sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

A cobra morde o próprio rabo

Nunca esteve tão claro o fracasso das políticas públicas de segurança no Brasil. Embora esforços tenham sido feitos no passado recente, com pequenas conquistas em termos de diminuição das taxas de crimes violentos, tudo parece ter sido tragado pelo fortalecimento das facções do crime organizado, originárias dos estados onde obtiveram mais sucesso: São Paulo e Rio.

Negou-se que havia crime organizado no tráfico de drogas e de armas no Brasil durante 30 anos, censurando como direita penal quem afirmava essa existência ameaçadora para a democracia. Agora, é indagar por que a adesão às facções se ampliou, apesar das inovações tecnológicas e tentativas de policiamento comunitário.

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Mais do que o compromisso com os direitos humanos, é o entendimento desse processo de crescimento que permitirá saber o que precisa ser mudado. Enquanto políticas de segurança buscavam alterar a ação policial, as velhas práticas policiais de trocar tiros em qualquer lugar a qualquer hora e por qualquer motivo persistiram.

Mudanças recentes na legislação sobre drogas e na instalação de audiências de custódia, para diminuir a população carcerária, continuaram a encher as prisões com homens jovens, moradores de favelas e periferias, flagrados na zona cinzenta entre o tráfico e o uso.

Acusações de tráfico, que compõem 90% das prisões feitas em flagrante, são dadas com base na palavra do policial, fonte da extensa corrupção que corre entre policiais e jovens moradores das cidades.

A maior parte dos presos provisórios que vão para audiências de custódia continua encarcerada até o julgamento por não dar endereço correto com nome de rua e número da casa, ou seja, fora de favelas; por não provar ter um emprego formal, ou seja, biscateiros ou negociantes informais não escapam da decisão do juiz para permanecer em presídios até o julgamento — em média, 40% deles, esperando ali meses a fio.

Nesses presídios, as celas são coletivas, alojando 30 ou 40 homens permanentemente trancados, com banho de sol uma vez por semana, se tanto. Não surpreende que ali as explosões emocionais que podem resultar em morte sejam comuns. Por isso, uma das preocupações fundamentais de qualquer preso é assegurar alguma proteção para não ser morto por outro preso.

Compra-se de tudo ali dentro, inclusive a mudança de cela e de unidade penal. A cantina vende o que o preso precisa para ter um mínimo de conforto, de comida e de higiene.

Junto com a sociedade dos cativos, que desenvolve suas próprias regras e valores, há também a economia informal da cadeia, que cria exploração do trabalho de presos “caídos” e reinstaura a desigualdade, a estratificação e as estruturas de poder que julgam e punem os presos informalmente, sem piedade.

Entende-se melhor por que as facções adquiriram tanta importância desde o fim dos anos 1970. Eles precisam de proteção nas prisões. Por causa da lealdade crescentemente necessária, a figura mais odiada no mundo do crime é o alcaguete, que fala na delegacia sobre os comparsas, que denuncia o funcionamento da boca para policiais ou inimigos da outra facção.

Abrem a boca os novatos, sem experiência, considerados “vacilões” pelos comparsas “formados”.

Isso mostra que há um aprendizado para entrar e passar a ser protegido na organização, na confiança cercada de desconfianças e no pertencimento frágil constantemente postos à prova. Só a certeza de que, fora dela, o risco seria maior mantém a adesão dos neófitos.

Fora e dentro da prisão, um dos maiores sorvedouros do dinheiro ganho pelos traficantes era, e talvez ainda seja, a propina paga a policiais, civis e militares, para continuar ganhando dinheiro no negócio e bancando o arrego.

Por isso, quando se escuta o que dizem os envolvidos na criminalidade, entende-se que existe um encadeamento contínuo de jogos que dependem de muitos parceiros, intermediários e adversários para evitar a prisão ou para permanecer vivo dentro dela.

As narrativas são infindáveis e as negociações imprevisíveis, com os traficantes do varejo passando a maior parte do seu tempo negociando e pagando caro pela liberdade deles mesmos e de seus parceiros.

Claro que esse encadeamento é o que os prende cada vez mais às regras de reciprocidade negativa baseada em chantagens e ameaças, mas, apesar disso, a única possibilidade de alguma proteção quando forem apanhados pelos agentes da lei, que podem matar, ou enviados para um presídio, onde podem morrer por nada.

É o que na teoria dos jogos chama-se a “repetição interminável das interações”, na qual os comparsas aprendem como agir cooperando para manter a organização forte.

Enquanto os atores institucionais nesses jogos forem contra o estado de direito, os envolvidos no mundo do crime não perceberão que há saídas sem risco. Estes vão continuar dando a volta na lei para lidar com a corrupção e a guerra entre eles e policiais.

Já se sabe que o que melhor explica o crime e a violência não é a pobreza, é a oposição ao estado democrático de direito. Portanto, não se trata de defender os direitos humanos porque eles representam o bem. É preciso mostrar que há alternativas para garantir o direito à vida, ao trabalho, a uma sentença justa dos acusados. E, se condenados, uma vida digna sem ameaças de morte a cada instante na prisão.

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