo, passa também pelo apoio ao desenvolvimento.

Muhamed poderia estar a estudar Medicina em Paris, em Lisboa ou em São Paulo. Amanhã estaria a salvar vidas, em algum hospital moçambicano. Assim vai para Riad. O que o Ocidente gasta num único dia de combate ao autoproclamado Estado Islâmico, na Síria, daria certamente para pagar a formação completa de Muhamed e de centenas de outros como ele. É fazer as contas e escolher.

José Eduardo Agualusa

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